CARTA
ENCÍCLICA
IMMORTALE DEI
DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CRISTÃ
DOS ESTADOS
A todos os Nossos Veneráveis Irmãos,
os Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos do orbe católico,
em graça e comunhão com a Sé Apostólica
Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção Apostólica
1. A obra imortal do Deus de misericórdia, a Igreja, se bem que em si e
por sua natureza tenha por fim a salvação das almas e a felicidade eterna, é
entretanto, na própria esfera das coisas humanas, a fonte de tantas e tais vantagens,
que as não poderia proporcionar mais numerosas e maiores mesmo quando tivesse
sido fundada sobretudo e diretamente em mira a assegurar a felicidade desta
vida. Com efeito, onde quer que a Igreja tenha penetrado, imediatamente tem
mudado a face das coisas e impregnado os costumes públicos não somente de
virtudes até então desconhecidas, mas ainda de uma civilização toda nova. Todos
os povos que a têm acolhido se distinguiram pela doçura, pela equidade e pela
glória dos empreendimentos.
2. E, todavia,
acusação já bem antiga é que a Igreja, dizem, é contrária aos interesses da
sociedade civil e incapaz de assegurar as condições de bem-estar e de glória
que, com inteira razão e por uma aspiração natural, toda sociedade bem
constituída reclama. Desde os primeiros dias da Igreja, como sabemos,
os cristãos foram inquietados em conseqüência de injustos preconceitos dessa
espécie, e expostos ao ódio e ao ressentimento, a pretexto de serem inimigos do
Império. Naquela época, a opinião pública imputava de bom grado ao nome cristão
os males que assaltavam a sociedade, ao passo que era Deus, o vingador dos
crimes, quem infligia justas penas aos culpados. Essa odiosa calúnia indignou
com toda razão o gênio de Santo Agostinho e lhe acusou o estilo. Foi
principalmente no seu livro da “Cidade de Deus” que ele pôs em luz a virtude da
sabedoria cristã em suas relações com a coisa pública, de tal sorte que ele
parece haver menos advogado a causa dos cristãos de seu tempo do que alcançado
um triunfo perpétuo sobre tão falsas acusações.
3. Todavia, o pendor funesto para essas queixas e para esses agravos não
cessou, e muitos se comprouveram em buscar a regra da vida social fora das
doutrinas da Igreja Católica. E, mesmo de então por diante, o “direito novo”,
como lhe chamam, e que pretende ser o fruto de uma idade adulta e o produto de
uma liberdade progressista, começa a prevalecer e a dominar por toda parte.
Mas, a despeito de tantos ensaios, é fato que, para constituir e reger o
Estado, nunca se achou sistema preferível àquele que é a florescência
espontânea da doutrina evangélica.
Julgamos, pois, ser de suma importância e conforme ao Nosso múnus
Apostólico confrontar as novas teorias sociais com a doutrina cristã. Destarte,
temos a confiança de que a verdade dissipará, por um só brilho, toda causa de
erro e de dúvida, de tal sorte que cada um facilmente poderá ver essas supremas
regras de conduta que deve seguir e observar.
4. Não é muito difícil estabelecer que aspecto e que forma terá a
sociedade se a filosofia cristã governa a coisa pública. O homem nasceu para viver em sociedade, portanto, não podendo no
isolamento nem se proporcionar o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a
perfeição do espírito e do coração, a Providência o fez para se unir aos seus
semelhantes, numa sociedade tanto doméstica quanto civil, única capaz de
fornecer o que é preciso à perfeição da existência. Mas, como nenhuma sociedade
pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso
eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em
sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade,
procede da natureza e, por conseqüência, tem
a Deus por autor.
5. Daí resulta ainda que o poder
público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano
Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes
sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de
mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. “Todo
poder vem de Deus” (Rom 13,1).
6. Aliás, em si mesma a soberania não está ligada a nenhuma forma
política; pode muito bem adaptar-se a esta ou àquela, contanto que seja de fato
apta à utilidade e ao bem comum.
7. Mas, seja qual for a forma de governo, todos os chefes de Estado
devem absolutamente ter o olhar fito em Deus, soberano Moderador do mundo, e,
no cumprimento do seu mandato, a Ele tomar por modelo e regra. Com efeito,
assim como na ordem das coisas visíveis Deus criou causas segundas, nas quais
se refletem de algum modo a natureza e a ação divina, e que concorrem para
conduzir ao fim para que tende este universo, assim também quis Ele que, na
sociedade civil, houvesse uma autoridade cujos depositários fossem como que uma
imagem do poder que Ele tem sobre o gênero humano, ao mesmo tempo que da sua
Providência. Deve, pois, o mando ser justo; é menos o governo de um Senhor do
que de um Pai, pois é justíssima a autoridade de Deus sobre os homens e se acha
unida a uma bondade paternal. Deve ele, aliás, exercer-se para as vantagens dos
cidadãos, pois os que tem autoridade sobre os outros são dela investidos
exclusivamente para assegurar o bem público. Sob pretexto algum deve a
autoridade civil servir à vantagem de um só ou de alguns, visto haver sido
constituída para o bem comum.
8. Se os chefes de Estado se deixarem arrastar a uma dominação injusta,
se pecarem por abuso de poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo,
saibam que um dia terão de dar contas a Deus, e essas contas serão tanto mais
severas quanto mais santa for a função que eles exercerem e mais elevado o grau
da dignidade de que estiverem investidos. “Os poderosos serão poderosamente
punidos” (Sab 6, 7).
9. Desta maneira, a supremacia do mando arrastará a homenagem voluntária
do respeito dos súditos. De feito, se estes estiverem uma vez bem convencidos
de que a autoridade dos soberanos vem de Deus, sentir-se-ão obrigados em
justiça a acolher docilmente as ordens dos príncipes e a lhes prestar
obediência e fidelidade, por um sentimento semelhante à piedade que os filhos
tem para com seus pais. “Seja toda alma sujeita aos poderes mais elevados” (Rom
13,1).
10. Porquanto não é lícito
desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele resida, mais do
que resistir à vontade de Deus; ora, os que lhe resistem correm por si
mesmos para sua perda. “Quem resiste ao poder resiste à ordem estabelecida por
Deus, e os que lhe resistem atraem a si mesmos a condenação” (Rom 5, 2).
Assim, pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade por meio da
sedição é um crime de lesa-majestade, não só humana, mas divina.
11. Sendo a sociedade política fundada sobre estes princípios, evidente
é que ela deve, sem falhar, cumprir por um culto público os numerosos e
importantes deveres que a unem a Deus. Se a natureza e a razão impõem a cada um
a obrigação de honrar a Deus com um culto santo e sagrado, porque nós
dependemos do poder dele e porque, saídos dele, a Ele devemos tornar, à mesma
lei adstringem a sociedade civil. Realmente, unidos pelos laços de uma
sociedade comum, os homens não dependem menos de Deus do que tomados
isoladamente; tanto, pelo menos, quanto o indivíduo, deve a sociedade dar
graças a Deus, de quem recebe a existência, a conservação e a multidão
incontável dos seus bens. É por isso que, do mesmo modo que a ninguém é lícito
descurar seus deveres para com Deus, e
que o maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a religião,
não aquela que cada um prefere, mas
aquela que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabelecem como a
única verdadeira entre todas, assim
também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus
absolutamente não existisse, ou prescindir da religião como estranha e
inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito. Honrando a
Divindade, devem elas seguir estritamente as regras e o modo segundo os quais o
próprio Deus declarou querer ser honrado.
12. Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e
colocar no número dos seus principais deveres favorecer a religião, protegê-la
com a sua benevolência, cobri-la com a autoridade tutelar das leis, e nada
estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade dela. E isso devem-no
eles aos cidadãos de que são chefes. Todos nós, com efeito, enquanto existimos,
somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final ao qual é preciso
referir tudo, colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência.
Já que disso é que depende a completa e perfeita felicidade dos homens, é do
interesse supremo de cada um alcançar esse fim. Como, pois, a sociedade civil
foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a prosperidade
pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer
obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à
aquisição desse bem supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas consiste em fazer
respeitar a santa e inviolável observância da religião, cujos deveres unem o
homem a Deus.
13. Quanto a
decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar
disso com prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e
evidentes, a verdade das profecias, a multidão dos milagres, a prodigiosa
celeridade da propagação da fé, mesmo entre os seus inimigos e a despeito dos
maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e outros argumentos semelhantes,
provam claramente que a única religião verdadeira é a que o próprio Jesus
Cristo instituiu e deu à sua Igreja a missão de guardar e propagar.
14. Porquanto o Filho único de Deus estabeleceu na terra uma sociedade a
que chamamos a Igreja, e encarregou-a de continuar através de todas as idades a
missão sublime e divina que Ele mesmo recebera de seu Pai. “Assim como meu Pai
me enviou, eu vos envio” (Jo 20, 21). “E eis que eu estou convosco até a
consumação dos séculos” (Mt 28, 20). Do mesmo modo, pois, que Jesus
Cristo veio à terra a fim de que os homens “tivessem a vida e a tivessem mais
abundantemente” (Jo 10, 10), assim também a Igreja propõe-se como fim a
salvação eterna das almas; e, nesse intuito, é tal a sua constituição que ela
abrange na sua extensão a humanidade inteira e não é circunscrita por limite
algum nem de temo, nem de lugar. “Pregai o Evangelho a toda criatura” (Mt
16, 15).
15. A essa imensa multidão de homens o próprio Deus deu chefes com o
poder de governá-los. À testa deles propôs um só de quem quis fazer o maior e o
maior seguro mestre da verdade, e a quem confiou as chaves do reino dos céus.
“Dar-te-ei as chaves do reino dos céus” (Mt 16, 19). “Apascenta meus
cordeiros... apascenta minhas ovelhas” (Jo 21, 16-17). “Roguei por ti, a
fim de que tua fé não desfaleça” (Lc 22, 32).
16. Se bem que composta de homens como a sociedade civil, essa sociedade
da Igreja, quer pelo fim que lhe foi designado, quer pelos meios que lhe servem
para atingi-lo, é sobrenatural e espiritual. Distingue-se, pois, e difere da
sociedade civil. Além disso, e isto é da maior importância, constitui ela uma
sociedade juridicamente perfeita no seu gênero, porque, pela expressa vontade e
pela graça do seu Fundador, possui em si e de per si todos os recursos
necessários à sua existência e ação. Como o fim a que a Igreja tende é de muito
o mais nobre de todos, assim também o seu poder prevalece sobre todos os outros
poderes, e de modo algum pode ser inferior ou sujeita ao poder civil.
Efetivamente, Jesus Cristo deu plenos poderes aos seus apóstolos na esfera das
coisas sagradas, juntando-lhes tanto a faculdade de fazer verdadeiras leis como
o duplo poder que dela decorre, de julgar e de punir. “Todo poder me foi dado
no céu e na terra; ide pois, ensinai todas as nações...ensinando-as a observar
tudo o que eu vos prescrevi” (Mt 28, 18-20). E ainda: “Tende cuidado de
punir toda desobediência” (2 Cor 10, 6). Demais: “Serei mais severo em
virtude do poder que o Senhor me deu para a edificação e não para a ruína” (2 Cor
13, 10). À Igreja, pois, e não ao
Estado, é que pertence guiar os homens para as coisas celestes, e a ela é
que Deus deu o mandato de conhecer e de decidir de tudo o que concerne à
religião; de ensinar todas as nações, de estender a tão longe quanto possível
as fronteiras do nome cristão; em suma, de administrar livremente e a seu
inteiro talante os interesses cristãos.
17. Essa autoridade perfeita em si e só de si mesma dependente, de há
muito tempo atacada por uma filosofia aduladora dos príncipes, a Igreja nunca
cessou de reivindicá-la, nem de exercê-la publicamente. Os primeiros de todos
os seus paladinos foram os Apóstolos, que, impedidos pelos príncipes da
Sinagoga de difundirem o Evangelho, respondiam com firmeza: “Devemos obedecer a
Deus antes que aos homens” (At 5, 29). Foi ela que os Padres da Igreja
se aplicaram a defender por sólidas razões quando tiveram ensejo, e que os
Pontífices romanos nunca deixaram de reivindicar com uma constância invencível
contra os seus agressores.
18. Bem mais, tem ela tido por si, em princípio e de fato, o
assentimento dos príncipes e dos chefes de Estados, que, nas suas negociações e
transações, enviando e recebendo embaixadas e permutando outros bons ofícios,
têm constantemente agido com a Igreja como com uma potência soberana e
legítima. Por isto, não é sem uma disposição particular da Providência de Deus
que essa autoridade foi munida de um principado civil, como da melhor
salvaguarda da sua independência.
19. Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o
poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às
coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está
encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com
a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera
circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure próprio”. Todavia,
exercendo-se a autoridade delas sobre os mesmos súditos, pode suceder que uma
só e mesma coisa, posto que a título diferente, mas no entanto uma só e mesma
coisa, incida na jurisdição e no juízo de um e de outro poder. Era, pois, digno
da Sábia Providência de Deus, que as estabeleceu ambas, traçar-lhes a sua
trilha e a sua relação entre si. “OS poderes que existem foram dispostos por
Deus” (Rom 13, 1). Se assim não fora, muitas vezes nasceriam causas de
funestas contenções e conflitos e muitas vezes o homem deveria hesitar,
perplexo, como em face de um duplo caminho, sem saber o que fazer, em
conseqüência das ordens contrárias de dois poderes cujo jugo em consciência ele
não pode sacudir. Sumamente repugnaria responsabilizar por essa desordem a sabedoria
e a bondade de Deus, que, no governo do mundo físico, todavia de ordem bem
inferior, temperou tão bem umas pelas outras as forças e as causas naturais, e
as fez harmonizar-se de maneira tão admirável, que nenhuma delas molesta as
outras, e todas, num conjunto perfeito, conspiram para a finalidade a que tende
o universo. Necessário é, pois, que haja entre os dois poderes um sistema de
relações bem ordenado, não sem analogia com aquele que, no homem, constitui a
união da alma com o corpo. Não se pode fazer uma justa idéia da natureza e da
força dessas relações senão considerando, como dissemos, a natureza de cada um
dos dois poderes, e levando em conta a excelência e a nobreza dos seus fins,
visto que um tem por fim próximo e especial ocupar-se dos interesses terrenos,
e o outro proporcionar os bens celestes e eternos.
20. Assim, tudo o que, nas coisas humanas, é sagrado por uma razão
qualquer, tudo o que é pertinente à salvação das alas e ao culto de Deus, seja
por sua natureza, seja em relação ao seu fim, tudo isso é da alçada da
autoridade da Igreja. Quanto às outras coisas que a ordem civil e política
abrange, é justo que sejam submetidas à autoridade civil, já que Jesus Cristo
mandou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Tempos ocorrem às
vezes, em que prevalece outros modo de assegurar a concórdia e de garantir a
paz e a liberdade; é quando os chefes de Estado e os Sumos Pontífices se põem
de acordo por um tratado sobre algum ponto particular. Em tais circunstâncias,
dá a Igreja provas evidentes da sua caridade materna, levando tão longe quanto
possível a indulgência e a condescendência.
21. Tal é, consoante o esboço sumário que havemos traçado, a organização
cristã da sociedade civil, e essa teoria não é nem temerária nem arbitrária,
mas se deduz dos princípios mais elevados e mais certos, confirmados pela
própria razão natural. Essa constituição da sociedade política não tem nada que
possa parecer pouco digno ou inconveniente para a dignidade dos príncipes.
Longe de tirar o que quer que seja aos direitos da majestade, pelo contrário,
torna-os mais estáveis e mais augustos. Muito mais: se olharmos isso mais de
perto, reconheceremos nessa constituição uma grande perfeição que falta nos
outros sistemas políticos; e ela produziria certamente frutos excelentes e
variados se ao menos cada poder ficasse nas suas atribuições e pusesse todos os
seus desvelos em cumprir o ofício e a tarefa que lhes foram determinados.
22. Com efeito, na constituição do Estado, tal como a acabamos de expor,
o divino e o humano são delimitados numa ordem conveniente; os direitos dos
cidadãos são assegurados e colocados sob a proteção das mesmas leis divinas,
naturais e humanas; os deveres de cada um são tão sabiamente traçados quão
prudentemente salvaguardada lhes é a observância. Todos os homens, nesse
encaminhamento incerto e penoso para a cidade eterna, sabem que tem a seu
serviço guias seguros para conduzi-los à meta, e auxiliares para atingi-la.
Sabem, do mesmo modo, que outros chefes lhes foram dados para obter e conservar
a segurança, os bens e as outras vantagens dessa vida.
23. A sociedade doméstica acha a sua solidez necessária na santidade do
vínculo conjugal, uno e indissolúvel; os direitos e os deveres dos esposos são
regulados com toda a justiça e equidade; a honra devida à mulher é
salvaguardada; a autoridade do marido modela-se pela autoridade de Deus, o
pátrio poder é temperado pelas atenções devidas à esposa e aos filhos; enfim,
está perfeitamente provido para a proteção, para o bem estar e para a educação
desses últimos.
24. Na ordem política e civil, as leis têm por fim as bem comuns,
ditadas não pela vontade e pelo juízo enganador da multidão, mas pela verdade e
pela justiça. A autoridade dos príncipes reveste uma espécie de caráter mais
sagrado do que humano, e é contida de maneira a não se afastar da justiça, nem
exceder o seu poder. A obediência dos súditos corre parelhas com a honra e a
dignidade, porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à
vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito
isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos
príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as
sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.
25. Semelhantemente, nessa espécie dos deveres se colocam a caridade
mútua, a bondade, a liberalidade. O homem, que é ao mesmo tempo cidadão e
cristão, não mais rasgado em dois por obrigações contraditórias. Enfim, os bens
consideráveis com que a religião cristã enriquece espontaneamente a própria
vida terrena dos indivíduos são adquiridos para a comunidade e para a sociedade
civil: donde ressalta a evidência destas palavras: “A sorte do Estado depende
do culto que se tributa a Deus: e há entre ambos numerosos laços de parentesco
e de estrita amizade” (Sacr. Imp. Ad Cyllirium Alexandr. Et Episcopos metrop. Cfr. Labbeum, Collect. Conc. T. III).
26. Em várias passagens Santo Agostinho, segundo o seu costume,
salientou o valor desses bens, mormente quando interpela a Igreja Católica
nestes termos: “Tu conduzes e instruis as crianças com ternura, os jovens com
força, os velhos com calma, como o comporta a idade não somente do corpo, mas
ainda da alma. Sujeitas as mulheres aos maridos por uma casta e fiel
obediência, não para cevar a paixão, mas para propagar a espécie e constituir a
sociedade da família. Dás autoridade aos
maridos sobre as mulheres, não para zombarem do sexo, mas para seguirem as leis
de um sincero amor. Subordinas os filhos aos pais por uma espécie de
servidão livre e prepões os pais aos filhos por uma espécie de terna
autoridade. Unes não só em sociedade, mas numa espécie de fraternidade, os
cidadãos aos cidadãos, as nações às nações e os homens entre si pela lembrança
dos primeiros pais. Ensinas os reis a velarem sobre os povos, e prescreves aos
povos submeter-se aos reis. Ensinas com cuidado a quem é que é devida a honra,
a quem a afeição, a quem o respeito, a quem o temor, a quem a consolação, a
quem a advertência, a quem o incentivo, a quem a correção, a quem a reprimenda,
a quem o castigo; e fazes saber como, se nem todas essas coisas são devidas a
todos, a todos é devida a caridade, e a ninguém a injustiça” (De moribus
Eccl., cap. XXX, n. 63).
27. Noutro lugar, o mesmo Doutor repreende nestes termos a falsa
sabedoria dos políticos filósofos: “Os que dizem que a doutrina de Cristo é
contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a
doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos,
tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis,
tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a
doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito
antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o
Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap.
II, n. 15).
28. Tempo houve
em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência
da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições,
os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade
civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida
no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao
favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império
estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons
ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda
expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em
inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou
obscurecer.
29. Se a Europa cristã domou as nações bárbaras e as fez passar da
ferocidade para a mansidão, da superstição para a verdade; se repeliu
vitoriosamente as invasões muçulmanas, se guardou a supremacia da civilização,
e se, em tudo que faz honra à humanidade, constantemente e em toda parte se
mostrou guia e mestra; se brindou os povos com a verdadeira liberdade sob essas
diversas formas, se sapientissimamente fundou uma multidão de obras para o
alívio das misérias; é fora de toda dúvida que, assim, ela é grandemente
devedora à religião, sob cuja inspiração e com cujo auxílio empreendeu e
realizou tão grandes coisas.
30. Todos esses bens durariam ainda se o acordo dos dois poderes
houvesse perseverado, e havia razão para esperar outros ainda maiores, se a
autoridade, se o ensino, se os conselhos da Igreja tivesses encontrado uma
docilidade mais fiel e mais constante. Por quanto dever-se-ia ter como lei
imprescritível aquilo que Yves de Chartres escreveu ao Papa Pascoal II: “Quando
o mundo é bem governado, a Igreja é florescente e fecunda. Mas, quando a
discórdia se interpõe entre eles, não somente as pequenas coisas não crescem,
mas as próprias grandes deperecem miseravelmente” (Epist. 238).
31. Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI
viu nascer, depois de primeiro haver transtornado a religião cristã, em breve,
por um declive natural, passou à filosofia, e da filosofia a todos os graus da
sociedade civil. É a essa fonte que cumpre fazer remontar esses princípios
modernos de liberdade desenfreada sonhados e promulgados por entre as grandes
perturbações do século último, como os princípios e fundamentos de um “direito
novo”, até então desconhecidos e sobre mais de um ponto em desacordo não
somente com o direito cristão, mas com o direito natural. Eis aqui o primeiro
de todos esses princípios: todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma
natureza, são semelhantes, e, “ipso facto”, iguais entre si na prática
da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo algum está sujeito à
autoridade de outrem: pode com toda liberdade pensar sobre qualquer coisa o que
quiser, fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de mandar aos outros.
Numa sociedade fundada sobre estes princípios, a autoridade pública é apenas a
vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é também o único a mandar a
si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o
direito do que a função do poder, para exercê-la em seu nome. A soberania de
Deus é passada em silencia, exatamente como se Deus não existisse, ou não se
ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou então como se os homens,
quer em particular, quer em sociedade, não devessem nada a Deus, ou como se
pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não
residisse inteira no próprio Deus.
32. Destarte,
como se vê, o Estado não outra coisa mais senão a multidão soberana e que se
governa por si mesma e desde que o povo é considerado a fonte de todo o direito
e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga jungido a nenhuma
obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não é
obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a
preferir uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a
igualdade em direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem
pública. Por conseguinte, cada
um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será
livre de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe
agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade sem freio de toda
consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a licença
sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos.
33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande
favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito,
onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica
é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com
sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis
eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar
todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas
matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos
decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas
santas leis da Igreja.
34. Assim, fazem depender da sua jurisdição os casamentos dos cristãos;
decretam leis sobre o vínculo conjugal, sua unidade, sua estabilidade; deitam
mão aos bens dos clérigos e negam à Igreja o direito de possuir. Em suma,
tratam a Igreja como se ela não tivesse nem o caráter nem os direitos de uma
sociedade perfeita, e fosse uma mera associação semelhante às outras que
existem no Estado. Por isso, tudo o que ela tem de direitos, de poder legítimo
de ação, fazem-no eles depender da concessão e do favor dos governantes.
35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua
autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a
princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do
Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e
fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos. Mas, como a Igreja não
pode sofrê-lo pacientemente, pois seria para ela desertar os maiores e os mais
sagrados dos deveres, e como reclama absolutamente o cumprimento religioso da
fé que lhe foi jurada, muitas vezes nascem entre o poder espiritual e o poder
civil conflitos, cujo desfecho quase inevitável é sujeitar aquele que é menos
provido de meios humanos ao que é mais provido. Assim, nessa situação política
que muitos favorecem hoje em dia, há uma
tendência das idéias e das vontades para expulsar inteiramente a Igreja da
sociedade, ou para mantê-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte
das medidas tomadas pelos governos inspiram-se nesse desígnio. As leis, a
administração pública, a educação sem religião, a espoliação e a destruição das
Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos Pontífices romanos, tudo
tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãos, reduzir a nada a
liberdade da Igreja Católica, e ao nada os seus demais direitos.
36. A simples razão natural demonstra o quanto se afasta da verdade esta
maneira de entender o governo civil. O testemunho dela, com efeito, basta para
estabelecer que tudo o que há de autoridade entre os homens procede de Deus,
como de uma fonte augusta e suprema. Quanto à soberania do povo, que, sem levar
em nenhuma conta a Deus, se diz residir por direito natural no povo, se ela é
eminentemente própria para lisonjear e inflamar uma multidão de paixões, não
assenta em nenhum fundamento sólido e não pode ter força bastante para garantir
a segurança pública e a manutenção tranqüila da ordem. De feito, sob o império
dessas doutrinas, os princípios cederam a ponto de, para muitos, ser uma lei
imprescritível em direito político poder legitimamente levantar sedições.
Porquanto prevalece a opinião de que os chefes do governo são meros delegados
encarregados de executar a vontade do povo: donde esta conseqüência necessária:
que tudo pode igualmente mudar ao sabor do povo, e que sempre há a temer
distúrbios.
37. Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas
disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem
seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o nome. Efetivamente, quem quer que
creia em Deus, se for conseqüentemente e não quer cair no absurdo, deve
necessariamente admitir diferença, disparidade e oposição, mesmo sobre os
pontos mais importantes, não podem ser todos igualmente bons, igualmente
agradáveis a Deus.
38. Assim, também, a liberdade de pensar e publicar os próprios
pensamentos, subtraída a toda regra, não é por si um bem de que a sociedade
tenha que se felicitar; mas é antes a fonte e a origem de muitos males. A
liberdade, esse elemento de perfeição para o homem, deve aplicar-se ao que é
verdadeiro e ao que é bom. Ora, a essência do bem e da verdade não pode mudar
ao sabor do homem, mas persiste sempre a mesma, e, não menos do que a natureza
das coisas, é imutável. Se a inteligência adere as opiniões falsas, se a
vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem outra atinge a sua
perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois,
permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e
à verdade, e muito menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção
das leis. Não há senão um caminho para chegar ao céu, para o qual todos nós
tendemos: é uma boa vida. O Estado afasta-se, pois, das regras e prescrições da
natureza se favorece a licença das opiniões e das ações culposas ao ponto de se
poderem impunemente desviar os espíritos da verdade e as almas da virtude.
39. Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida
pública, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é m grande
e pernicioso erro. Uma sociedade sem religião não pode ser bem regulada; e,
mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas conseqüências
essa pretensa moral civil.
40. A verdadeira mestra da juventude e a guardiã dos costumes é a Igreja
de Cristo. É ela quem conserva na sua integridade os princípios de onde emanam
os deveres, e quem sugerindo os mais nobres motivos de vem viver, ordena não
somente fugir às más ações, mas domar os movimentos da alma contrários à razão,
ainda quando não se traduzem em ato.
41. Pretender sujeitar a Igreja ao poder civil no exercício do seu
ministério é a um tempo uma grande injustiça e uma grande temeridade. Por essa
mesma razão, perturba-se a ordem, pois se dá o passo às coisas naturais sobre
as coisas sobrenaturais; estanca-se, ou, certamente, se diminui muito o afluxo
dos bens com que, se estivesse sem peias, a Igreja cumularia a sociedade; e, demais,
abre-se a voz a ódios e a lutas cuja grande e funesta influência sobre ambas as
sociedades tem sido demonstrado por experiências mais do que freqüentes.
42. Essas doutrinas, que a razão humana reprova e têm uma influência tão
considerável sobre a marcha das coisas públicas, os Pontífices romanos, Nossos
predecessores, na plena consciência daquilo que deles reclamava o múnus
apostólico, jamais sofreram fossem impunemente emitidas. Assim foi que, na sua
Carta Encíclica “Mirari vos”, de 15 de agosto de 1832, Gregório XVI, com
grande autoridade doutrinal, repeliu o que se avançava desde então, insto é,
que em matéria de religião não há escolha a fazer: que cada um depende apenas
da própria consciência e pode, além disso, publicar o que pensa e tramar revoluções
no Estado. A respeito da separação da Igreja do Estado, exprime-se nestes
termos esse Pontífice: “Não podemos
esperar para a Igreja e para o Estado resultados melhores das tendências dos
que pretendem separar a Igreja do Estado e romper a concórdia mútua entre o
sacerdócio e o império. É que, com efeito, os fautores de uma liberdade
desenfreada temem essa concórdia, que sempre foi tão propícia e salutar aos
interesses religiosos e civis”. Da mesma maneira, Pio IX, cada vez que se
apresentou ensejo, condenou as falsas opiniões mais em voga, e que, em tal
dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura.
43. Dessas decisões dos. Sumos Pontífices, cumpre absolutamente admitir
que a origem do poder público deve atribuir-se a Deus, e não à multidão; que o
direito à rebelião repugna a razão; que não fazer nenhum caso dos deveres da
religião, ou tratar da mesma maneira as diferentes religiões, não é permitido
nem aos indivíduos nem às sociedades; que a liberdade ilimitada de pensar e d
emitir em público os próprios pensamentos de modo algum deve ser colocada entre
os direitos dos cidadãos, nem entre as coisas dignas de favor e de proteção.
44. Do mesmo modo, cumpre admitir que, não menos que o Estado, a Igreja,
por sua natureza e de pleno direito, é uma sociedade perfeita; que os
depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem
lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar seja qual for dos
direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo. Nas questões do direito
misto, é plenamente conforme à natureza, bem como aos desígnios de Deus, não
separar um poder do outros, e ainda menos pô-los em luta, mas sim estabelecer
entre eles essa concórdia que está em harmonia com os atributos especiais por
cada sociedade recebidos da sua natureza.
45. Tais são as regras traçadas pela Igreja Católica relativamente à
constituição e ao governo dos Estados. Esses princípios e esses decretos, se se
quiser julgar somente deles, não reprovam em si nenhuma das diferentes formas
de governo, visto que estas nada têm que repugne à doutrina católica, e, se
forem aplicadas com sabedoria e justiça, todos podem garantir a prosperidade
pública. Bem mais, não se reprova em si que o povo tenha sua parte maior ou
menor no governo; isto até, em certos tempos e sob certas leis, pode tornar-se
não somente uma vantagem, mas um dever para os cidadãos. Demais, não há para
ninguém justo motivo de acusar a Igreja de ser inimiga quer de uma justa
tolerância, quer de uma são e legítima liberdade.
46. Efetivamente, se a Igreja julga não ser lícito por os diversos
cultos no mesmo pé legal que a verdadeira religião, nem por isso condena os
chefes de Estado que, em vista de um bem a alcançar ou de um mal a impedir,
toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada um seu lugar no
Estado.
47. É, aliás,
costume da Igreja velar com o maior cuidado por que ninguém seja forçado a
abraçar a fé católica contra sua vontade, porquanto, como observa sabiamente
Santo Agostinho, “o homem não pode crer senão querendo” (tract. XXVI in Ioan., n. 2).
48. Pela mesma razão, não pode a Igreja aprovar uma liberdade que gera o
desgosto das mais santas leis de Deus e sacode a obediência devida à autoridade
legítima. Isso é mais uma licença do que uma liberdade, e Santo Agostinho lhe
chama mui justamente “uma liberdade de perdição” (Epist. CV, ad Donatistas, cap. II, n. 9) e o Apóstolo S. Pedro “um véu de maldade” (1 Ped 2,
16). Muito mais: sendo oposta à razão, essa pretensa liberdade é uma verdadeira
escravidão. “Aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34).
49. Pelo contrário, liberdade verdadeira e desejável é a que, na ordem
individual, não deixa o homem escravo nem dos erros, nem das paixões, que são
os seus piores tiranos; e na ordem pública traça regras sábias aos cidadãos,
facilita largamente o incremento do bem-estar e preserva do arbítrio de outrem
a coisa pública. Essa liberdade honesta e digna do homem, a Igreja a aprova ao
mais alto ponto, e, para garantir aos povos o firme e integral gozo dela, nunca
cessou de lutar e de combater.
50. Sim, na verdade, tudo o que pode haver de salutar para o bem geral
no Estado; tudo o que é útil para proteger o povo contra a licença dos
príncipes que lhe não provêem ao bem; tudo o que impede as usurpações injustas
do Estado sobre a comuna ou sobre a família; tudo o que interessa à honra, à
personalidade humana e à salvaguarda dos direitos iguais de cada um; de tudo
isso a Igreja Católica sempre tomou quer a iniciativa, quer o patrocínio, quer
a proteção, como atestam os monumentos das idades precedentes. Sempre coerente
consigo mesma, se, de uma parte, dela repele uma liberdade imoderada que, para
os indivíduos e para os povos, degenera em licença ou em escravidão, de outra
parte abraça com todo o gosto os progressos que todo dia nascem, se
verdadeiramente contribuem para a prosperidade desta vida, que é como um
encaminhamento para a vida futura e para sempre duradoura. Assim, pois, dizer
que a Igreja vê com maus olhos as formas mais modernas dos sistemas políticos e
repele em bloco todas as descobertas do gênio contemporâneo, é uma calúnia vã e
sem fundamento. Sem dúvida, ela repudia as opiniões malsãs, reprova a
inclinação perniciosa para a revolta, e mui particularmente essas
predisposições dos espíritos em que já reponta a vontade de se afastar de Deus;
mas, como tudo o que é verdadeiro não pode proceder senão de Deus, em tudo o
que as investigações do espírito humano descobrem de verdade, a Igreja
reconhece como que um vestígio da inteligência divina; e como não há nenhuma
verdade natural que infirme a fé nas verdades divinamente reveladas, como há
muitas que a confirmam, e como todo descobrimento da verdade pode levar a
conhecer e a louvar ao próprio Deus, a Igreja acolherá sempre de bom grado e
com alegria tudo o que contribuir para alargar a esfera das ciências; e, assim
como sempre o fez para com as outras ciências, favorecerá e incentivará aquelas
que tem por objeto o estudo da natureza. Nesse gênero de estudos, a Igreja não
se opõe a nenhuma descoberta do espírito; vê sem desprezar tantas investigações
que tem por fim o prazer e o bem-estar; e, mesmo, inimiga nata da inércia e da
preguiça, deseja grandemente que o exercício e a cultura façam o gênio do homem
dar frutos abundantes. Ela tem incentivos para toda espécie de artes e
indústrias, e, dirigindo por sua virtude todas essas investigações para um fim
honesto e salutar, aplica-se a impedir que a inteligência e a indústria do
homem não o desviem de Deus e dos bens celestes.
51. Esta maneira de agir, todavia tão racional e tão sábia, é que é
desacreditada nestes tempos em que os Estados não somente recusam conformar-se
aos princípios da filosofia cristã, mas parecem querer afastar-se dela cada dia
mais. Não obstante, sendo próprio da luz irradiar por si mesma ao longe e
penetrar aos poucos os espíritos dos homens, movidos como somos pela
consciência das altíssimas e santíssimas obrigações da missão apostólica de que
estamos investidos para com todos os povos, livremente proclamamos, consoante o
Nosso dever, a verdade, não porque não levemos em nenhuma conta os tempos, ou
julgamos dever proscrever os honestos e úteis progressos da Nossa idade; mas
porque quereríamos ver os negócios públicos seguirem caminhos menos perigosos e
repousarem em fundamentos mais sólidos, e isso deixando intacta a liberdade
legítima dos povos; essa liberdade de que a verdade é entre os homens a fonte e
a melhor salvaguarda: “A verdade vos libertará” (Jo 7, 32).
52. Se, pois, nessas conjunturas difíceis os católicos Nos escutarem,
como é seu dever, saberão exatamente quais são os deveres de cada um na
“teoria” como na “prática”. Na teoria, primeiro, é necessário ater-se com
decisão inabalável a tudo o que os Pontífices romanos têm ensinado ou
ensinarem, e, todas as vezes que as circunstâncias o exigirem, fazer disso
profissão pública. Particularmente no que diz respeito às “liberdades
modernas”, como lhes chamam, deve cada um ater-se ao julgamento da Sé
Apostólica e conformar-se com suas decisões. Cumpre resguardar-se de se deixar
enganar pela honestidade especiosa dessas liberdades, e lembrar-se de que
fontes elas emanam e por que espírito se propagam e se sustentam. A experiência
já tem feito suficientemente conhecer os resultados que elas têm tido para a
sociedade, e o quanto os frutos que elas têm dado inspiram com toda razão
pesares aos homens funestos e prudentes. Se existe algures, ou pelo pensamento
se imaginar um Estado que persiga disfaçada e tiranicamente o nome cristão, e
se o confrontarmos com o gênero do governo moderno de que falamos, este último
poderá parecer mais tolerável. Certamente, os princípios em que este último se
baseia são de tal natureza, como dissemos, que em si mesmo por ninguém devem
ser aprovados.
53. Na prática, a ação pode exercer-se já nos negócios privados e
domésticos, já nos negócios públicos. Na ordem privada, o primeiro dever de
cada um é de conformar exatamente a própria vida e os próprios costumes aos
preceitos do Evangelho, e de não recuar ante o que a virtude cristã impõe de um
pouco difícil de sofrer e aturar. Todos devem, além disso, amar a Igreja como
sua Mãe comum, obedecer às suas leis, prover à sua honra, salvaguardar-lhe os
direitos, e tomar cuidado de que aqueles sobre os quais exercem alguma
autoridade a respeitem e a amem com a mesma piedade filial.
54. À salvação pública importa ainda que os católicos emprestem
sensatamente o seu concurso à administração dos negócios municipais e se
apliquem sobretudo a fazer com que a autoridade pública atenda à educação
religiosa e moral da juventude, como convém a cristãos: daí depende sobretudo a
salvação da sociedade. Será geralmente útil e louvável que os católicos
estendam a sua ação além dos limites desse campo demasiado restrito, e se
cheguem aos grandes cargos do Estado. “Geralmente”, dizemos, porque aqui os
Nossos conselhos se dirigem a todas as nações. Aliás, pode suceder algures que,
por motivos os mais graves e os mais justos, absolutamente não seja conveniente
participar dos negócios públicos seria tão repreensível como não trazer à utilidade
comum nem desvelo nem concurso: tanto mais quanto, em virtude mesmo da doutrina
que professam, os católicos são obrigados a cumprir esse dever com toda
integridade e consciência. Aliás. Abstendo-se eles, as rédeas do governo
passarão sem contestação às mãos daqueles cujas opiniões certamente não
oferecem grande esperança de salvação para o Estado.
55. Seria isso, ademais, pernicioso aos interesses cristãos, porque os
inimigos da Igreja teriam todo o poder e os defensores dela, nenhum.
Evidentemente é, pois, que os católicos têm justos motivos para participar da
vida política; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que
pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas; porquanto o
fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável
presentemente nas instituições políticas, mas para tirar dessas próprias
instituições, tanto quanto possível, o bem público sincero e verdadeiro,
propondo-se infundir em todas as veias do Estado, como uma seiva e um sangue
reparador, a virtude e a influência da religião católica.
56. Assim foi nas primeiras idades da Igreja. Nada estava mais
distanciado das máximas e costumes do Evangelho do que as máximas e costumes
dos pagãos; viam-se, todavia, os cristãos, incorruptíveis em plena superstição
e sempre semelhantes a si mesmos, entrarem corajosamente em toda parte onde se
abria um acesso. De uma fidelidade exemplar para com os príncipes e de uma
obediência às leis do Estado tão perfeita como lhes era lícito, eles lançavam
de toda parte um maravilhoso brilho de santidade, esforçavam-se por ser úteis a
seus irmãos e por atrair os outros a seguirem Nosso Senhor, dispostos
entretanto a ceder o lugar e a morrer corajosamente se não pudessem, sem
vulnerar a sua consciência, conservar as honras as magistraturas e os cargos
militares. Desse modo, introduziram eles rapidamente as instituições cristãs
não somente nos lares domésticos, mas nos acampamentos, na cúria, e até no
palácio imperial. “Somos apenas de ontem, e já enchemos tudo o que é vosso,
vossas cidades, vossas ilhas, vossas fortalezas, vossos municípios, vossos
conciliábulos, vossos próprios acampamentos, as tribos, as decúrias, o palácio,
o senado, o fórum” (Tertull., Apol., n. 37). Por isso, quando foi
permitido professar publicamente o Evangelho, a fé cristã apareceu em grande
número de cidades não em vagidos ainda, porém forte e já cheia de vigor.
57. Nos tempos em que estamos, há toda razão para renovar esses exemplos
de nossos pais. Antes de tudo, é necessário que todos os católicos dignos
deste nome se determinem a ser e mostrar-se filhos dedicados da Igreja; que
repilam sem hesitar tudo o que seja incompatível com essa profissão; que se
sirvam das instituições públicas, tanto quanto o puderem fazer em consciência,
em proveito da verdade e da justiça; que trabalhem para que a liberdade não
exceda o limite traçado pela lei natural e divina; que tomem a peito reconduzir
toda constituição pública a essa forma cristã que havemos proposto para modelo.
58. Não é coisa fácil determinar um modo único e certo para realizar
esses dados, visto dever ele convir a lugares e a tempos mui dispares entre si.
Não obstante, cumpre antes de tudo conservar a concórdia das vontades e tender
à uniformidade da ação. Obter-se-á seguramente esse duplo resultado se cada um
tomar como regra de conduta as prescrições da Sé Apostólica e a obediência aos
bispos, que “o Espírito Santo estabeleceu para reger a Igreja de Deus” (At
20, 28). A defesa do nome cristão reclama imperiosamente que o assentimento às
doutrinas ensinadas pela Igreja seja da parte de todos unânime e constante, e,
por este lado, cumpre resguardar-se ou de estar, no que quer que seja, de
conivência com as falsas opiniões, ou de combatê-las mais molemente do que
comporta a verdade. Quanto às coisas sobre que se pode discutir livremente,
será lícito discutir com moderação e no intuito de procurar a verdade, mas
pondo de lado as suspeitas injustas e as acusações recíprocas.
59. Para este fim, no medo de que a união dos espíritos seja destruída
por acusações temerárias, eis aqui o que todos devem admitir: a profissão
íntegra da fé católica absolutamente incompatível com as opiniões que se
aproximam do “racionalismo” e do “naturalismo”, e cujo capital é destruir
completamente as instituições cristãs e estabelecer na sociedade a autoridade
do homem em lugar da de Deus. Não é, tão pouco, permitido ter duas maneira de
proceder: uma em particular e outra em público, de modo a respeitar a
autoridade da Igreja ma vida privada e a rejeitá-la na vida pública; isso seria
aliar juntos o bem e o mal e pôr o homem em luta consigo mesmo, quando, ao
contrário, deve ele sempre ser coerente, e em nenhum gênero de vida ou de
negócios afastar-se da virtude cristã. Mas se se tratar de questões puramente políticas,
do melhor gênero de governo, de tal ou tal sistema de administração civil,
divergências honestas são lícitas. A justiça não sobre, pois, que se criminem
homens cuja piedade é aliás conhecida, e cuja mente é inteiramente disposta a
aceitar docilmente as decisões da Santa Sé, por serem de opinião diferente
sobre os pontos em questão. Injustiça muito maior ainda seria suspeitar-lhes a
fé ou acusá-los de traí-la, como mais de uma vez o havemos lamentado. Seja esta
lei uma imprescritível para os escritores e sobretudo para os jornalistas.
60. Numa luta em que os maiores interesses estão em jogo, não se deve
deixar lugar algum às dissensões intestinas ou ao espírito de partido; mas, num
acordo unânime dos espíritos e dos corações, todos devem perseguir o escopo
comum, que é salvar os grandes interesses da religião e da sociedade. Se, pois,
no passado, tiveram lugar alguns dissentimentos, cumpre sepultá-los num sincero
esquecimento; se alguma temeridade, se alguma injustiça foi cometida, seja qual
for o culpado, cumpre tudo reparar por uma caridade recíproca tudo redimir por
um comum assalto de deferências para com a Santa Sé. Deste modo, obterão os
católicos duas vantagens importantíssimas: a de ajudarem a Igreja a conservar e
a propagar a doutrina cristã, e a de prestarem o serviço mais assinalado à
sociedade, cuja salvação está fortemente comprometida pelas más doutrinas e
pelas más paixões.
61. É isso, Veneráveis Irmãos, o que julgamos dever ensinar a todas as
nações do orbe católico sobre a constituição cristã dos Estados e os deveres
privados dos súditos. Resta-Nos implorar por ardentes preces o socorro celeste,
e suplicar a Deus fazer Ele próprio atingirem o termo desejado todos os Nossos
desejos e todos os Nossos esforços para a sua glória e para a salvação do
gênero humano, Ele que é só quem pode iluminar os espíritos e tocar os corações
dos homens. Como penhor das bênçãos divinas e em testemunho da Nossa paternal
benevolência, damo-Vos na caridade do Senhor, Veneráveis Irmãos, a Vós bem como
ao clero e ao povo inteiro confiado à Vossa guarda e à Vossa vigilância, a
Benção Apostólica.
Dado em Roma, em S. Pedro, a 1° de novembro de 1885, oitavo ano do Nosso Pontificado.
LEÃO XIII, PAPA
OBS: OS
DESTAQUES SÃO NOSSOS.