CARTA ENCÍCLICA
CARITAS IN VERITATE
DO SUMO PONTÍFICE
BENTO XVI
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
AOS FIÉIS LEIGOS
E A TODOS OS HOMENS
DE BOA VONTADE
SOBRE O DESENVOLVIMENTO
HUMANO INTEGRAL
CARITAS IN VERITATE
DO SUMO PONTÍFICE
BENTO XVI
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
AOS FIÉIS LEIGOS
E A TODOS OS HOMENS
DE BOA VONTADE
SOBRE O DESENVOLVIMENTO
HUMANO INTEGRAL
NA CARIDADE E NA VERDADE
Estou
ciente dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de
enfrentar com o risco, daí resultante, de ser mal entendida, de excluí-la da
vida ética e, em todo o caso, de impedir a sua correcta valorização. Nos
âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos
contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua
irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais. Daqui a
necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na direcção assinalada
por S. Paulo da « veritas in caritate » (Ef 4, 15), mas também na
direcção inversa e complementar da « caritas in veritate ». A verdade
há-de ser procurada, encontrada e expressa na « economia » da caridade, mas
esta por sua vez há-de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da
verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade,
iluminada pela verdade, mas também contribuído para acreditar a verdade,
mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta.
Facto este que se deve ter bem em conta hoje, num contexto social e cultural
que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente senão mesmo
refractário à mesma.
3. Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser
reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de
importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública.
Só na verdade é que a caridade
refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é
simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência
chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu
significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um
invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor
numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes
dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto
do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do
emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo,
que a priva de amplitude humana e universal. Na verdade, a caridade reflecte a
dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é
conjuntamente « Agápe » e « Lógos »: Caridade e Verdade, Amor e
Palavra.
4. Porque repleta de verdade, a caridade pode ser compreendida pelo
homem na sua riqueza de valores, partilhada e comunicada. Com efeito, a
verdade é « lógos » que cria « diá-logos » e, consequentemente, comunicação
e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações
subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para
se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e
une as inteligências no lógos do amor: tal é o anúncio e o testemunho
cristão da caridade. No actual contexto
social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade,
viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do
cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma
boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade
pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para
a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver
verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada
num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projectos e
processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no
diálogo entre o saber e a realização prática.
A esta
dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a doutrina social
da Igreja. Tal doutrina é « caritas in veritate in re sociali », ou
seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da
caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a força libertadora da
caridade nas vicissitudes sempre novas da história. É ao mesmo tempo verdade da
fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos
cognitivos. O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves
problemas sócio-económicos que afligem a humanidade precisam desta verdade.
Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que
é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a actividade
social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos
desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização
que atravessa momentos difíceis como os actuais.
6. « Caritas in veritate » é um princípio à volta do qual
gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em
critérios orientadores da acção moral. Destes, desejo lembrar dois em
particular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do
desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização: a justiça e o bem
comum.
Em
primeiro lugar, a justiça. Ubi societas, ibi ius: cada sociedade elabora
um sistema próprio de justiça. A
caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é «
meu »; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é « dele
», o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso « dar »
ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por
justiça. Quem ama os outros com caridade
é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à
caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é « inseparável da caridade »[1],
é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a
dizer Paulo VI, « a medida mínima » dela[2],
parte integrante daquele amor « por acções e em verdade » (1 Jo 3, 18) a
que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento
e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela
empenha-se na construção da « cidade do homem » segundo o direito e a justiça.
Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do
perdão[3].
A « cidade do homem » não se move apenas por relações feitas de direitos e de
deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e
comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de
Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo.
7. Depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum.
Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do
bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É
o bem daquele « nós-todos », formado por indivíduos, famílias e grupos
intermédios que se unem em comunidade social[4].
Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da
comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o
próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de
justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar
e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam
jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a
forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto
mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas
necessidade reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua
vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. Este
é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não
menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao
encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando
o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à
do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela
justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo,
prepara o eterno. A acção do homem sobre a terra, quando é inspirada e
sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade
universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família
humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu
favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou
seja, da comunidade dos povos e das nações[5],
para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa
medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.
8. Ao publicar a encíclica Populorum progressio em 1967, o meu
venerado predecessor Paulo VI iluminou o grande tema do desenvolvimento dos
povos com o esplendor da verdade e com a luz suave da caridade de Cristo.
Afirmou que o anúncio de Cristo é o primeiro e principal factor de
desenvolvimento [6]
e deixou-nos a recomendação de caminhar pela estrada do desenvolvimento com
todo o nosso coração e com toda a nossa inteligência[7],
ou seja, com o ardor da caridade e a sapiência da verdade. É a verdade
originária do amor de Deus — graça a nós concedida — que abre ao dom a nossa
vida e torna possível esperar num « desenvolvimento do homem todo e de todos os
homens »[8],
numa passagem « de condições menos humanas a condições mais humanas »[9],
que se obtém vencendo as dificuldades que inevitavelmente se encontram ao longo
do caminho.
Passados
mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica, pretendo prestar
homenagem e honrar a memória do grande Pontífice Paulo VI, retomando os seus
ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando-me na
senda pelos mesmos traçada para os actualizar nos dias que correm. Este
processo de actualização teve início com a encíclica Sollicitudo rei
socialis do Servo de Deus João Paulo II, que desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo
aniversário da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se
reservado apenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos,
exprimo a minha convicção de que a Populorum progressio merece ser
considerada como « a Rerum novarum da época contemporânea », que ilumina
o caminho da humanidade em vias de unificação.
9. O amor na verdade — caritas in veritate — é um grande
desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco
do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não
corresponda a interacção ética das consciências e das inteligências, da qual
possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano. Só através da
caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar
objectivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e
humanizadora. A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico
desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras
relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem
(cf. Rm 12, 21) e abre à reciprocidade das consciências e das
liberdades.
A Igreja
não tem soluções técnicas para oferecer [10]
e não pretende « de modo algum imiscuir-se na política dos Estados »[11];
mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e
contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da
sua vocação. Sem verdade, cai-se numa visão empirista e céptica da vida,
incapaz de se elevar acima da acção porque não está interessada em identificar
os valores — às vezes nem sequer os significados — pelos quais julgá-la e
orientá-la. A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única
que é garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade
dum desenvolvimento humano integral. É por isso que a Igreja a procura,
anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente.
Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua
doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que
liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina
social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que
frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da
sociedade dos homens e dos povos[12].
CAPÍTULO I
A MENSAGEM
DA POPULORUM PROGRESSIO
DA POPULORUM PROGRESSIO
13. Além da sua importante ligação com toda a doutrina social da
Igreja, a Populorum progressio está intimamente conexa
com o magistério global de Paulo VI e, de modo particular, com o seu
magistério social. De grande relevo foi, sem dúvida, o seu ensinamento social:
reafirmou a exigência imprescindível do Evangelho para a construção da
sociedade segundo liberdade e justiça, na perspectiva ideal e histórica de uma
civilização animada pelo amor. Paulo VI compreendeu claramente como se tinha
tornado mundial a questão social[25]
e viu a correlação entre o impulso à unificação da humanidade e o ideal cristão
de uma única família dos povos, solidária na fraternidade comum. Indicou o
desenvolvimento, humana e cristãmente entendido, como o coração da mensagem
social cristã e propôs a caridade cristã como principal força ao serviço do
desenvolvimento. Movido pelo desejo de tornar o amor de Cristo plenamente
visível ao homem contemporâneo, Paulo VI enfrentou com firmeza importantes
questões éticas, sem ceder às debilidades culturais do seu tempo.
14. Depois, com a carta
apostólica Octogesima adveniens de 1971, Paulo VI
tratou o tema do sentido da política e do perigo de visões utópicas e ideológicas
que prejudicavam a sua qualidade ética e humana. São argumentos
estritamente relacionados com o desenvolvimento. Infelizmente as ideologias
negativas florescem continuamente. Contra a ideologia tecnocrática, hoje
particularmente radicada, já Paulo VI tinha alertado[26],
ciente do grande perigo que era confiar todo o processo do desenvolvimento
unicamente à técnica, porque assim ficaria sem orientação. A técnica, em si
mesma, é ambivalente. Se, por um lado, há hoje quem seja propenso a confiar-lhe
inteiramente tal processo de desenvolvimento, por outro, assiste-se à investida
de ideologias que negam in toto a própria utilidade do desenvolvimento,
considerado radicalmente anti-humano e portador somente de degradação. Mas,
deste modo, acaba-se por condenar não apenas a maneira errada e injusta como
por vezes os homens orientam o progresso, mas também as descobertas científicas
que entretanto, se bem usadas, constituem uma oportunidade de crescimento para
todos. A ideia de um mundo sem
desenvolvimento exprime falta de confiança no homem e em Deus.
Por conseguinte, é um
grave erro desprezar as capacidades humanas de controlar os extravios do
desenvolvimento ou mesmo ignorar que o homem está constitutivamente inclinado
para « ser mais ». Absolutizar ideologicamente o progresso técnico ou então
afagar a utopia duma humanidade reconduzida ao estado originário da natureza
são dois modos opostos de separar o progresso da sua apreciação moral e,
consequentemente, da nossa responsabilidade.
15. Outros dois documentos de Paulo VI, embora não estritamente
ligados com a doutrina social — a encíclica Humanæ vitæ, de 25 de Julho de 1968, e a
exortação apostólica Evangelii nuntiandi, de 8 de Dezembro de
1975 —, são muito importantes para delinear o sentido plenamente humano do
desenvolvimento proposto pela Igreja. Por isso é oportuno ler também estes
textos em relação com a Populorum progressio.
A
encíclica Humanæ vitæ sublinha o significado
conjuntamente unitivo e procriativo da sexualidade, pondo assim como fundamento
da sociedade o casal de esposos, homem e mulher, que se acolhem reciprocamente
na distinção e na complementaridade; um casal, portanto, aberto à vida[27].
Não se trata de uma moral meramente individual: a Humanæ vitæ indica os fortes laços
existentes entre ética da vida e ética social, inaugurando uma temática do
Magistério que aos poucos foi tomando corpo em vários documentos, sendo o mais
recente a encíclica Evangelium vitæ de João Paulo II[28].
A Igreja propõe, com vigor, esta ligação entre ética da vida e ética social,
ciente de que não pode « ter sólidas bases uma sociedade que afirma valores
como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas contradiz-se radicalmente
aceitando e tolerando as mais diversas formas de desprezo e violação da vida
humana, sobretudo se débil e marginalizada »[29].
Por sua
vez, a exortação apostólica Evangelii nuntiandi tem uma relação muito
forte com o desenvolvimento, visto que « a evangelização — escrevia Paulo VI —
não seria completa, se não tomasse em consideração a interpelação recíproca que
se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, do
homem »[30].
« Entre evangelização e promoção humana — desenvolvimento, libertação — existem
de facto laços profundos »[31]:
partindo desta certeza, Paulo VI ilustrava claramente a relação entre o anúncio
de Cristo e a promoção da pessoa na sociedade. O testemunho da caridade de
Cristo através de obras de justiça, paz e desenvolvimento faz parte da
evangelização, pois a Jesus Cristo, que nos ama, interessa o homem inteiro.
Sobre estes importantes ensinamentos, está fundado o aspecto missionário [32]
da doutrina social da Igreja como elemento essencial de evangelização[33].
A doutrina social da Igreja é anúncio e testemunho de fé; é instrumento e lugar
imprescindível de educação para a mesma.
16. Na Populorum progressio, Paulo VI quis
dizer-nos, antes de mais nada, que o progresso é, na sua origem e na sua
essência, uma vocação: « Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a
desenvolver-se, porque toda a vida é vocação »[34].
É precisamente este facto que legitima a intervenção da Igreja nas
problemáticas do desenvolvimento. Se este tocasse apenas aspectos técnicos da
vida do homem, e não o sentido do seu caminhar na história juntamente com seus
irmãos, nem a individuação da meta de tal caminho, a Igreja não teria título
para falar. Mas Paulo VI, como antes dele Leão XIII na Rerum novarum[35],
estava consciente de cumprir um dever próprio do seu serviço quando iluminava
com a luz do Evangelho as questões sociais do seu tempo[36].
Dizer
que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que
o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si
mesmo de atribuir-se o próprio significado último. Não é sem motivo que a
palavra « vocação » volta a aparecer noutra passagem da encíclica, onde se
afirma: « Não há, portanto, verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto,
reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana »[37].
Esta visão do desenvolvimento é o coração da Populorum progressio e motiva todas as
reflexões de Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no
desenvolvimento. É também a razão principal por que tal encíclica ainda aparece
actual nos nossos dias.
18. Além de requerer a liberdade, o desenvolvimento humano
integral enquanto vocação exige também que se respeite a sua verdade. A
vocação ao progresso impele os homens a « realizar, conhecer e possuir mais,
para ser mais »[41].
Mas aqui levanta-se o problema: que significa « ser mais »? A tal pergunta
responde Paulo VI indicando a característica essencial do « desenvolvimento
autêntico »: este « deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o
homem todo »[42].
Na concorrência entre as várias concepções do homem, presentes na sociedade
actual ainda mais intensamente do que na de Paulo VI, a visão cristã tem a
peculiaridade de afirmar e justificar o valor incondicional da pessoa humana e
o sentido do seu crescimento. A vocação cristã ao desenvolvimento ajuda a
empenhar-se na promoção de todos os homens e do homem todo. Escrevia Paulo VI:
« O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se
chegar à humanidade inteira »[43].
A fé cristã ocupa-se do desenvolvimento sem olhar a privilégios nem posições de
poder nem mesmo aos méritos dos cristãos — que sem dúvida existiram e existem,
a par de naturais limitações[44]
—, mas contando apenas com Cristo, a Quem há-de fazer referência toda a
autêntica vocação ao desenvolvimento humano integral. O Evangelho é elemento
fundamental do desenvolvimento, porque lá Cristo, com « a própria revelação
do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo »[45].
Instruída pelo seu Senhor, a Igreja perscruta os sinais dos tempos e
interpreta-os, oferecendo ao mundo « o que possui como próprio: uma visão
global do homem e da humanidade »[46].
Precisamente porque Deus pronuncia o maior « sim » ao homem[47],
este não pode deixar de se abrir à vocação divina para realizar o próprio
desenvolvimento. A verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se
não é desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, não é verdadeiro
desenvolvimento. Esta é a mensagem central da Populorum progressio, válida hoje e
sempre. O desenvolvimento humano integral no plano natural, enquanto resposta a
uma vocação de Deus criador[48],
procura a própria autenticação num « humanismo transcendente, que leva [o
homem] a atingir a sua maior plenitude: tal é a finalidade suprema do
desenvolvimento pessoal »[49].
Portanto, a vocação cristã a tal desenvolvimento compreende tanto o plano
natural como o plano sobrenatural, motivo por que, « quando Deus fica
eclipsado, começa a esmorecer a nossa capacidade de reconhecer a ordem natural,
o fim e o ‘‘bem'' »[50].
19. Finalmente, a concepção do desenvolvimento como vocação inclui nele
a centralidade da caridade. Paulo VI observava, na encíclica Populorum progressio, que as causas do
subdesenvolvimento não são primariamente de ordem material, convidando-nos a
procurá-las noutras dimensões do homem. Em primeiro lugar, na vontade, que
muitas vezes descuida os deveres da solidariedade. Em segundo, no pensamento,
que nem sempre sabe orientar convenientemente o querer; por isso, para a
prossecução do desenvolvimento, servem « pensadores capazes de reflexão
profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o
encontro de si mesmo »[51].
E não é tudo; o subdesenvolvimento tem uma causa ainda mais importante do que a
carência de pensamento: é « a falta de fraternidade entre os homens e entre os
povos »[52].
Esta fraternidade poderá um dia ser obtida pelos homens simplesmente com as
suas forças? A sociedade cada vez mais
globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só,
é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica
entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa
vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por
meio do Filho o que é a caridade fraterna. Ao apresentar os vários níveis do
processo de desenvolvimento do homem, Paulo VI colocava no vértice, depois de
ter mencionado a fé, « a unidade na caridade de Cristo que nos chama a todos a
participar como filhos na vida do Deus vivo, Pai de todos os homens »[53].
20. Abertas pela Populorum progressio, estas perspectivas
permanecem fundamentais para dar amplitude e orientação ao nosso compromisso a
favor do desenvolvimento dos povos. E a Populorum progressio sublinha
repetidamente a urgência das reformas[54],
pedindo para que, à vista dos grandes problemas da injustiça no desenvolvimento
dos povos, se actue com coragem e sem demora. Esta urgência é ditada também
pela caridade na verdade. É a caridade de Cristo que nos impele: « caritas
Christi urget nos » (2 Cor 5, 14). A urgência não está inscrita só
nas coisas, não deriva apenas do encalçar dos acontecimentos e dos problemas,
mas também do que está em jogo: a realização de uma autêntica fraternidade. A
relevância deste objectivo é tal que exige a nossa disponibilidade para o
compreendermos profundamente e mobilizarmo-nos concretamente, com o « coração
», a fim de fazer avançar os actuais processos económicos e sociais para metas
plenamente humanas.
O DESENVOLVIMENTO HUMANO
NO NOSSO TEMPO
NO NOSSO TEMPO
21. Paulo VI tinha uma visão articulada do desenvolvimento.
Com o termo « desenvolvimento », queria indicar, antes de mais nada, o
objectivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endémicas e
do analfabetismo. Isto significava, do ponto de vista económico, a sua
participação activa e em condições de igualdade no processo económico
internacional; do ponto de vista social, a sua evolução para sociedades
instruídas e solidárias; do ponto de vista político, a consolidação de regimes
democráticos capazes de assegurar a liberdade e a paz. Depois de tantos anos e
enquanto contemplamos, preocupados, as evoluções e as perspectivas das crises
que foram sucedendo neste período, interrogamo-nos até que ponto as expectativas
de Paulo VI tenham sido satisfeitas pelo modelo de desenvolvimento que foi
adoptado nos últimos decénios. E reconhecemos que eram fundadas as preocupações
da Igreja acerca das capacidades do homem meramente tecnológico conseguir
impor-se objectivos realistas e saber gerir, sempre adequadamente, os
instrumentos à sua disposição. O lucro é útil se, como meio, for orientado para
um fim que lhe indique o sentido e o modo como o produzir e utilizar.
O
objectivo exclusivo de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o
bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e criar pobreza. O desenvolvimento
económico desejado por Paulo VI devia ser capaz de produzir um crescimento
real, extensivo a todos e concretamente sustentável. É verdade que o desenvolvimento
foi e continua a ser um factor positivo, que tirou da miséria milhões de
pessoas e, ultimamente, deu a muitos países a possibilidade de se tornarem
actores eficazes da política internacional. Todavia há que reconhecer que o
próprio desenvolvimento económico foi e continua a ser molestado por
anomalias e problemas dramáticos, evidenciados ainda mais pela actual
situação de crise. Esta coloca-nos improrrogavelmente diante de opções que
dizem respeito sempre mais ao próprio destino do homem, o qual aliás não pode
prescindir da sua natureza. As forças técnicas em campo, as inter-relações a
nível mundial, os efeitos deletérios sobre a economia real duma actividade
financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos
migratórios, com frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a
exploração desregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre
as medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos
relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com
impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade. Os aspectos da crise e
das suas soluções bem como de um possível novo desenvolvimento futuro estão
cada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos
esforços de enquadramento global e uma nova síntese humanista. A
complexidade e gravidade da situação económica actual preocupa-nos, com toda a
justiça, mas devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas
responsabilidades a que nos chama o cenário de um mundo que tem necessidade
duma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para
construir sobre eles um futuro melhor. A crise obriga-nos a projectar de novo o
nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de
empenhamento, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas.
Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e elaboração de nova
planificação. Com esta chave, feita mais de confiança que resignação,
convém enfrentar as dificuldades da hora actual.
22. Actualmente o quadro do desenvolvimento é policêntrico.
Os actores e as causas tanto do subdesenvolvimento como do desenvolvimento são
múltiplas, as culpas e os méritos são diferenciados. Este dado deveria induzir
a libertar-se das ideologias que simplificam, de forma frequentemente
artificiosa, a realidade, e levar a examinar com objectividade a espessura
humana dos problemas. Hoje a linha de demarcação entre países ricos e pobres já
não é tão nítida como nos tempos da Populorum progressio, como aliás foi
assinalado por João Paulo II[55].
Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades.
Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas.
Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento
dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis
situações de miséria desumanizadora. Continua « o escândalo de desproporções
revoltantes »[56].
Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento
de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos
próprios países pobres. No número de quantos não respeitam os direitos humanos
dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também
grupos de produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas
das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia
dos sujeitos doadores como na dos beneficiários. Também no âmbito das causas
imateriais ou culturais do desenvolvimento e do subdesenvolvimento podemos
encontrar a mesma articulação de responsabilidades: existem formas excessivas
de protecção do conhecimento por parte dos países ricos, através duma
utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual,
especialmente no campo sanitário; ao mesmo tempo, em alguns países pobres,
persistem modelos culturais e normas sociais de comportamento que retardam o
processo de desenvolvimento.
23. Temos hoje muitas áreas do globo que — de forma por vezes
problemática e não homogénea — evoluíram, entrando na categoria das grandes
potências destinadas a jogar um papel importante no futuro. Contudo há que sublinhar que não é suficiente progredir do ponto
de vista económico e tecnológico; é preciso que o desenvolvimento seja,
antes de mais nada, verdadeiro e integral. A saída do atraso económico — um
dado em si mesmo positivo — não resolve a complexa problemática da promoção do
homem nem nos países protagonistas de tais avanços, nem nos países
economicamente já desenvolvidos, nem nos países ainda pobres que, além das
antigas formas de exploração, podem vir a sofrer também as consequências
negativas derivadas de um crescimento marcado por desvios e desequilíbrios.
Depois
da queda dos sistemas económicos e políticos dos países comunistas da Europa
Oriental e do fim dos chamados « blocos contrapostos », havia necessidade duma
revisão global do desenvolvimento. Pedira-o João Paulo II, que em 1987 tinha
indicado a existência destes « blocos » como uma das principais causas do
subdesenvolvimento[57],
enquanto a política subtraía recursos à economia e à cultura e a ideologia
inibia a liberdade. Em 1991, na sequência dos acontecimentos do ano 1989, o
Pontífice pediu que o fim dos « blocos » fosse seguido por uma nova
planificação global do desenvolvimento, não só em tais países, mas também no
Ocidente e nas regiões do mundo que estavam a evoluir[58].
Isto, porém, realizou-se apenas parcialmente, continuando a ser uma obrigação
real que precisa de ser satisfeita, talvez aproveitando-se precisamente das
opções necessárias para superar os problemas económicos actuais.
24. O mundo, que Paulo VI tinha diante dos olhos, registava muito
menor integração do que hoje, embora o processo de sociabilização se
apresentasse já tão adiantado que ele pôde falar de uma questão social tornada
mundial. Actividade económica e função política desenrolavam-se em grande parte
dentro do mesmo âmbito local e, por conseguinte, podiam inspirar recíproca
confiança. A actividade produtiva tinha lugar prevalentemente dentro das
fronteiras nacionais e os investimentos financeiros tinham uma circulação
bastante limitada para o estrangeiro, de tal modo que a política de muitos
Estados podia ainda fixar as prioridades da economia e, de alguma maneira,
governar o seu andamento com os instrumentos de que ainda dispunha. Por este
motivo, a Populorum progressio atribuía um papel central, embora não
exclusivo, aos « poderes públicos »[59].
Actualmente,
o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar as limitações que lhe são
impostas à sua soberania pelo novo contexto económico comercial e financeiro
internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos
capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo
contexto alterou o poder político dos Estados.
Hoje,
aproveitando inclusivamente a lição resultante da crise económica em curso que
vê os poderes públicos do Estado directamente empenhados a corrigir
erros e disfunções, parece mais realista uma renovada avaliação do seu papel
e poder, que hão-de ser sapientemente reconsiderados e reavaliados para se
tornarem capazes, mesmo através de novas modalidades de exercício, de fazer
frente aos desafios do mundo actual. Com uma função melhor calibrada dos
poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas de
participação na política nacional e internacional que se realizam através da
acção das organizações operantes na sociedade civil; nesta linha, é desejável
que cresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica
por parte dos cidadãos.
25. Do ponto de vista social, os sistemas de segurança e previdência
— já presentes em muitos países nos tempos de Paulo VI — sentem dificuldade, e
poderão senti-la ainda mais no futuro, em alcançar os seus objectivos de
verdadeira justiça social dentro de um quadro de forças profundamente alterado.
O mercado, à medida que se foi tornando global, estimulou antes de mais nada,
por parte de países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as actividades
produtivas a baixo custo a fim de reduzir os preços de muitos bens, aumentar o
poder de compra e deste modo acelerar o índice de desenvolvimento centrado
sobre um maior consumo pelo próprio mercado interno. Consequentemente, o
mercado motivou novas formas de competição entre Estados procurando atrair
centros produtivos de empresas estrangeiras através de variados instrumentos
tais como impostos favoráveis e a desregulamentação do mundo do trabalho. Estes
processos implicaram a redução das redes de segurança social em troca de
maiores vantagens competitivas no mercado global, acarretando grave perigo para
os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a
solidariedade actuada nas formas tradicionais do Estado social. Os sistemas de
segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função, quer
nos países emergentes, quer nos desenvolvidos há mais tempo, quer naturalmente
nos países pobres. Aqui, as políticas relativas ao orçamento com os seus cortes
na despesa social, muitas vezes fomentados pelas próprias instituições
financeiras internacionais, podem deixar os cidadãos impotentes diante de
riscos antigos e novos; e tal impotência torna-se ainda maior devido à falta de
protecção eficaz por parte das associações dos trabalhadores. O conjunto das
mudanças sociais e económicas faz com que as organizações sindicais
sintam maiores dificuldades no desempenho do seu dever de representar os
interesses dos trabalhadores, inclusive pelo facto de os governos, por razões
de utilidade económica, muitas vezes limitarem as liberdades sindicais ou a
capacidade negociadora dos próprios sindicatos. Assim, as redes tradicionais de
solidariedade encontram obstáculos cada vez maiores a superar. Por isso, o
convite feito pela doutrina social da Igreja, a começar da Rerum novarum[60],
para se criarem associações de trabalhadores em defesa dos seus direitos há-de
ser honrado, hoje ainda mais do que ontem, dando antes de mais nada uma
resposta pronta e clarividente à urgência de instaurar novas sinergias a nível
internacional, sem descurar o nível local.
A
mobilidade laboral, associada à generalizada desregulamentação, constituiu
um fenómeno importante, não desprovido de aspectos positivos porque capaz de
estimular a produção de nova riqueza e o intercâmbio entre culturas diversas.
Todavia, quando se torna endémica a incerteza sobre as condições de trabalho,
resultante dos processos de mobilidade e desregulamentação, geram-se formas de
instabilidade psicológica, com dificuldade a construir percursos coerentes na
própria vida, incluindo o percurso rumo ao matrimónio. Consequência disto é o
aparecimento de situações de degradação humana, além de desperdício de força
social. Comparado com o que sucedia na sociedade industrial do passado, hoje o
desemprego provoca aspectos novos de irrelevância económica do indivíduo, e a
crise actual pode apenas piorar tal situação. A exclusão do trabalho por muito
tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada
corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e
sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual. Queria
recordar a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um
perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro
capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: «
com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida
económico-social »[61].
26. No plano cultural, as diferenças, relativamente aos tempos de
Paulo VI, são ainda mais acentuadas. Então, as culturas apresentavam-se
bastante bem definidas e tinham maiores possibilidades para se defender das
tentativas de homogeneização cultural. Hoje, cresceram notavelmente as
possibilidades de interacção das culturas, dando espaço a novas
perspectivas de diálogo intercultural; um diálogo que, para ser eficaz, deve
ter como ponto de partida uma profunda noção da específica identidade dos
vários interlocutores. No entanto, não se deve descurar o facto de que esta
aumentada transacção de intercâmbios culturais traz consigo, actualmente, um
duplo perigo. Em primeiro lugar, nota-se um ecletismo cultural assumido
muitas vezes sem discernimento: as culturas são simplesmente postas lado a lado
e vistas como substancialmente equivalentes e intercambiáveis umas com as
outras. Isto favorece a cedência a um relativismo que não ajuda ao verdadeiro
diálogo intercultural; no plano social, o relativismo cultural faz com que os
grupos culturais se juntem ou convivam, mas separados, sem autêntico diálogo e,
consequentemente, sem verdadeira integração. Depois, temos o perigo oposto que
é constituído pelo nivelamento cultural e a homogeneização dos
comportamentos e estilos de vida. Assim perde-se o significado profundo da
cultura das diversas nações, das tradições dos vários povos, no âmbito das
quais a pessoa se confronta com as questões fundamentais da existência[62].
Ecletismo e nivelamento cultural convergem no facto de separar a cultura da
natureza humana. Assim, as culturas deixam de saber encontrar a sua medida numa
natureza que as transcende[63],
acabando por reduzir o homem a simples dado cultural. Quando isto acontece, a
humanidade corre novos perigos de servidão e manipulação.
27. Em muitos países pobres, continua — com risco de aumentar — uma
insegurança extrema de vida, que deriva da carência de alimentação: a fome
ceifa ainda inúmeras vítimas entre os muitos Lázaros, a quem não é permitido —
como esperara Paulo VI — sentar-se à mesa do rico avarento[64].
Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) é um imperativo ético para toda a Igreja,
que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o
Senhor Jesus. Além disso, eliminar a
fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objectivo a alcançar
para preservar a paz e a subsistência da terra. A fome não depende tanto de
uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais
importante dos quais é de natureza institucional; isto é, falta um sistema de
instituições económicas que seja capaz de garantir um acesso regular e
adequado, do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de
enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a
emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas
naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional. O
problema da insegurança alimentar há-de ser enfrentado numa perspectiva a longo
prazo, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo o
desenvolvimento agrícola dos países mais pobres por meio de investimentos em
infra-estruturas rurais, sistemas de irrigação, transportes, organização dos
mercados, formação e difusão de técnicas agrícolas apropriadas, isto é, capazes
de utilizar o melhor possível os recursos humanos, naturais e sócio-económicos
mais acessíveis a nível local, para garantir a sua manutenção a longo prazo.
Tudo isto há-de ser realizado, envolvendo as comunidades locais nas opções e
nas decisões relativas ao uso da terra cultivável. Nesta perspectiva, poderia
revelar-se útil considerar as novas fronteiras abertas por um correcto emprego
das técnicas de produção agrícola, tanto as tradicionais como as inovadoras,
desde que as mesmas tenham sido, depois de adequada verificação, reconhecidas
oportunas, respeitadoras do ambiente e tendo em conta as populações mais
desfavorecidas. Ao mesmo tempo não deveria ser transcurada a questão de uma
equitativa reforma agrária nos países em vias de desenvolvimento. Os direitos à
alimentação e à água revestem um papel importante para a consecução de outros
direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, é necessário a
maturação duma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os
seres humanos, sem distinções nem discriminações[65]. Além disso, é importante pôr em
evidência que o caminho da solidariedade com o desenvolvimento dos países
pobres pode constituir um projecto de solução para a presente crise global,
como homens políticos e responsáveis de instituições internacionais têm intuído
nos últimos tempos. Sustentando, através de planos de financiamento inspirados
pela solidariedade, os países economicamente pobres, para que provejam eles
mesmos à satisfação das solicitações de bens de consumo e de desenvolvimento
dos próprios cidadãos, é possível não apenas gerar verdadeiro crescimento
económico mas também concorrer para sustentar as capacidades produtivas dos
países ricos que correm o risco de ficar comprometidas pela crise.
28. Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento actual é a
importância do tema do respeito pela vida, que não pode ser de modo
algum separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos. Trata-se de
um aspecto que, nos últimos tempos, está a assumir uma relevância sempre maior,
obrigando-nos a alargar os conceitos de pobreza [66]
e subdesenvolvimento às questões relacionadas com o acolhimento da vida,
sobretudo onde o mesmo é de várias maneiras impedido.
Não só a
situação de pobreza provoca ainda altas taxas de mortalidade infantil em muitas
regiões, mas perduram também, em várias partes do mundo, práticas de controle
demográfico por parte dos governos, que
muitas vezes difundem a contracepção e chegam mesmo a impor o aborto. Nos países economicamente mais
desenvolvidos, são muito difusas as legislações contrárias à vida,
condicionando já o costume e a práxis e contribuindo para divulgar uma
mentalidade antinatalista que muitas vezes se procura transmitir a outros
Estados como se fosse um progresso cultural.
Também algumas organizações não
governamentais trabalham activamente pela difusão do aborto, promovendo nos
países pobres a adopção da prática da esterilização, mesmo sem as mulheres o
saberem. Além disso, há a fundada suspeita de que às vezes as próprias
ajudas ao desenvolvimento sejam associadas com determinadas políticas
sanitárias que realmente implicam a imposição de um forte controle dos
nascimentos. Igualmente preocupantes são as legislações que prevêem a eutanásia
e as pressões de grupos nacionais e internacionais que reivindicam o seu
reconhecimento jurídico.
A
abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento. Quando
uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar
as motivações e energias necessárias para trabalhar ao serviço do verdadeiro
bem do homem. Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma
nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social[67].
O acolhimento da vida revigora as energias morais e torna-nos capazes de ajuda
recíproca. Os povos ricos, cultivando a abertura à vida, podem compreender
melhor as necessidades dos países pobres, evitar o emprego de enormes recursos
económicos e intelectuais para satisfazer desejos egoístas dos próprios
cidadãos e promover, ao invés, acções virtuosas na perspectiva duma produção
moralmente sadia e solidária, no respeito do direito fundamental de cada povo e
de cada pessoa à vida.
29. Outro aspecto da vida actual, intimamente relacionado com o
desenvolvimento, é a negação do
direito à liberdade religiosa. Não me refiro só às lutas e conflitos
que ainda se disputam no mundo por motivações religiosas, embora estas às vezes
sejam apenas a cobertura para razões de outro género, tais como a sede de
domínio e de riqueza. Na realidade, com frequência hoje se faz apelo ao santo
nome de Deus para matar, como diversas vezes foi sublinhado e deplorado
publicamente pelo meu predecessor João Paulo II e por mim próprio[68].
As violências refreiam o desenvolvimento autêntico e impedem a evolução dos
povos para um bem-estar sócio-económico e espiritual maior. Isto aplica-se de
modo especial ao terrorismo de índole fundamentalista[69],
que gera sofrimento, devastação e morte, bloqueia o diálogo entre as nações e
desvia grandes recursos do seu uso pacífico e civil. Mas há que acrescentar
que, se o fanatismo religioso impede em alguns contextos o exercício do direito
de liberdade de religião, também a promoção programada da indiferença religiosa
ou do ateísmo prático por parte de muitos países contrasta com as necessidades
do desenvolvimento dos povos, subtraindo-lhes recursos espirituais e humanos.
Deus é o garante do verdadeiro desenvolvimento do homem, já que, tendo-o
criado à sua imagem, fundamenta de igual forma a sua dignidade transcendente e
alimenta o seu anseio constitutivo de « ser mais ». O homem não é um átomo
perdido num universo casual[70],
mas é uma criatura de Deus, à qual quis dar uma alma imortal e que desde sempre
amou. Se o homem fosse fruto apenas do acaso ou da necessidade, se as suas
aspirações tivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situações em que
vive, se tudo fosse somente história e cultura e o homem não tivesse uma
natureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, então poder-se-ia
falar de incremento ou de evolução, mas não de desenvolvimento. Quando o Estado promove, ensina ou até
impõe formas de ateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e
espiritual indispensável para se empenhar no desenvolvimento humano integral e
impede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso de uma
resposta humana mais generosa ao amor divino[71].
Sucede também que os países economicamente desenvolvidos ou os emergentes
exportem para os países pobres, no âmbito das suas relações culturais,
comerciais e políticas, esta visão redutiva da pessoa e do seu destino. É o
dano que o « superdesenvolvimento » [72]
acarreta ao desenvolvimento autêntico, quando é acompanhado pelo «
subdesenvolvimento moral »[73].
30. Nesta linha, o tema do desenvolvimento humano integral atinge um
ponto ainda mais complexo: a correlação entre os seus vários elementos requer
que nos empenhemos por fazer interagir os diversos níveis do saber humano
tendo em vista a promoção de um verdadeiro desenvolvimento dos povos. Muitas
vezes pensa-se que o desenvolvimento ou as relativas medidas sócio-económicas
necessitam apenas de ser postos em prática como fruto de um agir comum,
ignorando que este agir comum precisa de ser orientado, porque « toda a acção
social implica uma doutrina »[74].
Vista a complexidade dos problemas, é óbvio que as várias disciplinas devem
colaborar através de uma ordenada interdisciplinaridade. A caridade não exclui
o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o a partir de dentro. O saber nunca
é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a
experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos
princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser « temperado » com o «
sal » da caridade. A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor. De
facto, « aquele que está animado de verdadeira caridade é engenhoso em
descobrir as causas da miséria, encontrar os meios de a combater e vencê-la
resolutamente »[75].
Relativamente aos fenómenos que analisamos, a caridade na verdade requer, antes
de mais nada, conhecer e compreender no respeito consciencioso da competência
específica de cada nível do saber. A caridade não é uma junção posterior, como
se fosse um apêndice ao trabalho já concluído das várias disciplinas, mas
dialoga com elas desde o início. As exigências do amor não contradizem as da
razão. O saber humano é insuficiente e
as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o
desenvolvimento integral do homem. Sempre é preciso lançar-se mais além:
exige-o a caridade na verdade[76].
Todavia ir mais além nunca significa prescindir das conclusões da razão, nem
contradizer os seus resultados. Não
aparece a inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a
inteligência cheia de amor.
31. Isto significa que as ponderações morais e a pesquisa científica
devem crescer juntas e que a caridade as deve animar num todo interdisciplinar
harmónico, feito de unidade e distinção. A doutrina social da Igreja, que tem «
uma importante dimensão interdisciplinar »[77],
pode desempenhar, nesta perspectiva, uma função de extraordinária eficácia. Ela
permite à fé, à teologia, à metafísica e às ciências encontrarem o próprio
lugar no âmbito de uma colaboração ao serviço do homem; é sobretudo aqui que a
doutrina social da Igreja actua a sua dimensão sapiencial. Paulo VI tinha visto
claramente que, entre as causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carência de
sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora[78],
que requer « uma visão clara de todos os aspectos económicos, sociais,
culturais e espirituais »[79].
A excessiva fragmentação do saber[80],
o isolamento das ciências humanas relativamente à metafísica[81],
as dificuldades no diálogo entre as ciências e a teologia danificam não só o
avanço do saber mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se
verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo do homem nas várias
dimensões que o caracterizam. É indispensável o « alargamento do nosso conceito
de razão e do uso da mesma » [82]
para se conseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão do
desenvolvimento e da solução dos problemas sócio-económicos.
32. As grandes novidades, que o quadro actual do desenvolvimento dos
povos apresenta, exigem em muitos casos novas soluções. Estas hão-de ser
procuradas conjuntamente no respeito das leis próprias de cada realidade e à
luz duma visão integral do homem, que espelhe os vários aspectos da pessoa
humana, contemplada com o olhar purificado pela caridade. Descobrir-se-ão então
singulares convergências e concretas possibilidades de solução, sem renunciar a
qualquer componente fundamental da vida humana.
A
dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudo hoje, que as
opções económicas não façam aumentar, de forma excessiva e moralmente
inaceitável, as diferenças de riqueza [83]
e que se continue a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao
trabalho para todos, ou da sua manutenção. Bem vistas as coisas, isto é
exigido também pela « razão económica ». O aumento sistemático das
desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país e entre as
populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobreza em sentido
relativo, tende não só a minar a coesão social — e, por este caminho, põe em
risco a democracia —, mas tem também um impacto negativo no plano económico com
a progressiva corrosão do « capital social », isto é, daquele conjunto de
relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis
em qualquer convivência civil.
E é
ainda a ciência económica a dizer-nos que uma situação estrutural de
insegurança gera comportamentos antiprodutivos e de desperdício de recursos
humanos, já que o trabalhador tende a adaptar-se passivamente aos mecanismos
automáticos, em vez de dar largas à criatividade. Também neste ponto se
verifica uma convergência entre ciência económica e ponderação moral. Os
custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções
económicas acarretam sempre também custos humanos.
Há ainda
que recordar que o nivelamento das culturas à dimensão tecnológica, se a curto
prazo pode favorecer a obtenção de lucros, a longo prazo dificulta o
enriquecimento recíproco e as dinâmicas de cooperação. É importante distinguir
entre considerações económicas ou sociológicas a curto prazo e a longo prazo. A
diminuição do nível de tutela dos direitos dos trabalhadores ou a renúncia a
mecanismos de redistribuição do rendimento, para fazer o país ganhar maior
competitividade internacional, impede a afirmação de um desenvolvimento de
longa duração. Por isso, há que avaliar atentamente as consequências que podem
ter sobre as pessoas as tendência actuais para uma economia a curto senão mesmo
curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido
da economia e dos seus fins[84],
bem como uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento, para
se corrigirem as suas disfunções e desvios. Na realidade, exige-o o estado de
saúde ecológica da terra;
33. Passados mais de quarenta anos da publicação da Populorum progressio, o seu tema de fundo
— precisamente o progresso — permanece ainda um problema em aberto, que
se tornou mais agudo e premente com a crise económico-financeira em curso. Se algumas
áreas do globo, outrora oprimidas pela pobreza, registaram mudanças notáveis em
termos de crescimento económico e de participação na produção mundial, há
outras zonas que vivem ainda numa situação de miséria comparável à existente
nos tempos de Paulo VI; antes, em qualquer caso pode-se mesmo falar de
agravamento. É significativo que algumas causas desta situação tivessem
sido já identificadas na Populorum progressio, como, por exemplo,
as altas tarifas aduaneiras impostas pelos países economicamente desenvolvidos
que ainda impedem aos produtos originários dos países pobres de chegar aos
mercados dos países ricos. Entretanto, outras causas que a encíclica tinha
apenas pressentido, apareceram depois com maior evidência; é o caso da
avaliação do processo de descolonização, então em pleno curso. Paulo VI
almejava um percurso de autonomia que havia de realizar-se na liberdade e na
paz; quarenta anos depois, temos de reconhecer como foi difícil tal percurso, tanto
por causa de novas formas de colonialismo e dependência de antigos e novos
países hegemónicos, como por graves irresponsabilidades internas aos próprios
países que se tornaram independentes.
A
novidade principal foi a explosão da interdependência mundial, já
conhecida comummente por globalização. Paulo VI tinha-a em parte previsto, mas
os termos e a impetuosidade com que aquela evoluiu são surpreendentes. Nascido
no âmbito dos países economicamente desenvolvidos, este processo por sua
própria natureza causou um envolvimento de todas as economias. Foi o motor
principal para a saída do subdesenvolvimento de regiões inteiras e, por si
mesmo, constitui uma grande oportunidade. Contudo, sem a guia da caridade na
verdade, este ímpeto mundial pode concorrer para criar riscos de danos até
agora desconhecidos e de novas divisões na família humana. Por isso, a caridade
e a verdade colocam diante de nós um compromisso inédito e criativo, sem dúvida
muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e torná-la capaz de
conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas, animando-as na
perspectiva daquela « civilização do amor », cuja semente Deus colocou em todo
o povo e cultura.
FRATERNIDADE,
DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO
E SOCIEDADE CIVIL
DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO
E SOCIEDADE CIVIL
34. A caridade na verdade coloca o homem perante a
admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob
múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma
visão meramente produtiva e utilarista da existência. O ser humano está feito
para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência. Por vezes o homem moderno convence-se,
erroneamente, de que é o único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade.
Trata-se de uma presunção, resultante do
encerramento egoísta em si mesmo, que provém — se queremos exprimi-lo em termos
de fé — do pecado das origens. Na sua sabedoria, a Igreja
sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação
dos fenómenos sociais e na construção da sociedade. « Ignorar que o homem tem
uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio
da educação, da política, da acção social e dos costumes »[85].
No elenco dos campos onde se manifestam os efeitos perniciosos do pecado, há
muito tempo que se acrescentou também o da economia. Temos uma prova evidente
disto mesmo nos dias que correm. Primeiro,
a convicção de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na
história apenas com a própria acção induziu o homem a identificar a felicidade
e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de acção social.
Depois, a convicção da exigência de autonomia para a economia, que não deve
aceitar « influências » de carácter moral, impeliu o homem a abusar dos
instrumentos económicos até mesmo de forma destrutiva. Com o passar do tempo,
estas convicções levaram a sistemas económicos, sociais e políticos que
espezinharam a liberdade da pessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, não
foram capazes de assegurar a justiça que prometiam. Deste modo, como afirmei na
encíclica Spe salvi[86],
elimina-se da história a esperança cristã, a qual, ao invés, constitui
um poderoso recurso social ao serviço do desenvolvimento humano integral,
procurado na liberdade e na justiça. A esperança encoraja a razão e dá-lhe a
força para orientar a vontade[87].
Já está presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade
na verdade e, ao mesmo tempo, manifesta-a. Sendo dom de Deus absolutamente
gratuito, irrompe na nossa vida como algo não devido, que transcende qualquer
norma de justiça. Por sua natureza, o dom ultrapassa o mérito; a sua regra é a
excedência. Aquele precede-nos, na nossa própria alma, como sinal da presença
de Deus em nós e das suas expectativas a nosso respeito. A verdade, que é dom
tal como a caridade, é maior do que nós, conforme ensina Santo Agostinho[88].
Também a verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência pessoal é-nos
primariamente « dada »; com efeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade não é produzida por nós, mas
sempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela « não nasce da
inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano »[89].
Enquanto
dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que constitui a
comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não conhecem barreiras
nem confins. A comunidade dos homens pode ser constituída por nós mesmos; mas,
com as nossas simples forças, nunca poderá ser uma comunidade plenamente
fraterna nem alargada para além de qualquer fronteira, ou seja, não poderá
tornar-se uma comunidade verdadeiramente universal: a unidade do género humano,
uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da
palavra de Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar,
por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num
segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social
e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao
princípio da gratuidade como expressão de fraternidade.
35. O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada,
é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua
dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas
relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as
suas carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça
comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre
sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a
importância que tem a justiça distributiva e a justiça social
para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um
contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que
se realiza. De facto, deixado unicamente ao princípio da equivalência de valor
dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que
necessita para bem funcionar. Sem formas internas de solidariedade e de
confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função
económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a
perda da confiança é uma perda grave.
Na Populorum progressio, Paulo VI sublinhava
oportunamente o facto de que seria o próprio sistema económico a tirar vantagem
da prática generalizada da justiça, uma vez que os primeiros a beneficiar do
desenvolvimento dos países pobres teriam sido os países ricos[90].
Não se tratava apenas de corrigir disfunções, através da assistência. Os pobres
não devem ser considerados um « fardo »[91]
mas um recurso, mesmo do ponto de vista estritamente económico. Há que
considerar errada a visão de quantos pensam que a economia de mercado tenha
estruturalmente necessidade duma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento
para poder funcionar do melhor modo. O mercado tem interesse em promover
emancipação, mas, para o fazer verdadeiramente, não pode contar apenas consigo
mesmo, porque não é capaz de produzir por si aquilo que está para além das suas
possibilidades; tem de haurir energias morais de outros sujeitos, que sejam
capazes de as gerar.
Desde
sempre a Igreja defende que não se há-de considerar o agir económico como
anti-social. De per si o mercado não é, nem se deve tornar, o lugar da
prepotência do forte sobre o débil. A sociedade não tem que se proteger do
mercado, como se o desenvolvimento deste implicasse ipso facto a morte
das relações autenticamente humanas. É verdade que o mercado pode ser orientado
de modo negativo, não porque isso esteja na sua natureza, mas porque uma certa
ideologia pode dirigi-lo em tal sentido. Não se deve esquecer que o mercado, em
estado puro, não existe; mas toma forma a partir das configurações culturais
que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e as finanças, enquanto
instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas
referimentos egoístas. Deste modo é possível conseguir transformar instrumentos
de per si bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que
produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser
chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade
pessoal e social.
A
doutrina social da Igreja considera possível viver relações autenticamente
humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no
âmbito da actividade económica e não apenas fora dela ou « depois » dela. A
área económica não é nem eticamente neutra nem de natureza desumana e
anti-social. Pertence à actividade do homem; e, precisamente porque humana,
deve ser eticamente estruturada e institucionalizada.
O grande
desafio que temos diante de nós — resultante das problemáticas do
desenvolvimento neste tempo de globalização, mas revestindo-se de maior
exigência com a crise económico-financeira — é mostrar, a nível tanto de
pensamento como de comportamentos, que não só não podem ser transcurados ou
atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a
honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais,
o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da
fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica
normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da
própria razão económica. Trata-se de uma exigência simultaneamente da caridade
e da verdade.
Na época
da globalização, a economia denota a influência de modelos competitivos ligados
a culturas muito diversas entre si. Os comportamentos económico-empresariais
daí resultantes possuem, na sua maioria, um ponto de encontro no respeito da
justiça comutativa. A vida económica tem, sem dúvida, necessidade do contrato,
para regular as relações de transacção entre valores equivalentes; mas precisa
igualmente de leis justas e de formas de redistribuição guiadas
pela política, para além de obras que tragam impresso o espírito do dom.
A economia globalizada parece privilegiar a primeira lógica, ou seja, a da
transacção contratual, mas directa ou indirectamente dá provas de necessitar
também das outras duas: a lógica política e a lógica do dom sem contrapartidas.
38. O meu antecessor João Paulo II sublinhara esta problemática,
quando, na Centesimus annus, destacou a necessidade
de um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a
sociedade civil[92].
Ele tinha identificado na sociedade civil o âmbito mais apropriado para uma
economia da gratuidade e da fraternidade, mas sem pretender negá-la nos
outros dois âmbitos. Hoje, podemos dizer que a vida económica deve ser
entendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estar
presente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, o aspecto da
reciprocidade fraterna. Na época da globalização, a actividade económica não
pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a
responsabilidade pela justiça e o bem comum em seus diversos sujeitos e
actores. Trata-se, em última análise, de uma forma concreta e profunda de
democracia económica. A solidariedade consiste primariamente em que todos se
sintam responsáveis por todos[93]
e, por conseguinte, não pode ser delegada só no Estado. Se, no passado, era
possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a
gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que,
sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça. Assim, temos
necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de
igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado
da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa
pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que
perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíproco confronto no mercado,
pode-se esperar uma espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e,
consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste
caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização
àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais
além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo.
39. Na Populorum progressio, Paulo VI pedia que
se configurasse um modelo de economia de mercado capaz de incluir, pelo
menos intencionalmente, todos os povos e não apenas aqueles adequadamente
habilitados. Solicitava que nos empenhássemos na promoção de um mundo mais
humano para todos, um mundo no qual « todos tenham qualquer coisa a dar e a
receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos
outros »[94].
Estendia assim ao plano universal as mesmas instâncias e aspirações contidas na
Rerum novarum, escrita quando pela primeira vez, em consequência da
revolução industrial, se afirmou a ideia — seguramente avançada para aquele
tempo — de que a ordem civil, para subsistir, tinha necessidade também da
intervenção distributiva do Estado. Hoje esta visão, além de ser posta em crise
pelos processos de abertura dos mercados e das sociedades, revela-se incompleta
para satisfazer as exigências duma economia plenamente humana. Aquilo que a
doutrina social da Igreja, partindo da sua visão do homem e da sociedade,
sempre defendeu, é hoje requerido também pelas dinâmicas características da
globalização.
Quando a
lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre si para continuar no
monopólio dos respectivos âmbitos de influência, com o passar do tempo definha
a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o
serviço gratuito, que são realidades diversas do « dar para ter », próprio da
lógica da transacção, e do « dar por dever », próprio da lógica dos
comportamentos públicos impostos por lei do Estado. A vitória sobre o
subdesenvolvimento exige que se actue não só sobre a melhoria das transacções
fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas
assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva
abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica
caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão. O binómio exclusivo
mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas económicas
solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo
se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal
como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto
o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco.
40. As actuais dinâmicas económicas internacionais, caracterizadas
por graves desvios e disfunções, requerem profundas mudanças inclusivamente
no modo de conceber a empresa. Antigas modalidades da vida empresarial
declinam, mas outras prometedoras se esboçam no horizonte. Um dos riscos
maiores é, sem dúvida, que a empresa preste contas quase exclusivamente a quem
nela investe, acabando assim por reduzir a sua valência social. Devido ao seu
crescimento de dimensão e à necessidade de capitais sempre maiores, são cada
vez menos as empresas que fazem referimento a um empresário estável que se sinta
responsável não apenas a curto mas a longo prazo da vida e dos resultados da
sua empresa, tal como diminui o número das que dependem de um único território.
Além disso, a chamada deslocalização da actividade produtiva pode atenuar no
empresário o sentido da responsabilidade para com os interessados, como os
trabalhadores, os fornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a
sociedade circundante mais ampla, em benefício dos accionistas, que não estão
ligados a um espaço específico, gozando por isso duma extraordinária
mobilidade; de facto, o mercado internacional dos capitais oferece hoje uma
grande liberdade de acção.
Mas é
verdade também que está a aumentar a consciência sobre a necessidade de uma
mais ampla « responsabilidade social » da empresa. Apesar de os parâmetros
éticos que guiam actualmente o debate sobre a responsabilidade social da
empresa não serem, segundo a perspectiva da doutrina social da Igreja, todos
aceitáveis, é um facto que se vai difundindo cada vez mais a convicção de que a
gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos
proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas
categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os
trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a
comunidade de referimento. Nos últimos anos, notou-se o crescimento duma classe
cosmopolita de gerentes, que muitas vezes respondem só às indicações dos
accionistas da empresa constituídos geralmente por fundos anónimos que estabelecem
de facto as suas remunerações. Todavia, hoje, há também muitos gerentes que,
através de análises clarividentes, se dão conta cada vez mais dos profundos
laços que a sua empresa tem com o território ou territórios, onde opera. Paulo
VI convidava a avaliar seriamente o dano que a transferência de capitais para o
estrangeiro, com exclusivas vantagens pessoais, pode causar à própria nação[95].
E João Paulo II advertia que investir tem sempre um significado moral,
para além de económico[96].
Tudo isto — há que reafirmá-lo — é válido também hoje, não obstante o mercado
dos capitais tenha sido muito liberalizado e as mentalidades tecnológicas
modernas possam induzir a pensar que investir seja apenas um facto técnico, e
não humano e ético. Não há motivo para negar que um certo capital possa ser
ocasião de bem, se investido no estrangeiro antes que na pátria; mas devem-se
ressalvar os vínculos de justiça, tendo em conta também o modo como aquele
capital se formou e os danos que causará às pessoas o seu não investimento nos
lugares onde o mesmo foi gerado[97].
É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros
seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo
sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, do seu serviço
concreto à economia real e duma adequada e oportuna promoção de iniciativas
económicas também nos países necessitados de desenvolvimento. Também não há
motivo para negar que a deslocalização, quando compreende investimentos e
formação, possa fazer bem às populações do país que a acolhe — o trabalho e o
conhecimento técnico são uma necessidade universal –; mas não é lícito
deslocalizar somente para gozar de especiais condições de favor ou, pior ainda,
para exploração, sem prestar uma verdadeira contribuição à sociedade local para
o nascimento de um robusto sistema produtivo e social, factor imprescindível
para um desenvolvimento estável.
41. Dentro do mesmo tema, é útil observar que o espírito
empresarial tem, e deve assumir cada vez mais, um significado polivalente.
A longa prevalência do binómio mercado-Estado habituou-nos a pensar
exclusivamente, por um lado, no empresário privado de tipo capitalista e, por
outro, no director estatal. Na realidade, o espírito empresarial há-de ser
entendido de modo articulado, como se depreende duma série de motivações
meta-económicas. O espírito empresarial, antes de ter significado profissional,
possui um significado humano[98];
está inscrito em cada trabalho, visto como « actus personæ »[99],
pelo que é bom oferecer a cada trabalhador a possibilidade de prestar a própria
contribuição, de tal modo que ele mesmo « saiba trabalhar ‘‘por conta própria''
»[100].
Ensinava Paulo VI, não sem motivo, que « todo o trabalhador é um criador »[101].
Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem trabalha e
às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de empresa, muito para
além da simples distinção entre « privado » e « público ». Cada uma requer e
exprime um espírito empresarial específico. A fim de realizar uma economia que,
num futuro próximo, saiba colocar-se ao serviço do bem comum nacional e
mundial, convém ter em conta este significado amplo de espírito empresarial.
Tal concepção mais ampla favorece o intercâmbio e a formação recíproca entre as
diversas tipologias de empresariado, com transferência de competências do mundo
sem lucro para aquele com lucro e vice-versa, do sector público para o âmbito
próprio da sociedade civil, do mundo das economias avançadas para aquele dos
países em vias de desenvolvimento.
Também a
« autoridade política » tem um significado polivalente, que não
se pode esquecer quando se procede à realização duma nova ordem
económico-produtiva, responsável socialmente e à medida do homem. Assim como se
pretende fomentar um espírito empresarial diferenciado no plano mundial, assim
também se deve promover uma autoridade política repartida e activa a vários
níveis. A economia integrada de nossos dias não elimina a função dos Estados,
antes obriga os governos a uma colaboração recíproca mais intensa. Razões de
sabedoria e prudência sugerem que não se proclame depressa demais o fim do
Estado; relativamente à solução da crise actual, a sua função parece destinada
a crescer, readquirindo muitas das suas competências. Além disso, existem
nações, cuja edificação ou reconstrução do Estado continua a ser um
elemento-chave do seu desenvolvimento. A ajuda internacional,
precisamente no âmbito de um projecto de solidariedade que tivesse em vista a
solução dos problemas económicos actuais, deveria sobretudo apoiar a
consolidação de sistemas constitucionais, jurídicos, administrativos nos países
que ainda não gozam de tais bens. A par das ajudas económicas, devem existir
outros apoios tendentes a reforçar as garantias próprias do Estado de
direito, um sistema de ordem pública e carcerário eficiente no respeito dos
direitos humanos, instituições verdadeiramente democráticas. Não é preciso que
o Estado tenha, em todo o lado, as mesmas características: o apoio para reforço
dos sistemas constitucionais débeis pode muito bem ser acompanhado pelo
desenvolvimento de outros sujeitos políticos de natureza cultural, social,
territorial ou religiosa, ao lado do Estado. A articulação da autoridade
política a nível local, nacional e internacional é, para além do mais, uma das
vias mestras para se chegar a poder orientar a globalização económica; e é
também o modo de evitar que esta mine realmente os alicerces da democracia.
42. Notam-se às vezes atitudes fatalistas a respeito da
globalização, como se as dinâmicas em acto fossem produzidas por forças
impessoais anónimas e por estruturas independentes da vontade humana[102].
A tal propósito, é bom recordar que a
globalização há-de ser entendida, sem dúvida, como um processo sócio-económico,
mas esta sua dimensão não é a única. Sob o processo mais visível, há a
realidade duma humanidade que se torna cada vez mais interligada; tal realidade
é constituída por pessoas e povos, para quem o referido processo deve ser de
utilidade e desenvolvimento[103],
graças à assunção das respectivas responsabilidades por parte tanto dos
indivíduos como da colectividade. A superação das fronteiras é um dado não
apenas material mas também cultural nas suas causas e efeitos. Se a
globalização for lida de maneira determinista, perdem-se os critérios para a
avaliar e orientar. Trata-se de uma realidade humana que pode ter, na sua
fonte, várias orientações culturais, sobre as quais é preciso fazer
discernimento. A verdade da globalização enquanto processo e o seu critério
ético fundamental provêm da unidade da família humana e do seu desenvolvimento
no bem. Por isso é preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma
orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do
processo de integração mundial.
Não obstante algumas limitações
estruturais, que não se hão-de negar nem absolutizar, « a globalização a
priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela »[104].
Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando com razoabilidade,
guiados pela caridade e a verdade. Opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito,
que acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos, com
o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportunidades
de desenvolvimento por ele oferecidas. Adequadamente concebidos e geridos,
os processos de globalização oferecem a possibilidade duma grande redistribuição
da riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido; se mal geridos,
podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade, bem como contagiar
com uma crise o mundo inteiro. É preciso corrigir as suas disfunções,
tantas vezes graves, que introduzem novas divisões entre os povos e no interior
dos mesmos, e fazer com que a redistribuição da riqueza não se verifique à
custa de uma redistribuição da pobreza ou até com o seu agravamento, como uma
má gestão da situação actual poderia fazer-nos temer. Durante muito tempo,
pensou-se que os povos pobres deveriam permanecer ancorados a um estádio
predeterminado de desenvolvimento, contentando-se com a filantropia dos povos
desenvolvidos. Contra esta mentalidade, tomou posição Paulo VI na Populorum progressio. Hoje, as forças
materiais de que se pode dispor para fazer aqueles povos sair da miséria são
potencialmente maiores do que outrora, mas acabaram por se aproveitar delas
prevalentemente os povos dos países desenvolvidos, que conseguiram desfrutar
melhor o processo de liberalização dos movimentos de capitais e do trabalho.
Por isso a difusão dos ambientes de bem-estar a nível mundial não deve ser
refreada por projectos egoístas, proteccionistas ou ditados por interesses
particulares. De facto, hoje, o envolvimento dos países emergentes ou em vias
de desenvolvimento permite gerir melhor a crise. A transição inerente ao
processo de globalização apresenta grandes dificuldades e perigos, que poderão
ser superados apenas se se souber tomar consciência daquela alma antropológica
e ética que, do mais fundo, impele a própria globalização para metas de
humanização solidária. Infelizmente esta alma é muitas vezes abafada e
condicionada por perspectivas ético-culturais de impostação individualista e
utilitarista. A globalização é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que
exige ser compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões,
incluindo a teológica. Isto permitirá viver e orientar a globalização da
humanidade em termos de relacionamento, comunhão e partilha.
DESENVOLVIMENTO DOS POVOS,
DIREITOS E DEVERES, AMBIENTE
DIREITOS E DEVERES, AMBIENTE
43. « A solidariedade universal é para nós não só um facto e um
benefício, mas também um dever »[105].
Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão de que não devem nada a
ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de direitos,
frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma
responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio. Por
isso, é importante invocar uma nova reflexão que faça ver como os direitos
pressupõem deveres, sem os quais o seu exercício se transforma em arbítrio[106].
Assiste-se hoje a uma grave contradição: enquanto, por um lado, se reivindicam
presuntos direitos, de carácter arbitrário e libertino, querendo vê-los
reconhecidos e promovidos pelas estruturas públicas, por outro existem direitos
elementares e fundamentais violados e negados a boa parte da humanidade[107].
Aparece com frequência assinalada uma relação entre a reivindicação do direito
ao supérfluo, senão mesmo à transgressão e ao vício, nas sociedades opulentes e
a falta de alimento, água potável, instrução básica, cuidados sanitários
elementares em certas regiões do mundo do subdesenvolvimento e também nas
periferias de grandes metrópoles. A relação está no facto de que os direitos
individuais, desvinculados de um quadro de deveres que lhes confira um sentido
completo, enlouquecem e alimentam uma espiral de exigências praticamente
ilimitada e sem critérios. A exasperação dos direitos desemboca no esquecimento
dos deveres. Estes delimitam os direitos porque remetem para o quadro
antropológico e ético cuja verdade é o âmbito onde os mesmos se inserem e,
deste modo, não descambam no arbítrio. Por este motivo, os deveres reforçam os
direitos e propõem a sua defesa e promoção como um compromisso a assumir ao
serviço do bem. Se, pelo contrário, os direitos do homem encontram o seu fundamento
apenas nas deliberações duma assembleia de cidadãos, podem ser alterados em
qualquer momento e, assim, o dever de os respeitar e promover atenua-se na
consciência comum. Então os governos e os organismos internacionais podem
esquecer a objectividade e « indisponibilidade » dos direitos. Quando isto
acontece, põe-se em perigo o verdadeiro desenvolvimento dos povos[108].
Semelhantes posições comprometem a autoridade dos organismos internacionais,
sobretudo aos olhos dos países mais carecidos de desenvolvimento. De facto,
estes pedem que a comunidade internacional assuma como um dever ajudá-los a serem
« artífices do seu destino »[109],
ou seja, a assumirem por sua vez deveres. A partilha dos deveres recíprocos
mobiliza muito mais do que a mera reivindicação de direitos.
A
abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e económica.
Grandes nações puderam sair da miséria, justamente graças ao grande número e às
capacidades dos seus habitantes. Pelo contrário, nações outrora prósperas
atravessam agora uma fase de incerteza e, em alguns casos, de declínio
precisamente por causa da diminuição da natalidade, problema crucial para as
sociedades de proeminente bem-estar. A
diminuição dos nascimentos, situando-se por vezes abaixo do chamado « índice de
substituição », põe em crise também os sistemas de assistência social, aumenta
os seus custos, contrai a acumulação de poupanças e, consequentemente, os
recursos financeiros necessários para os investimentos, reduz a
disponibilização de trabalhadores qualificados, restringe a reserva aonde ir
buscar os « cérebros » para as necessidades da nação. Além disso, as
famílias de pequena e, às vezes, pequeníssima dimensão correm o risco de
empobrecer as relações sociais e de não garantir formas eficazes de
solidariedade. São situações que apresentam sintomas de escassa confiança no
futuro e de cansaço moral. Deste modo, torna-se uma necessidade social, e mesmo
económica, continuar a propor às novas gerações a beleza da família e do
matrimónio, a correspondência de tais instituições às exigências mais profundas
do coração e da dignidade da pessoa. Nesta perspectiva, os Estados são chamados
a instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família,
fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da
sociedade[112],
preocupando-se também com os seus problemas económicos e fiscais, no respeito
da sua natureza relacional.
45. Dar resposta às exigências morais mais profundas da pessoa tem
também importantes e benéficas consequências no plano económico. De facto, a
economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de
uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa. Hoje fala-se muito de
ética em campo económico, financeiro, empresarial. Nascem centros de estudo e
percursos formativos de negócios éticos; difunde-se no mundo desenvolvido o
sistema das certificações éticas, na esteira do movimento de ideias nascido à
volta da responsabilidade social da empresa. Os bancos propõem contas e fundos
de investimento chamados « éticos ». Desenvolvem-se as « finanças éticas »,
sobretudo através do micro-crédito e, mais em geral, de micro-financiamentos.
Tais processos suscitam apreço e merecem amplo apoio. Os seus efeitos positivos
fazem-se sentir também nas áreas menos desenvolvidas da terra. Todavia, é bom
formar também um válido critério de discernimento, porque se nota um certo
abuso do adjectivo « ético », o qual, se usado vagamente, presta-se a designar
conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e
opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem.
Com
efeito, muito depende do sistema moral em que se baseia. Sobre este argumento,
a doutrina social da Igreja tem um contributo próprio e específico para dar,
que se funda na criação do homem « à imagem de Deus » (Gn 1, 27), um
dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor
transcendente das normas morais naturais. Uma ética económica que prescinda
destes dois pilares arrisca-se inevitavelmente a perder o seu cunho específico
e a prestar-se a instrumentalizações; mais concretamente, arrisca-se a aparecer
em função dos sistemas económico-financeiros existentes, em vez de servir de
correcção às disfunções dos mesmos. Além do mais, acabaria até por justificar o
financiamento de projectos que não são éticos. Por outro lado, não se deve
recorrer ao termo « ético » de modo ideologicamente discriminatório, dando a
perceber que não seriam éticas as iniciativas não dotadas formalmente de tal
qualificação. Um dado é essencial: a necessidade de trabalhar não só para que
nasçam sectores ou segmentos « éticos » da economia ou das finanças, mas também
para que toda a economia e as finanças sejam éticas: e não por uma rotulação
exterior, mas pelo respeito de exigências intrínsecas à sua própria natureza. A
tal respeito, se pronuncia com clareza a doutrina social da Igreja, que recorda
como a economia, em todas as suas extensões, seja um sector da actividade
humana[113].
46. Considerando as temáticas referentes à relação entre empresa
e ética e também a evolução que o sistema produtivo está a fazer, parece
que a distinção usada até agora entre empresas que têm por finalidade o lucro (profit)
e organizações que não buscam o lucro (non profit) já não é capaz de dar
cabalmente conta da realidade, nem de orientar eficazmente o futuro. Nestas
últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma ampla
área intermédia. Esta é constituída por empresas tradicionais mas que
subscrevem pactos de ajuda aos países atrasados, por fundações que são
expressão de empresas individuais, por grupos de empresas que se propõem
objectivos de utilidade social, pelo mundo diversificado dos sujeitos da
chamada economia civil e de comunhão. Não se trata apenas de um « terceiro
sector », mas de uma nova e ampla realidade complexa, que envolve o privado e o
público e que não exclui o lucro mas considera-o como instrumento para realizar
finalidades humanas e sociais. O facto de tais empresas distribuírem ou não os
ganhos ou de assumirem uma ou outra das configurações previstas pelas normas
jurídicas torna-se secundário relativamente à sua disponibilidade a conceber o lucro
como um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da
sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também encontrem, em
todos os países, adequada configuração jurídica e fiscal. Sem nada tirar à
importância e utilidade económica e social das formas tradicionais de empresa,
fazem evoluir o sistema para uma assunção mais clara e perfeita dos deveres por
parte dos sujeitos económicos. E não só... A própria pluralidade das formas
institucionais de empresa gera um mercado mais humano e simultaneamente mais
competitivo.
47. O fortalecimento das diversas tipologias de empresa, mormente
das que são capazes de conceber o lucro como um instrumento para alcançar
finalidades de humanização do mercado e das sociedades, deve ser procurado
também nos países que sofrem exclusão ou marginalização dos circuitos da
economia global, onde é muito importante avançar com projectos de
subsidiariedade devidamente concebida e gerida que tendam a potenciar os
direitos, mas prevendo sempre também a assunção das correlativas
responsabilidades. Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que
salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o
sujeito que primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento. A
preocupação principal é a melhoria das situações de vida das pessoas concretas
duma certa região, para que possam desempenhar aqueles deveres que actualmente
a indigência não lhes permite respeitar. A solicitude nunca pode ser uma
atitude abstracta. Para poderem adaptar-se às diversas situações, os programas
de desenvolvimento devem ser flexíveis; e as pessoas beneficiárias deveriam
estar envolvidas directamente na sua delineação e tornar-se protagonistas da
sua actuação. É necessário também aplicar os critérios da progressão e do
acompanhamento — incluindo a monitorização dos resultados — porque não há
receitas válidas universalmente; depende muito da gestão concreta das
intervenções. « São os povos os autores e primeiros responsáveis do próprio
desenvolvimento. Mas não o poderão realizar isolados »[114].
Esta advertência de Paulo VI é ainda mais válida hoje, com o processo de
progressiva integração que se vai consolidando na terra. As dinâmicas de
inclusão não têm nada de mecânico. As soluções hão-de ser calibradas olhando a
vida dos povos e das pessoas concretas com base numa ponderada avaliação de
cada situação. Ao lado dos macro-projectos servem os micro-projectos, e
sobretudo serve a mobilização real de todos os sujeitos da sociedade civil, das
pessoas tanto jurídicas como físicas.
A
cooperação internacional precisa de pessoas que partilhem o processo de
desenvolvimento económico e humano, através da solidariedade feita de presença,
acompanhamento, formação e respeito. Sob este ponto de vista, os próprios
organismos internacionais deveriam interrogar-se sob a real eficácia dos seus
aparatos burocráticos e administrativos, frequentemente muito dispendiosos. Às
vezes sucede que o destinatário das ajudas seja utilizado em função de quem o
ajuda e que os pobres sirvam para manter de pé dispendiosas organizações
burocráticas que reservam para sua própria conservação percentagens demasiado
elevadas dos recursos que, ao invés, deveriam ser aplicados no desenvolvimento.
Nesta perspectiva, seria desejável que todos os organismos internacionais e as
organizações não governamentais se comprometessem a uma plena transparência, informando
os doadores e a opinião pública acerca da percentagem de fundos recebidos
destinada aos programas de cooperação, acerca do verdadeiro conteúdo de tais
programas e, por último, acerca da configuração das despesas da própria
instituição.
48. O tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado
também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente
natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma
responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a
humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada
como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida
responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece
o resultado maravilhoso da intervenção criadora de Deus, de que o homem se pode
responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências —
materiais e imateriais — no respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria
criação. Se falta esta perspectiva, o homem acaba ou por considerar a natureza
um tabu intocável ou, ao contrário, por abusar dela. Nem uma nem outra destas
atitudes corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus.
A
natureza é expressão de um desígnio de amor e de verdade. Precede-nos,
tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida. Fala-nos do Criador (cf.
Rm 1, 20) e do seu amor pela humanidade. Está destinada, no fim dos tempos,
a ser « instaurada » em Cristo (cf. Ef 1, 9-10; Col 1, 19-20).
Por conseguinte, também ela é uma « vocação »[115].
A natureza está à nossa disposição, não como « um monte de lixo espalhado ao
acaso »[116],
mas como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos
quais o homem há-de tirar as devidas orientações para a « guardar e cultivar »
(Gn 2, 15). Mas é preciso
sublinhar também que é contrário ao verdadeiro desenvolvimento considerar a
natureza mais importante do que a própria pessoa humana. Esta posição induz a
comportamentos neo-pagãos ou a um novo panteísmo: só da natureza, entendida em
sentido puramente naturalista, não pode derivar a salvação para o homem.
Por outro lado, há que rejeitar também a posição oposta, que visa a sua
completa tecnicização, porque o ambiente natural não é apenas matéria de que
dispor a nosso bel-prazer, mas obra admirável do Criador, contendo nela uma «
gramática » que indica finalidades e critérios para uma utilização sapiente,
não instrumental nem arbitrária. Advêm, hoje, muitos danos ao desenvolvimento
precisamente destas concepções deformadas. Reduzir completamente a natureza a
um conjunto de simples dados reais acaba por ser fonte de violência contra o
ambiente e até por motivar acções desrespeitadoras da própria natureza do homem.
Esta, constituída não só de matéria mas também de espírito e, como tal, rica de
significados e de fins transcendentes a alcançar, tem um carácter normativo
também para a cultura. O homem interpreta e modela o ambiente natural através
da cultura, a qual, por sua vez, é orientada por meio da liberdade responsável,
atenta aos ditames da lei moral. Por isso, os projectos para um desenvolvimento
humano integral não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela
solidariedade e a justiça entre as gerações, tendo em conta os diversos
âmbitos: ecológico, jurídico, económico, político, cultural[117].
49. Hoje, as questões relacionadas com o cuidado e a preservação do
ambiente devem ter na devida consideração as problemáticas energéticas.
De facto, o açambarcamento dos recursos energéticos não renováveis por parte de
alguns Estados, grupos de poder e empresas constitui um grave impedimento para
o desenvolvimento dos países pobres. Estes não têm os meios económicos para
chegar às fontes energéticas não renováveis que existem, nem para financiar a
pesquisa de fontes novas e alternativas. A monopolização dos recursos naturais,
que em muitos casos se encontram precisamente nos países pobres, gera
exploração e frequentes conflitos entre as nações e dentro das mesmas. E muitas
vezes estes conflitos são travados precisamente no território de tais países,
com um pesado balanço em termos de mortes, destruições e maior degradação. A
comunidade internacional tem o imperioso dever de encontrar as vias
institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, com a
participação também dos países pobres, de modo a planificar em conjunto o
futuro.
Também
sobre este aspecto, há urgente necessidade moral de uma renovada
solidariedade, especialmente nas relações entre os países em vias de
desenvolvimento e os países altamente industrializados[118].
As sociedades tecnicamente avançadas podem e devem diminuir o consumo
energético seja porque as actividades manufactureiras evoluem, seja porque
entre os seus cidadãos reina maior sensibilidade ecológica. Além disso há que
acrescentar que, actualmente, é possível melhorar a eficiência energética e
fazer avançar a pesquisa de energias alternativas; mas é necessária também uma
redistribuição mundial dos recursos energéticos, de modo que os próprios países
desprovidos possam ter acesso aos mesmos. O seu destino não pode ser deixado
nas mãos do primeiro a chegar nem estar sujeito à lógica do mais forte. Trata-se
de problemas relevantes que, para ser enfrentados de modo adequado, requerem da
parte de todos uma responsável tomada de consciência das consequências que
recairão sobre as novas gerações, principalmente sobre a imensidade de jovens
presentes nos povos pobres, que « reclamam a sua parte activa na construção de
um mundo melhor »[119].
50. Esta responsabilidade é global, porque não diz respeito somente
à energia, mas a toda a criação, que não devemos deixar às novas gerações
depauperada dos seus recursos. É lícito ao homem exercer um governo
responsável sobre a natureza para a guardar, fazer frutificar e cultivar
inclusive com formas novas e tecnologias avançadas, para que possa acolher e
alimentar condignamente a população que a habita. Há espaço para todos nesta
nossa terra: aqui a família humana inteira deve encontrar os recursos necessários
para viver decorosamente, com a ajuda da própria natureza, dom de Deus aos seus
filhos, e com o empenho do seu próprio trabalho e inventiva. Devemos, porém,
sentir como gravíssimo o dever de entregar a terra às novas gerações num estado
tal que também elas possam dignamente habitá-la e continuar a cultivá-la. Isto
implica « o empenho de decidir juntos depois de ter ponderado responsavelmente
qual a estrada a percorrer, com o objectivo de reforçar aquela aliança entre
ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem
provimos e para Quem estamos a caminho »[120].
É desejável que a comunidade internacional e os diversos governos saibam
contrastar, de maneira eficaz, as modalidades de utilização do ambiente que
sejam danosas para o mesmo. É igualmente forçoso que se empreendam, por parte
das autoridades competentes, todos os esforços necessários para que os custos
económicos e sociais derivados do uso dos recursos ambientais comuns sejam
reconhecidos de maneira transparente e plenamente suportados por quem deles
usufrui e não por outras populações nem pelas gerações futuras: a protecção do
ambiente, dos recursos e do clima requer que todos os responsáveis
internacionais actuem conjuntamente e se demonstrem prontos a agir de boa fé,
no respeito da lei e da solidariedade para com as regiões mais débeis da terra[121].
Uma das maiores tarefas da economia é precisamente um uso mais eficiente dos
recursos, não o abuso, tendo sempre presente que a noção de eficiência não é
axiologicamente neutra.
51. As modalidades com que o homem trata o ambiente influem sobre
as modalidades com que se trata a si mesmo, e vice-versa. Isto chama a
sociedade actual a uma séria revisão do seu estilo de vida que, em muitas
partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar aos danos que
daí derivam[122].
É necessária uma real mudança de mentalidade que nos induza a adoptar novos
estilos de vida, « nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a
comunhão com os outros homens para um crescimento comum sejam os elementos que
determinam as opções dos consumos, das poupanças e dos investimentos »[123].
Toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica provoca danos ambientais,
assim como a degradação ambiental por sua vez gera insatisfação nas relações
sociais. A natureza, especialmente no nosso tempo, está tão integrada nas
dinâmicas sociais e culturais que quase já não constitui uma variável
independente. A desertificação e a penúria produtiva de algumas áreas agrícolas
são fruto também do empobrecimento das populações que as habitam e do seu
atraso. Incentivando o desenvolvimento económico e cultural daquelas
populações, tutela-se também a natureza. Além disso, quantos recursos naturais
são devastados pela guerra! A paz dos povos e entre os povos permitiria também
uma maior preservação da natureza. O açambarcamento dos recursos, especialmente
da água, pode provocar graves conflitos entre as populações envolvidas. Um
acordo pacífico sobre o uso dos recursos pode salvaguardar a natureza e,
simultaneamente, o bem-estar das sociedades interessadas.
A Igreja
sente o seu peso de responsabilidade pela criação e deve
fazer valer esta responsabilidade também em público. Ao fazê-lo,
não tem apenas de defender a terra, a água e o ar como dons da criação que
pertencem a todos, mas deve sobretudo proteger o homem da destruição de si
mesmo. Requer-se uma espécie de ecologia do homem, entendida no justo sentido.
De facto, a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que
molda a convivência humana: quando a « ecologia humana » [124]
é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental.
Tal como as virtudes humanas são intercomunicantes, de modo que o
enfraquecimento de uma põe em risco também as outras, assim também o sistema
ecológico se rege sobre o respeito de um projecto que se refere tanto à sã
convivência em sociedade como ao bom relacionamento com a natureza.
Para
preservar a natureza não basta intervir com incentivos ou penalizações
económicas, nem é suficiente uma instrução adequada. Trata-se de instrumentos
importantes, mas o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral. Se não é respeitado o direito à vida e à morte natural,
se se torna artificial a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são
sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder
o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental. É uma contradição pedir às novas gerações o
respeito do ambiente natural, quando a educação e as leis não as ajudam a
respeitar-se a si mesmas. O livro da natureza é uno e indivisível, tanto
sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do
matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento
humano integral. Os deveres que temos para com o ambiente estão ligados com os
deveres que temos para com a pessoa considerada em si mesma e em relação com os
outros; não se podem exigir uns e espezinhar os outros. Esta é uma grave
antinomia da mentalidade e do costume actual, que avilta a pessoa, transtorna o
ambiente e prejudica a sociedade.
A COLABORAÇÃO
DA FAMÍLIA HUMANA
DA FAMÍLIA HUMANA
53. Uma das pobrezas mais profundas que o homem pode experimentar é
a solidão. Vistas bem as coisas, as outras pobrezas, incluindo a material,
também nascem do isolamento, de não ser amado ou da dificuldade de amar. As
pobrezas frequentemente nasceram da recusa do amor de Deus, de uma originária e
trágica reclusão do homem em si próprio, que pensa que se basta a si mesmo ou
então que é só um facto insignificante e passageiro, um « estrangeiro » num
universo formado por acaso. O homem aliena-se quando fica sozinho ou se afasta
da realidade, quando renuncia a pensar e a crer num Fundamento[125].
A humanidade inteira aliena-se quando se entrega a projectos unicamente
humanos, a ideologias e a falsas utopias[126].
A humanidade aparece, hoje, muito mais interactiva do que no passado: esta maior
proximidade deve transformar-se em verdadeira comunhão. O desenvolvimento
dos povos depende sobretudo do reconhecimento que são uma só família, a
qual colabora em verdadeira comunhão e é formada por sujeitos que não se
limitam a viver uns ao lado dos outros[127].
Observava
Paulo VI que « o mundo sofre por falta de convicções »[128].
A afirmação quer exprimir não apenas uma constatação, mas sobretudo um voto:
serve um novo ímpeto do pensamento para compreender melhor as implicações do
facto de sermos uma família; a interacção entre os povos da terra chama-nos a
este ímpeto, para que a integração se verifique sob o signo da solidariedade[129],
e não da marginalização. Tal pensamento obriga a um aprofundamento crítico e
axiológico da categoria relação. Trata-se de uma tarefa que não pode ser
desempenhada só pelas ciências sociais, mas requer a contribuição de ciências
como a metafísica e a teologia para ver lucidamente a dignidade transcendente
do homem.
De
natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações interpessoais:
quanto mais as vive de forma autêntica, tanto mais amadurece a própria
identidade pessoal. Não é isolando-se
que o homem se valoriza a si mesmo, mas relacionando-se com os outros e com
Deus, pelo que estas relações são de importância fundamental. Isto vale
também para os povos; por isso é muito útil para o seu desenvolvimento uma
visão metafísica da relação entre as pessoas. A tal respeito, a razão encontra
inspiração e orientação na revelação cristã, segundo a qual a comunidade dos
homens não absorve em si a pessoa aniquilando a sua autonomia, como acontece
nas várias formas de totalitarismo, mas valoriza-a ainda mais porque a relação
entre pessoa e comunidade é feita de um todo para outro todo[130].
Do mesmo modo que a comunidade familiar não anula em si as pessoas que a
compõem e a própria Igreja valoriza plenamente a « nova criatura » (Gal 6,
15; 2 Cor 5, 17) que pelo baptismo se insere no seu Corpo vivo, assim
também a unidade da família humana não anula em si as pessoas, os povos e as
culturas, mas torna-os mais transparentes reciprocamente, mais unidos nas suas
legítimas diversidades.
54. O tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional
de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana,
que se constrói na solidariedade tendo por base os valores fundamentais da
justiça e da paz. Esta perspectiva encontra um decisivo esclarecimento na
relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina. A Trindade é absoluta unidade, enquanto as
três Pessoas divinas são pura relação. A
transparência recíproca entre as Pessoas divinas é plena, e a ligação de uma
com a outra total, porque constituem uma unidade e unicidade absoluta. Deus quer-nos associar também a esta
realidade de comunhão: « para que sejam um como Nós somos um » (Jo 17,
22). A Igreja é sinal e instrumento desta unidade[131].
As próprias relações entre os homens, ao longo da história, só podem ganhar com
a referência a este Modelo divino. De modo particular compreende-se, à luz
do mistério revelado da Trindade, que a verdadeira abertura não significa
dispersão centrífuga, mas profunda compenetração. O mesmo resulta das
experiências humanas comuns do amor e da verdade. Como o amor sacramental entre
os esposos os une espiritualmente a ponto de formarem « uma só carne » (Gn
2, 24; Mt 19, 5; Ef 5, 31) e, de dois que eram, faz uma unidade
relacional e real, de forma análoga a verdade une os espíritos entre si e
fá-los pensar em uníssono, atraindo-os e unindo-os nela.
Por este
motivo, se é verdade, por um lado, que o desenvolvimento tem necessidade das
religiões e das culturas dos diversos povos, por outro, não o é menos a
necessidade de um adequado discernimento. A
liberdade religiosa não significa indiferentismo religioso, nem implica que
todas as religiões sejam iguais[133].
Para a construção da comunidade social no respeito do bem comum, torna-se
necessário, sobretudo para quem exerce o poder político, o discernimento sobre
o contributo das culturas e das religiões. Tal discernimento deverá basear-se
sobre o critério da caridade e da verdade. Dado que está em jogo o
desenvolvimento das pessoas e dos povos, aquele há-de ter em conta a
possibilidade de emancipação e de inclusão na perspectiva de uma comunidade
humana verdadeiramente universal. O critério « o homem todo e todos os homens »
serve para avaliar também as culturas e as religiões. O cristianismo, religião
do « Deus de rosto humano »[134],
traz em si mesmo tal critério.
57. O diálogo fecundo entre fé e razão não pode deixar de tornar
mais eficaz a acção da caridade na sociedade, e constitui o quadro mais
apropriado para incentivar a colaboração fraterna entre crentes e não
crentes na perspectiva comum de trabalhar pela justiça e a paz da
humanidade. Na constituição pastoral Gaudium et spes, os Padres conciliares
afirmavam: « Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do
homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral
entre crentes e não crentes »[136].
Segundo os crentes, o mundo não é fruto do acaso nem da necessidade, mas de um
projecto de Deus. Daqui nasce o dever que os crentes têm de unir os seus
esforços com todos os homens e mulheres de boa vontade de outras religiões ou
não crentes, para que este nosso mundo corresponda efectivamente ao projecto
divino: viver como uma família, sob o olhar do seu Criador. Particular
manifestação da caridade e critério orientador para a colaboração fraterna de
crentes e não crentes é, sem dúvida, o princípio de subsidiariedade[137],
expressão da inalienável liberdade humana. A subsidiariedade é, antes de mais
nada, uma ajuda à pessoa, na autonomia dos corpos intermédios. Tal ajuda é
oferecida quando a pessoa e os sujeitos sociais não conseguem operar por si
sós, e implica sempre finalidades emancipativas, porque favorece a liberdade e
a participação enquanto assunção de responsabilidades. A subsidiariedade
respeita a dignidade da pessoa, na qual vê um sujeito sempre capaz de dar algo
aos outros. Ao reconhecer na reciprocidade a constituição íntima do ser humano,
a subsidiariedade é o antídoto mais eficaz contra toda a forma de
assistencialismo paternalista. Pode motivar tanto a múltipla articulação dos
vários níveis e consequentemente a pluralidade dos sujeitos, como a sua
coordenação. Trata-se, pois, de um princípio particularmente idóneo para
governar a globalização e orientá-la para um verdadeiro desenvolvimento humano.
Para não se gerar um perigoso poder universal de tipo monocrático, o governo
da globalização deve ser de tipo subsidiário, articulado segundo vários e
diferenciados níveis que colaborem reciprocamente. A globalização tem
necessidade, sem dúvida, de autoridade, enquanto põe o problema de um bem comum
global a alcançar; mas tal autoridade deverá ser organizada de modo subsidiário
e poliárquico[138],
seja para não lesar a liberdade, seja para resultar concretamente eficaz.
58. O princípio de subsidiariedade há-de ser mantido estritamente
ligado com o princípio de solidariedade e vice-versa, porque, se a
subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a
solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o
sujeito necessitado. Esta regra de carácter geral deve ser tida em grande
consideração também quando se enfrentam as temáticas referentes às ajudas
internacionais destinadas ao desenvolvimento. Estas, independentemente das
intenções dos doadores, podem por vezes manter um povo num estado de
dependência e até favorecer situações de sujeição local e de exploração dentro
do país ajudado. Para serem verdadeiramente tais, as ajudas económicas não
devem visar segundos fins. Hão-de ser concedidas envolvendo não só os governos
dos países interessados, mas também os agentes económicos locais e os sujeitos
da sociedade civil portadores de cultura, incluindo as Igrejas locais. Os
programas de ajuda devem assumir sempre mais as características de programas
integrados e participados a partir de baixo. A verdade é que o maior recurso a
valorizar nos países que são assistidos no desenvolvimento é o recurso humano:
este é o autêntico capital que se há-de fazer crescer para assegurar aos países
mais pobres um verdadeiro futuro autónomo. Há que recordar também que, no campo
económico, a principal ajuda de que têm necessidade os países em vias de
desenvolvimento é a de permitir e favorecer a progressiva inserção dos seus produtos
nos mercados internacionais, tornando possível assim a sua plena participação
na vida económica internacional. Muitas vezes, no passado, as ajudas serviram
apenas para criar mercados marginais para os produtos destes países. Isto,
frequentemente, fica a dever-se à falta de uma verdadeira procura destes
produtos; por isso, é necessário ajudar tais países a melhorar os seus produtos
e a adaptá-los melhor à procura. Além disso, alguns temem a concorrência das
importações de produtos, normalmente agrícolas, provenientes dos países
economicamente pobres; contudo devem-se recordar que, para estes países, a
possibilidade de comercializar tais produtos significa muitas vezes garantir a
sua sobrevivência a breve e longo prazo. Um comércio internacional justo e equilibrado
no campo agrícola pode trazer benefícios a todos, quer do lado da oferta quer
do lado da procura. Por este motivo, é preciso não só orientar comercialmente
estas produções, mas também estabelecer regras comerciais internacionais que as
apoiem e reforçar o financiamento ao desenvolvimento para tornar mais
produtivas estas economias.
59. A cooperação no desenvolvimento não deve
limitar-se apenas à dimensão económica, mas há-de tornar-se uma grande
ocasião de encontro cultural e humano. Se os sujeitos da cooperação dos
países economicamente desenvolvidos não têm em conta — como às vezes sucede — a
identidade cultural, própria e alheia, feita de valores humanos, não podem
instaurar algum diálogo profundo com os cidadãos dos países pobres. Se estes, por
sua vez, se abrem indiferentemente e sem discernimento a qualquer proposta
cultural, ficam sem condições para assumir a responsabilidade do seu autêntico
desenvolvimento[139].
As sociedades tecnologicamente avançadas não devem confundir o próprio
desenvolvimento tecnológico com uma suposta superioridade cultural, mas hão-de
descobrir em si próprias virtudes, por vezes esquecidas, que as fizeram
florescer ao longo da história. As sociedades em crescimento devem permanecer
fiéis a tudo o que há de verdadeiramente humano nas suas tradições, evitando de
lhe sobrepor automaticamente os mecanismos da civilização tecnológica
globalizada. Existem, em todas as culturas, singulares e variadas convergências
éticas, expressão de uma mesma natureza humana querida pelo Criador e que a
sabedoria ética da humanidade chama lei natural[140].
Esta lei moral universal é um fundamento firme de todo o diálogo cultural,
religioso e político e permite que o multiforme pluralismo das várias culturas
não se desvie da busca comum da verdade, do bem e de Deus. Por isso, a adesão a
esta lei escrita nos corações é o pressuposto de qualquer colaboração social
construtiva. Em todas as culturas existem pesos de que libertar-se, sombras a
que subtrair-se. A fé cristã, que se encarna nas culturas transcendendo-as,
pode ajudá-las a crescer na fraternização e solidariedade universais com
benefício para o desenvolvimento comunitário e mundial.
60. Quando se procurarem soluções para a crise económica actual,
a ajuda ao desenvolvimento dos países pobres deve ser considerada como
verdadeiro instrumento de criação de riqueza para todos. Que projecto de
ajuda pode abrir perspectivas tão significativas de mais valia — mesmo da
economia mundial — como o apoio a populações que se encontram ainda numa fase
inicial ou pouco avançada do seu processo de desenvolvimento económico? Nesta
linha, os Estados economicamente mais desenvolvidos hão-de fazer o possível por
destinar quotas maiores do seu produto interno bruto para as ajudas ao
desenvolvimento, respeitando os compromissos que, sobre este ponto, foram
tomados a nível de comunidade internacional. Poderão fazê-lo inclusivamente
revendo as políticas internas de assistência e de solidariedade social,
aplicando-lhes o princípio de subsidiariedade e criando sistemas mais
integrativos de previdência social, com a participação activa dos sujeitos
privados e da sociedade civil. Deste modo, pode-se até melhorar os serviços
sociais e de assistência e simultaneamente poupar recursos, eliminando
desperdícios e subvenções abusivas, para destinar à solidariedade
internacional. Um sistema de solidariedade social melhor comparticipado e
organizado, menos burocrático sem ficar menos coordenado, permitiria valorizar
muitas energias, hoje adormecidas, em benefício também da solidariedade entre
os povos.
Uma
possibilidade de ajuda para o desenvolvimento poderia derivar da aplicação
eficaz da chamada subsidiariedade fiscal, que permitiria aos cidadãos decidirem
a destinação de quotas dos seus impostos versados ao Estado. Evitando
degenerações particularistas, isso pode servir de incentivo para formas de
solidariedade social a partir de baixo, com óbvios benefícios também na
vertente da solidariedade para o desenvolvimento.
61. Uma solidariedade mais ampla a nível internacional exprime-se,
antes de mais nada, continuando a promover, mesmo em condições de crise
económica, maior acesso à educação, já que esta é condição essencial
para a eficácia da própria cooperação internacional. Com o termo « educação »,
não se pretende referir apenas à instrução escolar ou à formação para o
trabalho — ambas, causas importantes de desenvolvimento — mas à formação
completa da pessoa. A este propósito, deve-se sublinhar um aspecto do problema:
para educar, é preciso saber quem é a pessoa humana, conhecer a sua natureza. A
progressiva difusão de uma visão relativista desta coloca sérios problemas à
educação, sobretudo à educação moral, prejudicando a sua extensão a nível
universal. Cedendo a tal relativismo, ficam todos mais pobres, com
consequências negativas também sobre a eficácia da ajuda às populações mais
carecidas, que não têm necessidade apenas de meios económicos ou técnicos, mas
também de métodos e meios pedagógicos que ajudem as pessoas a chegar à sua
plena realização humana.
Um
exemplo da relevância deste problema temo-lo no fenómeno do turismo
internacional[141],
que pode constituir notável factor de desenvolvimento económico e de
crescimento cultural, mas pode também transformar-se em ocasião de exploração e
degradação moral. A situação actual oferece singulares oportunidades para que
os aspectos económicos do desenvolvimento, ou seja, os fluxos de dinheiro e o
nascimento em sede local de significativas experiências empresariais, cheguem a
combinar-se com os aspectos culturais, sendo o educativo o primeiro deles. Há
casos onde isso ocorre, mas em muitos outros o turismo internacional é fenómeno
deseducativo tanto para o turista como para as populações locais. Com
frequência, estas são confrontadas com comportamentos imorais ou mesmo
perversos, como no caso do chamado turismo sexual, em que são sacrificados
muitos seres humanos, mesmo de tenra idade. É doloroso constatar que isto
acontece frequentemente com o aval dos governos locais, com o silêncio dos
governos donde provêm os turistas e com a cumplicidade de muitos agentes do
sector. Mesmo quando não se chega tão longe, o turismo internacional não
raramente é vivido de modo consumista e hedonista, como evasão e com
modalidades de organização típicas dos países de proveniência, e assim não se
favorece um verdadeiro encontro entre pessoas e culturas. Por isso, é preciso
pensar num turismo diverso, capaz de promover verdadeiro conhecimento
recíproco, sem tirar espaço ao repouso e ao são divertimento: um turismo deste
género há-de ser incrementado, graças também a uma ligação mais estreita com as
experiências de cooperação internacional e de empresariado para o
desenvolvimento.
62. Outro aspecto merecedor de atenção, ao tratar do desenvolvimento
humano integral, é o fenómeno das migrações. É um fenómeno
impressionante pela quantidade de pessoas envolvidas, pelas problemáticas
sociais, económicas, políticas, culturais e religiosas que levanta, pelos
desafios dramáticos que coloca às comunidades nacional e internacional. Pode-se
dizer que estamos perante um fenómeno social de natureza epocal, que requer uma
forte e clarividente política de cooperação internacional para ser
convenientemente enfrentado. Esta política há-de ser desenvolvida a partir de
uma estreita colaboração entre os países donde partem os emigrantes e os países
de chegada; há-de ser acompanhada por adequadas normativas internacionais
capazes de harmonizar os diversos sistemas legislativos, na perspectiva de
salvaguardar as exigências e os direitos das pessoas e das famílias emigradas
e, ao mesmo tempo, os das sociedades de chegada dos próprios emigrantes. Nenhum
país se pode considerar capaz de enfrentar, sozinho, os problemas migratórios
do nosso tempo. Todos somos testemunhas da carga de sofrimentos, contrariedades
e aspirações que acompanha os fluxos migratórios. Como é sabido, o fenómeno é
de gestão complicada; todavia é certo que os trabalhadores estrangeiros, não
obstante as dificuldades relacionadas com a sua integração, prestam com o seu
trabalho um contributo significativo para o desenvolvimento económico do país
de acolhimento e também do país de origem com as remessas monetárias.
Obviamente, tais trabalhadores não podem ser considerados como simples
mercadoria ou mera força de trabalho; por isso, não devem ser tratados como
qualquer outro factor de produção. Todo o imigrante é uma pessoa humana e,
enquanto tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que hão-de ser
respeitados por todos em qualquer situação[142].
63. Ao considerar os problemas do desenvolvimento, não se pode
deixar de pôr em evidência o nexo directo entre pobreza e desemprego. Em
muitos casos, os pobres são o resultado da violação da dignidade do trabalho
humano, seja porque as suas possibilidades são limitadas (desemprego,
subemprego), seja porque são desvalorizados « os direitos que dele brotam,
especialmente o direito ao justo salário, à segurança da pessoa do trabalhador e
da sua família »[143].
Por isso, já no dia 1 de Maio de 2000, o meu predecessor João Paulo II, de
venerada memória, lançou um apelo, por ocasião do Jubileu dos Trabalhadores,
para « uma coligação mundial em favor do trabalho decente »[144],
encorajando a estratégia da Organização Internacional do Trabalho. Conferia,
assim, uma forte valência moral a este objectivo, enquanto aspiração das
famílias em todos os países do mundo. Qual é o significado da palavra «
decência » aplicada ao trabalho? Significa um trabalho que, em cada sociedade,
seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher: um trabalho
escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres,
ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos
trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que
consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos
filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita
aos trabalhadores organizarem-se livremente e fazerem ouvir a sua voz; um
trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes a
nível pessoal familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores
aposentados uma condição decorosa.
64. Ao reflectir sobre este
tema do trabalho, é oportuna uma chamada de atenção também para a urgente
necessidade de as organizações sindicais dos trabalhadores – desde
sempre encorajadas e apoiadas pela Igreja — se abrirem às novas
perspectivas que surgem no âmbito laboral. Superando as limitações próprias dos
sindicatos de categoria, as organizações sindicais são chamadas a
responsabilizar-se pelos novos problemas das nossas sociedades: refiro-me, por
exemplo, ao conjunto de questões que os peritos de ciências sociais identificam
no conflito entre pessoa-trabalhadora e pessoa-consumidora. Sem ter
necessariamente de abraçar a tese duma efectiva passagem da centralidade do
trabalhador para a do consumidor, parece em todo o caso que também este seja um
terreno para experiências sindicais inovadoras. O contexto global em que se
realiza o trabalho requer igualmente que as organizações sindicais nacionais,
fechadas prevalentemente na defesa dos interesses dos próprios inscritos,
volvam o olhar também para os não inscritos, particularmente para os
trabalhadores dos países em vias de desenvolvimento, onde frequentemente os
direitos sociais são violados. A defesa destes trabalhadores, promovida com oportunas
iniciativas também nos países de origem, permitirá às organizações sindicais
porem em evidência as autênticas razões éticas e culturais que lhes
consentiram, em contextos sociais e laborais diferentes, ser um factor decisivo
para o desenvolvimento. Continua sempre válido o ensinamento da Igreja que
propõe a distinção de papéis e funções entre sindicato e política. Esta
distinção possibilitará às organizações sindicais individualizarem na sociedade
civil o âmbito mais ajustado para a sua acção necessária de defesa e promoção
do mundo do trabalho, sobretudo a favor dos trabalhadores explorados e não
representados, cuja amarga condição resulta frequentemente ignorada pelo olhar
distraído da sociedade.
65. Em seguida, é preciso que as finanças enquanto tais — com
estruturas e modalidades de funcionamento necessariamente renovadas depois da
sua má utilização que prejudicou a economia real — voltem a ser um instrumento
que tenha em vista a melhor produção de riqueza e o desenvolvimento.
Enquanto instrumentos, a economia e as finanças em toda a respectiva extensão,
e não apenas em alguns dos seus sectores, devem ser utilizadas de modo ético a
fim de criar as condições adequadas para o desenvolvimento do homem e dos
povos. É certamente útil, senão mesmo indispensável em certas circunstâncias,
dar vida a iniciativas financeiras nas quais predomine a dimensão humanitária.
Isto, porém, não deve fazer esquecer que o inteiro sistema financeiro deve ser
orientado para dar apoio a um verdadeiro desenvolvimento. Sobretudo, é
necessário que não se contraponha o intuito de fazer o bem ao da efectiva
capacidade de produzir bens. Os operadores das finanças devem redescobrir o
fundamento ético próprio da sua actividade, para não abusarem de instrumentos
sofisticados que possam atraiçoar os aforradores. Recta intenção, transparência
e busca de bons resultados são compatíveis entre si e não devem jamais ser
separados. Se o amor é inteligente, sabe encontrar também os modos para agir
segundo uma previdente e justa conveniência, como significativamente indicam
muitas experiências no campo do crédito cooperativo.
Tanto
uma regulamentação do sector capaz de assegurar os sujeitos mais débeis e
impedir escandalosas especulações, como a experimentação de novas formas de
financiamento destinadas a favorecer projectos de desenvolvimento, são
experiências positivas que hão-de ser aprofundadas e encorajadas, invocando a
responsabilidade própria do aforrador. Também a experiência do
micro-financiamento, que mergulha as próprias raízes na reflexão e nas
obras dos humanistas civis (penso nomeadamente no nascimento dos montepios),
há-de ser revigorada e sistematizada, sobretudo nestes tempos em que os
problemas financeiros podem tornar-se dramáticos para muitos sectores mais
vulneráveis da população, que devem ser tutelados dos riscos de usura ou do
desespero. Os sujeitos mais débeis hão-de ser educados para se defender da
usura, do mesmo modo que os povos pobres devem ser educados para tirar real
vantagem do micro-crédito, desencorajando assim as formas de exploração
possíveis nestes dois campos. Uma vez que existem novas formas de pobreza
também nos países ricos, o micro-financiamento pode proporcionar ajudas
concretas para a criação de iniciativas e sectores novos em favor das classes
débeis da sociedade mesmo numa fase de possível empobrecimento da própria
sociedade.
67. Perante o crescimento incessante da interdependência mundial,
sente-se imenso — mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial — a urgência
de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura
económica e financeira internacional, para que seja possível uma real
concretização do conceito de família de nações. De igual modo sente-se a
urgência de encontrar formas inovadoras para actuar o princípio da
responsabilidade de proteger [146]
e para atribuir também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões
comuns. Isto revela-se necessário precisamente no âmbito de um ordenamento
político, jurídico e económico que incremente e guie a colaboração
internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos. Para o
governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise de
modo a prevenir o agravamento da mesma e em consequência maiores
desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança
alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar
os fluxos migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade política
mundial, delineada já pelo meu predecessor, o Beato João XXIII. A referida
Autoridade deverá regular-se pelo direito, ater-se coerentemente aos princípios
de subsidiariedade e solidariedade, estar orientada para a consecução do bem
comum[147],
comprometer-se na realização de um autêntico desenvolvimento humano integral
inspirado nos valores da caridade na
verdade. Além disso, uma tal
Autoridade deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para
garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos
direitos[148].
Obviamente, deve gozar da faculdade de fazer com que as partes respeitem as
próprias decisões, bem como as medidas coordenadas e adoptadas nos diversos
fóruns internacionais. É que, se isso faltasse, o direito internacional, não
obstante os grandes progressos realizados nos vários campos, correria o risco
de ser condicionado pelos equilíbrios de poder entre os mais fortes. O
desenvolvimento integral dos povos e a colaboração internacional exigem que
seja instituído um grau superior de ordenamento internacional de tipo
subsidiário para o governo da globalização [149]
e que se dê finalmente actuação a uma ordem social conforme à ordem moral e
àquela ligação entre esfera moral e social, entre política e esfera económica e
civil que aparece já perspectivada no Estatuto das Nações Unidas.
O DESENVOLVIMENTO
DOS POVOS E A TÉCNICA
DOS POVOS E A TÉCNICA
68. O tema do desenvolvimento dos povos está intimamente ligado com
o do desenvolvimento de cada indivíduo. Por sua natureza, a pessoa humana está
dinamicamente orientada para o próprio desenvolvimento. Não se trata de um
desenvolvimento garantido por mecanismos naturais, porque cada um de nós sabe
que é capaz de realizar opções livres e responsáveis; também não se trata de um
desenvolvimento à mercê do nosso capricho, enquanto todos sabemos que somos dom
e não resultado de auto-geração. Em nós, a liberdade é originariamente
caracterizada pelo nosso ser e pelos seus limites. Ninguém plasma
arbitrariamente a própria consciência, mas todos formam a própria personalidade
sobre a base duma natureza que lhe foi dada. Não são apenas as outras pessoas
que são indisponíveis; também nós não podemos dispor arbitrariamente de nós
mesmos. O desenvolvimento da pessoa degrada-se, se ela pretende ser a única
produtora de si mesma. De igual modo, degenera o desenvolvimento dos povos,
se a humanidade pensa que se pode re-criar valendo-se dos « prodígios » da
tecnologia. Analogamente, o progresso económico revela-se fictício e danoso
quando se abandona aos « prodígios » das finanças para apoiar incrementos
artificiais e consumistas. Perante esta pretensão prometeica, devemos
robustecer o amor por uma liberdade não arbitrária, mas tornada verdadeiramente
humana pelo reconhecimento do bem que a precede. Com tal objectivo, é preciso
que o homem reentre em si mesmo, para reconhecer as normas fundamentais da lei
moral natural que Deus inscreveu no seu coração.
69. Hoje, o problema do desenvolvimento está estreitamente unido com
o progresso tecnológico, com as suas deslumbrantes aplicações no campo
biológico. A técnica — é bom sublinhá-lo — é um dado profundamente humano, ligado
à autonomia e à liberdade do homem. Nela exprime-se e confirma-se o domínio do
espírito sobre a matéria. O espírito, « tornando-se assim ‘‘mais liberto da
escravidão das coisas, pode facilmente elevar-se ao culto e à contemplação do
Criador'' »[150].
A técnica permite dominar a matéria, reduzir os riscos, poupar fadigas,
melhorar as condições de vida. Dá resposta à própria vocação do trabalho
humano: na técnica, considerada como obra do génio pessoal, o homem
reconhece-se a si mesmo e realiza a própria humanidade. A técnica é o aspecto
objectivo do agir humano[151],
cuja origem e razão de ser estão no elemento subjectivo: o homem que actua. Por
isso, aquela nunca é simplesmente técnica; mas manifesta o homem e as suas
aspirações ao desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma
gradual superação de certos condicionamentos materiais. Assim, a técnica
insere-se no mandato de « cultivar e guardar a terra » (Gn 2, 15)
que Deus confiou ao homem, e há-de ser orientada para reforçar aquela aliança
entre ser humano e ambiente em que se deve reflectir o amor criador de Deus.
70. O desenvolvimento tecnológico pode induzir à ideia de
auto-suficiência da própria técnica, quando o homem, interrogando-se apenas
sobre o como, deixa de considerar os muitos porquês pelos quais é
impelido a agir. Por isso, a técnica apresenta-se com uma fisionomia ambígua.
Nascida da criatividade humana como instrumento da liberdade da pessoa, pode
ser entendida como elemento de liberdade absoluta; aquela liberdade que quer
prescindir dos limites que as coisas trazem consigo. O processo de globalização
poderia substituir as ideologias com a técnica[152],
passando esta a ser um poder ideológico que exporia a humanidade ao risco de se
ver fechada dentro de um a priori do qual não poderia sair para encontrar
o ser e a verdade. Em tal caso, todos nós conheceríamos, avaliaríamos e
decidiríamos as situações da nossa vida a partir do interior de um horizonte
cultural tecnocrático, ao qual pertenceríamos estruturalmente, sem poder jamais
encontrar um sentido que não fosse produzido por nós. Esta visão torna hoje tão
forte a mentalidade tecnicista que faz coincidir a verdade com o factível. Mas,
quando o único critério da verdade é a eficiência e a utilidade, o
desenvolvimento acaba automaticamente negado. De facto, o verdadeiro
desenvolvimento não consiste primariamente no fazer; a chave do desenvolvimento
é uma inteligência capaz de pensar a técnica e de individualizar o sentido
plenamente humano do agir do homem, no horizonte de sentido da pessoa vista na
globalidade do seu ser. Mesmo quando actua mediante um satélite ou um comando
electrónico à distância, o seu agir continua sempre humano, expressão de uma
liberdade responsável. A técnica seduz intensamente o homem, porque o livra das
limitações físicas e alarga o seu horizonte. Mas a liberdade humana só o é
propriamente quando responde à sedução da técnica com decisões que sejam fruto
de responsabilidade moral. Daqui, a urgência de uma formação para a
responsabilidade ética no uso da técnica. A partir do fascínio que a técnica
exerce sobre o ser humano, deve-se recuperar o verdadeiro sentido da liberdade,
que não consiste no inebriamento de uma autonomia total, mas na resposta ao
apelo do ser, a começar pelo ser que somos nós mesmos.
71. Esta possibilidade da mentalidade técnica se desviar do seu
originário álveo humanista ressalta, hoje, nos fenómenos da tecnicização do
desenvolvimento e da paz. Frequentemente o desenvolvimento dos povos é
considerado um problema de engenharia financeira, de abertura dos mercados, de
redução das tarifas aduaneiras, de investimentos produtivos, de reformas
institucionais; em suma, um problema apenas técnico. Todos estes âmbitos são
muito importantes, mas não podemos deixar de interrogar-nos por que motivo, até
agora, as opções de tipo técnico tenham resultado apenas de modo relativo. A
razão há-de ser procurada mais profundamente. O desenvolvimento não será jamais
garantido completamente por forças de certo modo automáticas e impessoais,
sejam elas as do mercado ou as da política internacional. O desenvolvimento
é impossível sem homens rectos, sem operadores económicos e homens políticos
que sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum. São
necessárias tanto a preparação profissional como a coerência moral. Quando prevalece
a absolutização da técnica, verifica-se uma confusão entre fins e meios: como
único critério de acção, o empresário considerará o máximo lucro da produção; o
político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado das suas
descobertas. Deste modo sucede frequentemente que, sob a rede das relações
económicas, financeiras ou políticas, persistem incompreensões, contrariedades
e injustiças; os fluxos dos conhecimentos técnicos multiplicam-se, mas em
benefício dos seus proprietários, enquanto a situação real das populações que
vivem sob tais influxos, e quase sempre na sua ignorância, permanece imutável e
sem efectivas possibilidades de emancipação.
72. Às vezes, também a paz corre o risco de ser considerada como uma
produção técnica, fruto apenas de acordos entre governos ou de iniciativas
tendentes a assegurar ajudas económicas eficientes. É verdade que a
construção da paz exige um constante tecimento de contactos diplomáticos,
intercâmbios económicos e tecnológicos, encontros culturais, acordos sobre
projectos comuns, e também a assunção de empenhos compartilhados para conter as
ameaças de tipo bélico e cercear à nascença eventuais tentações terroristas.
Mas, para que tais esforços possam produzir efeitos duradouros, é necessário
que se apoiem sobre valores radicados na verdade da vida. Por outras palavras,
é preciso ouvir a voz das populações interessadas e atender à situação delas
para interpretar adequadamente os seus anseios. De certo modo, deve-se colocar
em continuidade com o esforço anónimo de tantas pessoas decididamente
comprometidas a promover o encontro entre os povos e a favorecer o
desenvolvimento partindo do amor e da compreensão recíproca. Entre tais
pessoas, contam-se também fiéis cristãos, empenhados na grande tarefa de dar ao
desenvolvimento e à paz um sentido plenamente humano
73. Ligada ao desenvolvimento tecnológico está a crescente presença
dos meios de comunicação social. Já é quase impossível imaginar a
existência da família humana sem eles. No bem e no mal, estão de tal modo
encarnados na vida do mundo, que parece verdadeiramente absurda a posição de
quantos defendem a sua neutralidade, reivindicando em consequência a sua
autonomia relativamente à moral que diria respeito às pessoas. Muitas vezes
tais perspectivas, que enfatizam a natureza estritamente técnica dos mass-media,
de facto favorecem a sua subordinação a cálculos económicos, ao intuito de
dominar os mercados e, não último, ao desejo de impor parâmetros culturais em
função de projectos de poder ideológico e político. Dada a importância
fundamental que têm na determinação de alterações no modo de ler e conhecer a
realidade e a própria pessoa humana, torna-se necessária uma atenta reflexão
sobre a sua influência principalmente na dimensão ético-cultural da globalização
e do desenvolvimento solidário dos povos. Como requerido por uma correcta
gestão da globalização e do desenvolvimento, o sentido e a finalidade dos
mass-media devem ser buscados no fundamento antropológico. Isto quer
dizer que os mesmos podem tornar-se ocasião de humanização, não só
quando, graças ao desenvolvimento tecnológico, oferecem maiores possibilidades
de comunicação e de informação, mas também e sobretudo quando são organizados e
orientados à luz de uma imagem da pessoa e do bem comum que traduza os seus
valores universais. Os meios de comunicação social não favorecem a liberdade
nem globalizam o desenvolvimento e a democracia para todos, simplesmente porque
multiplicam as possibilidades de interligação e circulação das ideias; para
alcançar tais objectivos, é preciso que estejam centrados na promoção da
dignidade das pessoas e dos povos, animados expressamente pela caridade e
colocados ao serviço da verdade, do bem e da fraternidade natural e
sobrenatural. De facto, na humanidade, a liberdade está intrinsecamente ligada
a estes valores superiores. Os mass-media podem constituir uma válida
ajuda para fazer crescer a comunhão da família humana e o ethos das
sociedades, quando se tornam instrumentos de promoção da participação universal
na busca comum daquilo que é justo.
74. Hoje, um campo primário e crucial da luta cultural entre o
absolutismo da técnica e a responsabilidade moral do homem é o da bioética,
onde se joga radicalmente a própria possibilidade de um desenvolvimento humano
integral. Trata-se de um âmbito delicadíssimo e decisivo, onde irrompe, com
dramática intensidade, a questão fundamental de saber se o homem se produziu
por si mesmo ou depende de Deus. As descobertas científicas neste campo e as
possibilidades de intervenção técnica parecem tão avançadas que impõem a
escolha entre estas duas concepções: a da razão aberta à transcendência ou a da
razão fechada na imanência. Está-se perante uma opção decisiva. No entanto a
concepção racional da tecnologia centrada sobre si mesma apresenta-se como
irracional, porque implica uma decidida rejeição do sentido e do valor. Não é
por acaso que a posição fechada à transcendência se defronta com a dificuldade
de pensar como tenha sido possível do nada ter brotado o ser e do acaso ter
nascido a inteligência[153]. Face a estes dramáticos problemas, razão
e fé ajudam-se mutuamente; e só conjuntamente salvarão o homem: fascinada
pela pura tecnologia, a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da
própria omnipotência, enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da
vida concreta das pessoas[154].
75. Paulo VI já tinha reconhecido e indicado o horizonte mundial da
questão social[155].
Prosseguindo por esta estrada, é preciso afirmar que hoje a questão social
tornou-se radicalmente antropológica, enquanto toca o próprio modo não só
de conceber mas também de manipular a vida, colocada cada vez mais nas mãos do
homem pelas biotecnologias. A fecundação
in vitro, a pesquisa sobre os embriões, a possibilidade da clonagem e
hibridação humana nascem e promovem-se na actual cultura do desencanto total,
que pensa ter desvendado todos os mistérios porque já se chegou à raiz da vida.
Aqui o absolutismo da técnica encontra a sua máxima expressão. Em tal cultura,
a consciência é chamada apenas a registar uma mera possibilidade técnica.
Contudo não se pode minimizar os cenários inquietantes para o futuro do homem e
os novos e poderosos instrumentos que a « cultura da morte » tem à sua
disposição. À difusa e trágica chaga do aborto poder-se-ia juntar no futuro —
embora sub-repticiamente já esteja presente in nuce — uma sistemática
planificação eugenética dos nascimentos. No extremo oposto, vai abrindo caminho
uma mens eutanasica, manifestação não menos abusiva de domínio sobre a
vida, que é considerada, em certas condições, como não digna de ser vivida. Por
detrás destes cenários encontram-se posições culturais negacionistas da
dignidade humana. Por sua vez, estas práticas estão destinadas a alimentar uma
concepção material e mecanicista da vida humana. Quem poderá medir os efeitos
negativos de tal mentalidade sobre o desenvolvimento? Como poderá alguém
maravilhar-se com a indiferença diante de situações humanas de degradação,
quando se comporta indiferentemente com o que é humano e com aquilo que não o
é? Maravilha a selecção arbitrária do que hoje é proposto como digno de
respeito: muitos, prontos a escandalizar-se por coisas marginais, parecem
tolerar injustiças inauditas. Enquanto os pobres do mundo batem às portas da
opulência, o mundo rico corre o risco de deixar de ouvir tais apelos à sua
porta por causa de uma consciência já incapaz de reconhecer o humano. Deus
revela o homem ao homem; a razão e a fé colaboram para lhe mostrar o bem, desde
que o queira ver; a lei natural, na qual reluz a Razão criadora, indica a
grandeza do homem, mas também a sua miséria quando ele desconhece o apelo da
verdade moral.
76. Um dos aspectos do espírito tecnicista moderno é palpável na
propensão a considerar os problemas e as moções ligados à vida interior somente
do ponto de vista psicológico, chegando-se mesmo ao reducionismo neurológico.
Assim esvazia-se a interioridade do homem e, progressivamente, vai-se perdendo
a noção da consistência ontológica da alma humana, com as profundidades que os
Santos souberam pôr a descoberto. O problema do desenvolvimento está
estritamente ligado também com a nossa concepção da alma do homem, uma vez
que o nosso eu acaba muitas vezes reduzido ao psíquico, e a saúde da alma é
confundida com o bem-estar emotivo. Na base, estas reduções têm uma profunda
incompreensão da vida espiritual e levam-nos a ignorar que o desenvolvimento do
homem e dos povos depende verdadeiramente também da solução dos problemas de
carácter espiritual. Além do crescimento material, o desenvolvimento deve
incluir o espiritual, porque a pessoa humana é « um ser uno, composto de
alma e corpo »[156],
nascido do amor criador de Deus e destinado a viver eternamente. O ser humano
desenvolve-se quando cresce no espírito, quando a sua alma se conhece a si
mesma e apreende as verdades que Deus nela imprimiu em gérmen, quando dialoga
consigo mesma e com o seu Criador. Longe
de Deus, o homem vive inquieto e está mal. A alienação social e psicológica e
as inúmeras neuroses que caracterizam as sociedades opulentas devem-se também a
causas de ordem espiritual. Uma
sociedade do bem-estar, materialmente desenvolvida mas oprimente para a alma,
de per si não está orientada para o autêntico desenvolvimento. As novas formas de escravidão da droga e o
desespero em que caiem tantas pessoas têm uma explicação não só sociológica e
psicológica, mas essencialmente espiritual. O vazio em que a alma se sente abandonada,
embora no meio de tantas terapias para o corpo e para o psíquico, gera
sofrimento. Não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o
bem espiritual e moral das pessoas, consideradas na sua totalidade de alma
e corpo.
77. O absolutismo da técnica tende a produzir uma incapacidade de
perceber aquilo que não se explica meramente pela matéria; e, no entanto, todos
os homens experimentam os numerosos aspectos imateriais e espirituais da sua
vida. Conhecer não é um acto apenas material, porque o conhecido esconde sempre
algo que está para além do dado empírico. Todo o nosso conhecimento, mesmo o
mais simples, é sempre um pequeno prodígio, porque nunca se explica
completamente com os instrumentos materiais que utilizamos. Em cada verdade, há
sempre mais do que nós mesmos teríamos esperado; no amor que recebemos, há
sempre qualquer coisa que nos surpreende. Não deveremos cessar jamais de
maravilhar-nos diante destes prodígios. Em cada conhecimento e em cada acto de
amor, a alma do homem experimenta um « extra » que se assemelha muito a um dom
recebido, a uma altura para a qual nos sentimos atraídos. Também o
desenvolvimento do homem e dos povos se coloca a uma tal altura, se
considerarmos a dimensão espiritual que deve necessariamente conotar
aquele para que possa ser autêntico. Este requer olhos novos e um coração novo,
capaz de superar a visão materialista dos acontecimentos humanos e
entrever no desenvolvimento um « mais além » que a técnica não pode dar. Por
este caminho, será possível perseguir aquele desenvolvimento humano integral
que tem o seu critério orientador na força propulsora da caridade na verdade.
78. Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e
não consegue sequer compreender quem seja. Perante os enormes
problemas do desenvolvimento dos povos que quase nos levam ao desânimo e à
rendição, vem em nosso auxílio a palavra do Senhor Jesus Cristo que nos torna
cientes deste dado fundamental: « Sem Mim, nada podeis fazer » (Jo 15,
5), e encoraja: « Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo » (Mt 28,
20). Diante da vastidão do trabalho a realizar, somos apoiados pela fé na
presença de Deus junto daqueles que se unem no seu nome e trabalham pela
justiça. Paulo VI recordou-nos, na Populorum progressio, que o homem não é
capaz de gerir sozinho o próprio progresso, porque não pode por si mesmo fundar
um verdadeiro humanismo. Somente se pensarmos que somos chamados, enquanto
indivíduos e comunidade, a fazer parte da família de Deus como seus filhos, é
que seremos capazes de produzir um novo pensamento e exprimir novas energias ao
serviço de um verdadeiro humanismo integral. Por isso, a maior força ao serviço
do desenvolvimento é um humanismo cristão [157]
que reavive a caridade e que se deixe guiar pela verdade, acolhendo uma e outra
como dom permanente de Deus. A disponibilidade para Deus abre à disponibilidade
para os irmãos e para uma vida entendida como tarefa solidária e jubilosa. Pelo
contrário, a reclusão ideológica a Deus e o ateísmo da indiferença, que
esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos,
contam-se hoje entre os maiores obstáculos ao desenvolvimento. O humanismo que exclui Deus é um humanismo
desumano. Só um humanismo
aberto ao Absoluto pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida
social e civil — no âmbito das estruturas, das instituições, da cultura, do
ethos — preservando-nos do risco de cairmos prisioneiros das modas do
momento. É a consciência do Amor indestrutível de Deus que nos sustenta no fadigoso
e exaltante compromisso a favor da justiça, do desenvolvimento dos povos, por
entre êxitos e fracassos, na busca incessante de ordenamentos rectos para as
realidades humanas. O amor de Deus chama-nos a sair daquilo que é limitado e
não definitivo, dá-nos coragem de agir continuando a procurar o bem de todos,
ainda que não se realize imediatamente e aquilo que conseguimos actuar — nós e
as autoridades políticas e os operadores económicos — seja sempre menos de
quanto anelamos[158].
Deus dá-nos a força de lutar e sofrer por amor do bem comum, porque Ele é o
nosso Tudo, a nossa esperança maior.
79. O desenvolvimento tem necessidade de cristãos com os braços
levantados para Deus em atitude de oração, cristãos movidos pela
consciência de que o amor cheio de verdade — caritas in veritate –, do
qual procede o desenvolvimento autêntico, não o produzimos nós, mas é-nos dado.
Por isso, inclusive nos momentos mais difíceis e complexos, além de reagir
conscientemente devemos sobretudo referir-nos ao seu amor. O desenvolvimento
implica atenção à vida espiritual, uma séria consideração das experiências de confiança
em Deus, de fraternidade espiritual em Cristo, de entrega à providência e à
misericórdia divina, de amor e de perdão, de renúncia a si mesmos, de
acolhimento do próximo, de justiça e de paz. Tudo isto é indispensável para
transformar os « corações de pedra » em « corações de carne » (Ez 36,
26), para tornar « divina » e consequentemente mais digna do homem a vida sobre
a terra. Tudo isto é do homem, porque o homem é sujeito da própria
existência; e ao mesmo tempo é de Deus, porque Deus está no princípio e
no fim de tudo aquilo que tem valor e redime: « quer o mundo, quer a vida, quer
a morte, quer o presente, quer o futuro, tudo é vosso; mas vós sois de Cristo,
e Cristo é de Deus » (1 Cor 3, 22-23). A ânsia do cristão é que toda a
família humana possa invocar a Deus como o « Pai nosso ». Juntamente com o
Filho unigénito, possam todos os homens aprender a rezar ao Pai e a pedir-Lhe,
com as palavras que o próprio Jesus nos ensinou, para sabê-Lo santificar
vivendo segundo a sua vontade, e depois ter o pão necessário para cada dia, a
compreensão e a generosidade com quem nos ofendeu, não ser postos à prova além
das suas forças e ver-se livres do mal (cf. Mt 6, 9-13).
No final
do Ano Paulino, apraz-me formular os seguintes votos com palavras do
Apóstolo tiradas da sua Carta aos Romanos: « Que a vossa caridade
seja sincera, aborrecendo o mal e aderindo ao bem. Amai-vos uns aos outros com
amor fraternal, adiantando-vos em honrar uns aos outros» (12, 9-10). Que a
Virgem Maria, proclamada por Paulo VI Mater Ecclesiæ e honrada pelo povo
cristão como Speculum Iustitiæ e Regina Pacis, nos proteja e
obtenha, com a sua intercessão celeste, a força, a esperança e a alegria
necessárias para continuarmos a dedicar-nos com generosidade ao compromisso de
realizar o « desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens
»[159].
Dado em
Roma, junto de São Pedro, no dia 29 de Junho — Solenidade dos Santos Apóstolos
Pedro e Paulo — do ano 2009, quinto do meu Pontificado.
OBS: OS DESTAQUES SÃO OS NOSSOS