EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
PÓS-SINODAL
SACRAMENTUM CARITATIS
DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
FONTE E ÁPICE DA VIDA
E DA MISSÃO DA IGREJA
PÓS-SINODAL
SACRAMENTUM CARITATIS
DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
FONTE E ÁPICE DA VIDA
E DA MISSÃO DA IGREJA
Introdução [1]
O alimento da verdade [2]
O desenvolvimento do rito eucarístico [3]
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia [4]
Finalidade do documento [5]
I PARTEO desenvolvimento do rito eucarístico [3]
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia [4]
Finalidade do documento [5]
EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO
A fé eucarística da Igreja [6]
Santíssima Trindade e Eucaristia
O pão descido do céu [7]
Dom gratuito da Santíssima Trindade [8]
Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imoladoDom gratuito da Santíssima Trindade [8]
A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro [9]
A instituição da Eucaristia [10]
A figura deu lugar à Verdade [11]
O Espírito Santo e a EucaristiaA instituição da Eucaristia [10]
A figura deu lugar à Verdade [11]
Jesus e o Espírito Santo [12]
Espírito Santo e celebração eucarística [13]
Eucaristia e IgrejaEspírito Santo e celebração eucarística [13]
Eucaristia, princípio causal da Igreja [14]
Eucaristia e comunhão eclesial [15]
Eucaristia e SacramentosEucaristia e comunhão eclesial [15]
Sacramentalidade da Igreja [16]
I. Eucaristia e iniciação cristã
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã [17]
A ordem dos sacramentos da iniciação [18]
Iniciação, comunidade eclesial e família [19]
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã [17]
A ordem dos sacramentos da iniciação [18]
Iniciação, comunidade eclesial e família [19]
II. Eucaristia e sacramento da Reconciliação
Sua ligação intrínseca [20]
Alguns cuidados pastorais [21]
Sua ligação intrínseca [20]
Alguns cuidados pastorais [21]
IV. Eucaristia e sacramento da Ordem
Na pessoa de Cristo cabeça [23]
Eucaristia e celibato sacerdotal [24]
Escassez de clero e pastoral vocacional [25]
Gratidão e esperança [26]
Na pessoa de Cristo cabeça [23]
Eucaristia e celibato sacerdotal [24]
Escassez de clero e pastoral vocacional [25]
Gratidão e esperança [26]
V. Eucaristia e Matrimónio
Eucaristia, sacramento esponsal [27]
Eucaristia e unidade do Matrimónio [28]
Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio [29]
Eucaristia e escatologiaEucaristia, sacramento esponsal [27]
Eucaristia e unidade do Matrimónio [28]
Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio [29]
Eucaristia, dom para o homem a caminho [30]
O banquete escatológico [31]
Oração pelos defuntos [32]
A Eucaristia e a Virgem Maria [33]O banquete escatológico [31]
Oração pelos defuntos [32]
II PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO
Norma da oração e norma de fé [34]
Beleza e liturgia [35]
A celebração eucarística, obra de Cristo inteiroBeleza e liturgia [35]
Cristo inteiro: cabeça e corpo [36]
Eucaristia e Cristo ressuscitado [37]
Arte da celebração
[38]Eucaristia e Cristo ressuscitado [37]
O bispo, liturgista por excelência [39]
O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais [40]
Arte ao serviço da celebração [41]
O canto litúrgico [42]
A estrutura da celebração eucarística [43]O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais [40]
Arte ao serviço da celebração [41]
O canto litúrgico [42]
Unidade intrínseca da acção litúrgica [44]
A liturgia da palavra [45]
A homilia [46]
Apresentação das oferendas [47]
A Oração Eucarística [48]
Saudação da paz [49]
Distribuição e recepção da Eucaristia [50]
A despedida: « Ite, missa est » [51]
Participação activaA liturgia da palavra [45]
A homilia [46]
Apresentação das oferendas [47]
A Oração Eucarística [48]
Saudação da paz [49]
Distribuição e recepção da Eucaristia [50]
A despedida: « Ite, missa est » [51]
Autêntica participação [52]
Participação e ministério sacerdotal [53]
Celebração eucarística e inculturação [54]
Condições pessoais para uma participação activa [55]
Participação dos cristãos não católicos [56]
Participação através dos meios de comunicação [57]
Participação activa dos doentes [58]
A solicitude pelos presos [59]
Os migrantes e a participação na Eucaristia [60]
As grandes concelebrações [61]
A língua latina [62]
Celebrações eucarísticas em pequenos grupos [63]
Celebração interiormente participadaParticipação e ministério sacerdotal [53]
Celebração eucarística e inculturação [54]
Condições pessoais para uma participação activa [55]
Participação dos cristãos não católicos [56]
Participação através dos meios de comunicação [57]
Participação activa dos doentes [58]
A solicitude pelos presos [59]
Os migrantes e a participação na Eucaristia [60]
As grandes concelebrações [61]
A língua latina [62]
Celebrações eucarísticas em pequenos grupos [63]
Catequese mistagógica [64]
A reverência à Eucaristia [65]
Adoração e piedade eucarísticaA reverência à Eucaristia [65]
A relação intrínseca entre celebração e adoração [66]
A prática da adoração eucarística [67]
Formas de devoção eucarística [68]
O lugar do sacrário na igreja [69]
III PARTEA prática da adoração eucarística [67]
Formas de devoção eucarística [68]
O lugar do sacrário na igreja [69]
EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO
Forma eucarística da vida cristã
O culto espiritual [70]
Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico [71]
Viver segundo o domingo [72]
Viver o preceito dominical [73]
O sentido do repouso e do trabalho [74]
Assembleias dominicais na ausência de sacerdote [75]
Uma forma eucarística da existência cristã, a pertença eclesial [76]
Espiritualidade e cultura eucarística [77]
Eucaristia e evangelização das culturas [78]
Eucaristia e fiéis leigos [79]
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal [80]
Eucaristia e vida consagrada [81]
Eucaristia e transformação moral [82]
Coerência eucarística [83]
Eucaristia, mistério anunciadoEficácia omnicompreensiva do culto eucarístico [71]
Viver segundo o domingo [72]
Viver o preceito dominical [73]
O sentido do repouso e do trabalho [74]
Assembleias dominicais na ausência de sacerdote [75]
Uma forma eucarística da existência cristã, a pertença eclesial [76]
Espiritualidade e cultura eucarística [77]
Eucaristia e evangelização das culturas [78]
Eucaristia e fiéis leigos [79]
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal [80]
Eucaristia e vida consagrada [81]
Eucaristia e transformação moral [82]
Coerência eucarística [83]
Eucaristia e missão [84]
Eucaristia e testemunho [85]
Jesus Cristo, único Salvador [86]
Liberdade de culto [87]
Eucaristia, mistério oferecido ao mundoEucaristia e testemunho [85]
Jesus Cristo, único Salvador [86]
Liberdade de culto [87]
Eucaristia, pão repartido para a vida do mundo [88]
As implicações sociais do mistério eucarístico [89]
O alimento da verdade e a indigência do homem [90]
A doutrina social da Igreja [91]
Santificação do mundo e defesa da criação [92]
Utilidade dum Compêndio Eucarístico [93]
Conclusão [94-97]As implicações sociais do mistério eucarístico [89]
O alimento da verdade e a indigência do homem [90]
A doutrina social da Igreja [91]
Santificação do mundo e defesa da criação [92]
Utilidade dum Compêndio Eucarístico [93]
INTRODUÇÃO
1. Sacramento da Caridade, (1) a santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de
Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste
sacramento admirável, manifesta-se o amor « maior »: o amor que leva a « dar a
vida pelos amigos » (Jo 15, 13). De facto, Jesus « amou-os até ao fim »
(Jo 13, 1). Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de
infinita humildade que Ele realizou: na vigília da sua morte por nós na cruz,
pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus discípulos. Do mesmo modo, no
sacramento eucarístico, Jesus continua a amar-nos « até ao fim », até ao dom do
seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos
discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que
maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico!
O alimento da verdade
2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem,
criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu
companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento
para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo
8, 36), Cristo faz-Se alimento de
Verdade para nós. Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho
pôs em evidência como o homem se move espontaneamente, e não constrangido,
quando encontra algo que o atrai e nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma
vez, sobre o que poderia em última análise mover o homem no seu íntimo, o santo
bispo exclama: « Que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade? »
(2) De facto, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimível da verdade
última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, « caminho, verdade e vida » (Jo
14, 6), dirige-Se ao coração anelante do homem que se sente peregrino e
sedento, ao coração que suspira pela fonte da vida, ao coração mendigo da
Verdade. Com efeito, Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai a Si o
mundo. « Jesus é a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a
sua orientação, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade
desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade
volta a encontrar-se a si mesma ».(3) No sacramento da Eucaristia, Jesus
mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria
essência de Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao
homem todo. Por isso a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital,
esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propício e fora dele (opportune,
importune: cf. 2 Tm 4, 2), que Deus é amor.(4) Exactamente porque
Cristo Se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem
convidando-o a acolher livremente o dom de Deus.
O desenvolvimento do rito eucarístico
3. Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus,
sapientemente guiada pela acção do Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão
o desenvolvimento ordenado no tempo das formas rituais em que fazemos memória
do acontecimento da nossa salvação. Desde as múltiplas formas dos primeiros
séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, até à
difusão do rito romano; desde as
indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de São Pio V até à
renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da
história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua
vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza.
A XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005 no
Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta história,
reconhecendo nela a guia activa do Espírito Santo. De modo particular, os
padres sinodais reconheceram e reafirmaram o
benéfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma litúrgica actuada a
partir do Concílio Ecuménico Vaticano II.(5) O Sínodo dos Bispos pôde
avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da assembleia conciliar; inúmeros
foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados não podem ofuscar a excelência e a
validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não
plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanças queridas pelo
Concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico do
próprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.(6)
O Sínodo dos Bispos e o Ano da
Eucaristia
4. Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente
Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia com o que sucedeu durante os últimos anos
na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000,
com o qual meu amado predecessor, o servo de Deus João Paulo II, introduziu a
Igreja no terceiro milénio cristão; o Ano Jubilar teve, sem dúvida, uma
caracterização intensamente eucarística. Depois, não se pode esquecer que o
Sínodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido, preparado também pelo Ano
da Eucaristia, estabelecido com grande clarividência por João Paulo II para
toda a Igreja; teve início com o Congresso Eucarístico Internacional em
Guadalajara no mês de Outubro de 2004 e terminou a 23 de Outubro de 2005, no
final da XI Assembleia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se
distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski,
os sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado
Cruchaga, e o religioso capuchinho Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos
propostos por João Paulo II na Carta Apostólica Mane nobiscum Domine (7) e às preciosas
sugestões da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,(8)
numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as diversas realidades
eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé eucarística,
para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para
encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os
necessitados. Por último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica
do meu venerado predecessor, a Ecclesia
de Eucharistia,(9) deixando-nos através dela uma segura
referência do Magistério quanto à doutrina eucarística e um derradeiro
testemunho do lugar central que este sacramento divino ocupava na sua vida.
Finalidade do documento
5. Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objectivo
recolher a multiforme riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente
Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos — a começar dos Lineamenta até
às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, as Relationes
ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores
e delegados fraternos —, com a intenção de explicitar algumas linhas
fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor
eucarístico. Consciente do vasto património doutrinal e disciplinar acumulado
no decurso dos séculos à volta da Eucaristia,(10) neste documento desejo
sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,(11) que o povo
cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a acção
litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia
enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar
esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica — a Deus caritas est —, na qual várias
vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o
amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: « O Deus encarnado
atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que motivo o termo agape se
tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem
corporalmente a nós, para continuar a sua acção em nós e através de nós ».(12)
I PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO
« A obra de Deus consiste
em acreditar n'Aquele que Ele enviou »
(Jo 6, 29)
em acreditar n'Aquele que Ele enviou »
(Jo 6, 29)
A fé eucarística da Igreja
A fé eucarística da Igreja
6. « Mistério da fé! »: com esta exclamação
pronunciada logo a seguir às palavras da consagração, o sacerdote proclama o
mistério celebrado e manifesta o seu enlevo diante da conversão substancial do
pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor Jesus, realidade esta que
ultrapassa toda a compreensão humana. Com
efeito, a Eucaristia é por excelência « mistério da fé »: « É o resumo e a
súmula da nossa fé ».(13) A fé da Igreja é essencialmente fé eucarística e
alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos
são dois aspectos complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anúncio da
palavra de Deus, a fé é alimentada e cresce no encontro com a graça do Senhor
ressuscitado que se realiza nos sacramentos: « A fé exprime-se no rito e este
revigora e fortifica a fé ».(14) Por isso, o sacramento do altar está sempre no
centro da vida eclesial; « graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de
novo! » (15) Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais
profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta
à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria
história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à
redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo.
Santíssima Trindade e Eucaristia
O pão descido do céu
7. O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério
de Deus, amor trinitário. No diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma
afirmação esclarecedora a tal respeito: « Deus amou tanto o mundo que entregou
o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n'Ele não pereça, mas
tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o
mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele » (Jo 3, 16-17). Estas
palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá « alguma coisa », mas dá-Se a Si mesmo;
entrega o seu corpo e derrama o seu sangue. Deste modo dá a totalidade da
sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho
eterno que o Pai entregou por nós. Noutro passo do evangelho, depois de Jesus
ter saciado a multidão pela multiplicação dos pães e dos peixes, ouvimo-Lo dizer
aos interlocutores que vieram atrás d'Ele até à sinagoga de Cafarnaum: « Meu
Pai é que vos dá o verdadeiro pão que vem do céu. O pão de Deus é o que desce
do céu para dar a vida ao mundo » (Jo 6, 32-33), acabando por
identificar-Se Ele mesmo — a sua própria carne e o seu próprio sangue — com
aquele pão: « Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá
eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida
do mundo » (Jo 6, 51). Assim Jesus manifesta-Se como o pão da vida que o
Pai eterno dá aos homens.
Dom gratuito da Santíssima Trindade
8. Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda
a história da salvação (Ef 1, 9-10; 3, 8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus
Trinitas), que em Si mesmo é amor (1 Jo 4, 7-8), envolve-Se
plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas aparências
Cristo Se nos dá na ceia pascal (Lc 22, 14-20; 1 Cor 11, 23-26),
é toda a vida divina que nos alcança e se comunica a nós na forma do
sacramento: Deus é comunhão perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito
Santo. Já na criação, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o
sopro vital de Deus (Gn 2, 7). Mas, é em Cristo morto e ressuscitado e
na efusão do Espírito Santo, dado sem medida (Jo 3, 34), que nos tornamos
participantes da intimidade divina.(16) Assim Jesus Cristo, que « pelo Espírito
eterno Se ofereceu a Deus como vítima sem mancha » (Heb 9, 14), no dom
eucarístico comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom
absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além
de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel
obediência. O « mistério da fé » é mistério de amor trinitário, no qual, por
graça, somos chamados a participar. Por isso, também nós devemos exclamar com
Santo Agostinho: « Se vês a caridade, vês a Trindade ».(17)
Eucaristia:
Jesus verdadeiro Cordeiro imolado
Jesus verdadeiro Cordeiro imolado
A nova e eterna aliança no sangue do
Cordeiro
A instituição da Eucaristia
10. Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição
da Eucaristia durante a Última Ceia. O facto teve lugar no âmbito duma ceia
ritual, que constituía o memorial do acontecimento fundador do povo de Israel:
a libertação da escravidão do Egipto. Esta ceia ritual, associada com a
imolação dos cordeiros (Ex 12, 1-28. 43-51), era memória do passado, mas
ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anúncio duma libertação
futura; de facto, o povo experimentara que aquela libertação não tinha sido
definitiva, pois a sua história ainda estava demasiadamente marcada pela
escravidão e pelo pecado. O memorial da antiga libertação abria-se, assim, à
súplica e ao anseio por uma salvação mais profunda, radical, universal e
definitiva. É neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na
oração de louvor — a Berakah —, Ele dá graças ao Pai não só pelos
grandes acontecimentos da história passada, mas também pela sua própria «
exaltação ». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica
o sacrifício da cruz e a vitória da ressurreição; ao mesmo tempo, revela-Se como
o verdadeiro cordeiro imolado, previsto no desígnio do Pai desde a
fundação do mundo, como se lê na I Carta de Pedro (1, 18-20). Ao colocar
o dom de Si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido salvífico da sua
morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade renovadora da
história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra
como aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus,
acto supremo de amor e libertação definitiva da humanidade do mal.
A figura deu lugar à Verdade
11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum)
radical no âmbito da antiga ceia sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir.
Como justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que
anunciava as realidades futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo
rito consumou-se e ficou definitivamente superado mediante o dom de amor do
Filho de Deus encarnado. O alimento da verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo
às figuras (dat figuris terminum).(20) Com a sua ordem « Fazei isto
em memória de Mim » (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25), pede-nos para
corresponder ao seu dom e representá-Lo sacramentalmente; com tais palavras, o
Senhor manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu
sacrifício, acolha este dom desenvolvendo, sob a guia do Espírito Santo, a
forma litúrgica do sacramento. De facto, o memorial do seu dom perfeito não
consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou
seja, na novidade radical do culto cristão. Assim Jesus deixou-nos a missão de
entrar na sua « hora »: « A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus.
Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos
envolvidos na dinâmica da sua doação ».(21) Ele « arrasta-nos para dentro de Si
».(22) A conversão substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue
insere dentro da criação o princípio duma mudança radical, como uma espécie de
« fissão nuclear » (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós),
verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo
de transformação da realidade, cujo termo último é a transfiguração do mundo
inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15,
28).
O Espírito Santo e a Eucaristia
Jesus e o Espírito Santo
12. Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor
nos ofereceu os elementos essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico dia
após dia em memória d'Ele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu
Esposo na história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as
culturas. Este grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja,
guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço.(23) A propósito, é
necessário despertar em nós a consciência da função decisiva que exerce o
Espírito Santo no desenvolvimento da forma litúrgica e no aprofundamento dos
mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido aos crentes,(24) activo
já na criação (Gn 1, 2), está presente em plenitude na vida inteira do
Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (Mt
1, 18; Lc 1, 35); no início da sua missão pública, nas margens do
Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3, 16 e par.);
neste mesmo Espírito, age, fala e exulta (Lc 10, 21); e é n'Ele que
Jesus pode oferecer-Se a Si mesmo (Heb 9, 14). No chamado « discurso de
despedida » referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua
vida no mistério pascal com o dom do Espírito aos Seus (Jo 16, 7).
Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixão, pode
derramar o Espírito (Jo 20, 22), tornando os seus discípulos participantes
da mesma missão d'Ele (Jo 20, 21). Em seguida, será o Espírito que
ensina aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha
dito (Jo 14, 26), porque compete a Ele, enquanto Espírito da verdade (Jo
15, 26), introduzir os discípulos na verdade total (Jo 16, 13).
Segundo narram os Actos, o Espírito desce sobre os Apóstolos reunidos em
oração com Maria no dia de Pentecostes (2, 1-4), e impele-os para a missão de
anunciar a boa nova a todos os povos. Portanto, é em virtude da acção do
Espírito que o próprio Cristo continua presente e activo na sua Igreja, a
partir do seu centro vital que é a Eucaristia.
Espírito Santo e celebração eucarística
13. Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem
o Espírito Santo na celebração eucarística e, de modo particular, no que se
refere à transubstanciação. É fácil de comprovar a consciência disto mesmo nos
Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São Cirilo de Jerusalém recorda
que « invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Espírito sobre
as oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em corpo de Cristo
e o vinho em sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca, é santificado e
transformado totalmente ».(25) Também São João Crisóstomo assinala que o
sacerdote invoca o Espírito Santo quando celebra o Sacrifício: (26) à
semelhança de Elias, o ministro atrai o Espírito Santo para que, « descendo a
graça sobre a vítima, se incendeiem por meio dela as almas de todos ».(27) É
extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais
clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por
Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é invocação ao Pai para que faça
descer o dom do Espírito a fim de o pão e o vinho se tornarem o corpo e o
sangue de Jesus Cristo, e para que « a comunidade inteira se torne cada vez
mais corpo de Cristo ».(28) O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons
do pão e do vinho colocados sobre o altar, é o mesmo que reúne os fiéis « num
só corpo », tornando-os uma oferta espiritual agradável ao Pai.(29)
Eucaristia e Igreja
Eucaristia, princípio causal da Igreja
14. Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os
fiéis na sua própria « hora »; mostra-nos assim a ligação que quis entre Ele mesmo
e nós, entre a sua pessoa e a Igreja. De facto, o próprio Cristo, no sacrifício
da cruz, gerou a Igreja como sua esposa
e seu corpo. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há
entre a origem de Eva do lado de Adão adormecido (Gn 2, 21-23) e a da
nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo mergulhado no sono da morte: do
seu lado trespassado — narra João — saiu sangue e água (Jo 19, 34),
símbolo dos sacramentos.(30) Um olhar contemplativo para « Aquele que trespassaram
» (Jo 19, 37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício
de Cristo, a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta « vive da Eucaristia
».(31) Uma vez que nela se torna presente o sacrifício redentor de Cristo,
temos de reconhecer antes de mais que « existe um influxo causal da Eucaristia
nas próprias origens da Igreja ».(32) A Eucaristia é Cristo que Se dá a nós,
edificando-nos continuamente como seu corpo. Portanto, na sugestiva
circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que
faz a Eucaristia,(33) a causalidade primária está expressa na primeira fórmula:
a Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia,
precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifício da
Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de « fazer » a Eucaristia está radicada
totalmente na doação que Jesus lhe fez de Si mesmo. Também este aspecto nos
persuade de quão verdadeira seja a frase de São João: « Ele amou-nos primeiro »
(1 Jo 4, 19). Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o
primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da
Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também
ontológica do amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade,
Aquele que nos ama primeiro.
Eucaristia e comunhão eclesial
O servo de Deus João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia
de Eucharistia, tinha já chamado a atenção para a relação entre
Eucaristia e communio: falou do memorial de Cristo como sendo a «
suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja ».(36) A unidade da
comunhão eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se
no acto eucarístico que as une e diferencia em Igrejas particulares, « in
quibus et ex quibus una et unica Ecclesia catholica exsistit – nas quais e pelas quais
existe a Igreja Católica, una e única ».(37) É precisamente a realidade da
única Eucaristia celebrada em cada diocese ao redor do respectivo Bispo que nos
faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex
Ecclesia. De facto, « a unicidade e indivisibilidade do corpo eucarístico
do Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e
indivisível. Do centro eucarístico surge a necessária abertura de cada
comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos
braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção no seu corpo, único e indiviso
».(38) Por este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua
Igreja, isto é, na Igreja de Cristo.
Nesta perspectiva eucarística, adequadamente entendida, a comunhão eclesial
revela-se realidade católica por sua natureza.(39) O facto de sublinhar esta
raiz eucarística da comunhão eclesial pode contribuir
eficazmente também para o diálogo ecuménico com as Igrejas e com as Comunidades
eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade,
a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a
natureza do mistério da Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevância dada ao
carácter eclesial da Eucaristia pode tornar-se elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da
Reforma.(40)
Eucaristia e Sacramentos
Sacramentalidade da Igreja
16. O Concílio Vaticano II lembrou que « os restantes
sacramentos, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de
apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com
efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja,
isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida
mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são
eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus
trabalhos e todas as coisas criadas ».(41) Esta relação íntima da Eucaristia
com os demais sacramentos e com a existência cristã compreende-se, na sua raiz,
quando se contempla o mistério da própria Igreja como sacramento.(42) A este
respeito, o referido Concílio afirmou que « a Igreja, em Cristo, é como que o
sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de
todo o género humano ».(43) Ela, enquanto « povo — como diz São Cipriano —
reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo »,(44) é sacramento da
comunhão trinitária.
O facto de a Igreja ser « universal sacramento da salvação
»(45) mostra que a « economia » sacramental determina, em última análise, o
modo como Jesus Cristo único Salvador, por meio do Espírito, alcança a nossa
vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja recebe-se e
simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de
Deus influencia concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida,
redimida por Cristo, se torne culto agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo
sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem
ajudar a identificar a relação dos diversos sacramentos com o mistério
eucarístico.
I. Eucaristia e iniciação cristã
Eucaristia, plenitude da iniciação
cristã
17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e
da missão da Igreja, temos de concluir antes de mais que o caminho de iniciação
cristã tem como ponto de referência tornar possível o acesso a tal sacramento.
A propósito, devemos interrogar-nos — como sugeriram os padres sinodais — se as
nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do vínculo estreito que há
entre Baptismo, Confirmação e Eucaristia; (46) de facto, é preciso não esquecer jamais que somos baptizados e crismados
em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer na
acção pastoral uma compreensão mais unitária do percurso de iniciação cristã. O
sacramento do Baptismo, pelo qual somos configurados a Cristo,(47) incorporados
na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os
sacramentos; através dele, somos inseridos no único corpo de Cristo (1 Cor 12,
13), povo sacerdotal. Mas é a participação no sacrifício eucarístico que
aperfeiçoa, em nós, o que recebemos no Baptismo. Também os dons do Espírito são
concedidos para a edificação do corpo de Cristo (1 Cor 12) e o
crescimento do testemunho evangélico no mundo.(48) Portanto, a santíssima
Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro e termo
de toda a vida sacramental.(49)
A ordem dos sacramentos da iniciação
Iniciação, comunidade eclesial e família
19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã
é caminho de conversão que háde ser realizada com a ajuda de Deus e em
constante referimento à comunidade eclesial, quer quando é o adulto que pede
para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira evangelização e em
muitas zonas secularizadas, quer quando são os pais a pedir os sacramentos para
seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a relação
entre iniciação cristã e família; na acção pastoral, sempre se deve associar a
família cristã ao itinerário de iniciação. Receber
o Baptismo, a Confirmação e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia são
momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas também para toda a
sua família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela
comunidade eclesial em suas diversas componentes.(53) Quero sublinhar aqui a relevância da Primeira Comunhão; para inúmeros
fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na memória como o primeiro
momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importância do
encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar
adequadamente esta ocasião tão significativa.
II. Eucaristia e sacramento da
Reconciliação
Sua ligação intrínseca
20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à
Eucaristia leva a apreciar cada vez mais também o sacramento da
Reconciliação.(54) Por causa da ligação entre ambos os sacramentos, uma
catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser separada da
proposta dum caminho penitencial (1 Cor 11, 27-29). Constatamos — é certo — que, no nosso tempo, os fiéis se
encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,(55) favorecendo um estado de espírito
superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na graça de Deus para se
aproximar dignamente da comunhão sacramental.(56) Na realidade, a perda
da consciência do pecado engloba sempre também uma certa superficialidade na
compreensão do próprio amor de Deus. É muito útil para os fiéis recordar-lhes
os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a consciência do próprio
pecado e, simultaneamente, da misericórdia de Deus.(57) Além disso, a relação entre
a Eucaristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado nunca é uma realidade
exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio da
comunhão eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo Baptismo. Por isso,
como diziam os Padres da Igreja, a Reconciliação é um baptismo laborioso (laboriosus
quidam baptismus),(58) sublinhando assim que o resultado do caminho de
conversão é também o restabelecimento da plena comunhão eclesial, que se
exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.(59)
Alguns cuidados pastorais
21. O Sínodo lembrou que é
dever pastoral do bispo promover na sua diocese uma decisiva recuperação da
pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer entre os fiéis a
confissão frequente. Todos os sacerdotes
se dediquem com generosidade, empenho e competência à administração do
sacramento da Reconciliação.(60) A propósito, procure-se que, nas nossas
igrejas, os confessionários sejam bem
visíveis e expressivos do significado deste sacramento. Peço aos pastores
que vigiem atentamente sobre a celebração do sacramento da Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral
exclusivamente aos casos previstos,(61) permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a
pessoal.(62) Vista a necessidade de descobrir novamente o perdão
sacramental, haja em todas as dioceses o
Penitenciário.(63) Por último, pode servir de válida ajuda para a
nova tomada de consciência desta relação entre a Eucaristia e a Reconciliação
uma prática equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a favor
de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtém-se « a remissão, perante Deus, da
pena temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada ».(64) O uso das
indulgências ajuda-nos a compreender que não somos capazes, só com as nossas
forças, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um causam dano a
toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência, implicando a doutrina
dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos, mostra-nos «
quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida
sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros ».(65) Dado que a forma
própria da indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da
confissão e da comunhão sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente
os fiéis no caminho da conversão e na descoberta da centralidade da Eucaristia
na vida cristã.
III. Eucaristia e Unção dos Enfermos
22. Jesus não Se limitou a enviar os seus discípulos a curar
os doentes (Mt 10, 8; Lc 9, 2; 10, 9), mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos
Enfermos.(66) A Carta de Tiago testemunha a presença deste gesto
sacramental já na primitiva comunidade cristã (5, 14-16). Se a Eucaristia
mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em amor, a
Unção dos Enfermos, por seu lado, associa o doente à oferta que Cristo fez de
Si mesmo pela salvação de todos, de tal modo que possa também ele, no mistério
da comunhão dos santos, participar na redenção do mundo. A relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se
agrava a doença: « Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes,
além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia
como viático ».(67) Nesta passagem para o Pai, a comunhão no corpo e sangue
de Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição: « Quem
come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei
no último dia » (Jo 6, 54). Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao
doente a plenitude do mistério pascal, é preciso assegurar a sua
administração.(68) A atenção e o cuidado pastoral por aqueles que se encontram
doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a comunidade,
sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos (Mt
25, 40).
IV. Eucaristia e sacramento da Ordem
Na pessoa de Cristo cabeça
23. O vínculo intrínseco entre a Eucaristia e o sacramento da
Ordem deduz-se das próprias palavras de Jesus no Cenáculo: « Fazei isto em
memória de Mim » (Lc 22, 19). De facto, na vigília da sua morte, Ele
instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da Nova Aliança.
Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb
5, 5-10), vítima de expiação (1 Jo 2, 2; 4, 10) que Se oferece a Si mesma
no altar da cruz. Ninguém pode dizer « isto é o meu corpo » e « este é o cálice
do meu sangue » senão em nome e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da
nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo dos Bispos já se ocupara,
noutras assembleias, do sacerdócio ordenado tanto no que diz respeito à
identidade do ministério,(69) como à formação dos candidatos.(70) Na presente
circunstância importa-me, à luz do diálogo realizado no âmbito da última
assembleia sinodal, sublinhar alguns valores que têm a ver com a relação entre
o sacramento eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário reafirmar que a ligação entre a Ordem sacra e a
Eucaristia é visível precisamente na Missa que o bispo ou o presbítero
preside na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis).
A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal
condição indispensável para a celebração válida da Eucaristia.(71) De facto, «
no serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente
à sua Igreja, como cabeça do seu corpo, pastor do seu rebanho, sumo sacerdote
do sacrifício redentor ».(72) Certamente o ministro ordenado « age também em
nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e,
sobretudo, quando oferece o sacrifício eucarístico ».(73) Por isso, é
necessário que os sacerdotes tenham consciência de que, em todo o seu
ministério, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas
opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa
de se colocarem a si mesmos como protagonistas da acção litúrgica. Aqui, mais
do que nunca, o sacerdote é servo e deve continuamente empenhar-se por ser
sinal que, como dócil instrumento nas mãos de Cristo, aponta para Ele. Isto
exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a acção
litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente,
evitando tudo o que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo.
Recomendo, pois, ao clero que não cesse de aprofundar a consciência do seu
ministério eucarístico como um serviço humilde a Cristo e à sua Igreja. O
sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço de amor (amoris
officium),(74) é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas
(Jo 10, 14-15).
Eucaristia e celibato sacerdotal
24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio
ministerial requer, através da ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição
oriental diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato
sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimável e confirmado também
pela prática oriental de escolher os bispos apenas de entre aqueles que vivem
no celibato, indício da grande honra em que ela tem a opção do celibato feita
por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do sacerdote encontram
expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de
si mesmo pelo Reino de Deus.(75) O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote,
ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade
constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da
Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato
sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial
conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante
opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. Em
sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio Vaticano II (76) e com
os Sumos Pontífices (77) meus predecessores, corroboro a beleza e a importância
duma vida sacerdotal vivida no celibato como
sinal expressivo de dedicação total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao Reino
de Deus, e, consequentemente, confirmo
a sua obrigatoriedade para a tradição latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é
uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade.
Escassez de clero e pastoral vocacional
Gratidão e esperança
26. Enfim, é necessário ter maior fé e esperança na
iniciativa divina. Apesar da escassez de clero que se verifica em algumas
regiões, não deve esmorecer jamais a confiança de que Cristo continua a
suscitar homens que não hesitam em abandonar qualquer outra ocupação para
dedicar-se totalmente à celebração dos mistérios sagrados, à pregação do
Evangelho e ao ministério pastoral. Nesta ocasião, desejo dar voz à gratidão da
Igreja inteira por todos os bispos e presbíteros que cumprem, com fiel dedicação
e empenho, a própria missão. Naturalmente, este agradecimento da Igreja
estende-se também aos diáconos, a quem são impostas as mãos « não em ordem ao
sacerdócio mas ao ministério ».(81) Como recomendou a assembleia do Sínodo,
dirijo um obrigado especial aos presbíteros fidei donum que edificam a
comunidade, com competência e generosa dedicação, anunciando-lhe a palavra de
Deus e repartindo o pão da vida, sem pouparem as suas energias ao serviço da
missão da Igreja.(82) Por fim, é preciso agradecer a Deus pelos numerosos
sacerdotes que tiveram de sofrer até ao sacrifício da vida por servir a Cristo.
Neles se manifesta, com a eloquência dos factos, o que significa ser sacerdote
a fundo; trata-se de comoventes testemunhos que poderão inspirar muitos jovens
a seguirem por sua vez a Cristo e gastarem a sua vida pelos outros, encontrando
precisamente assim a vida verdadeira.
V. Eucaristia e Matrimónio
Eucaristia, sacramento esponsal
Eucaristia e unidade do Matrimónio
28. É precisamente à luz desta relação intrínseca entre
Matrimónio, família e Eucaristia que se podem considerar alguns problemas
pastorais. O vínculo fiel, indissolúvel e exclusivo que une Cristo e a Igreja e
tem expressão sacramental na Eucaristia, está de harmonia com o dado
antropológico primordial segundo o qual
o homem deve unir-se de modo definitivo com uma só mulher, e vice-versa (Gn
2, 24; Mt 19, 5). Nesta linha de pensamento, o Sínodo dos Bispos
debruçou-se sobre a prática pastoral que deve ser seguida com as pessoas
originárias de culturas onde é praticada a poligamia, que recebem o anúncio do
Evangelho: quantos vivem em tal situação e se abrem à fé cristã devem ser
ajudados a integrar o seu projecto humano na novidade radical de Cristo; no
percurso do catecumenado, Cristo alcança-os na sua condição específica e
chama-os à verdade plena do amor passando através das renúncias que são necessárias
para chegarem à comunhão eclesial perfeita. A Igreja acompanha-os com uma
pastoral imbuída simultaneamente de suavidade e de firmeza,(90) mostrando-lhes
sobretudo a luz dos mistérios cristãos que se reflecte sobre a natureza e os
afectos humanos.
Eucaristia e indissolubilidade do
Matrimónio
29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de
Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique,
relativamente ao sacramento do Matrimónio, aquela indissolubilidade a que todo
o amor verdadeiro não pode deixar de anelar.(91) Por isso, é mais que
justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em
que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o sacramento do
Matrimónio, se divorciaram e contraíram
novas núpcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma
verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente
corroendo os próprios ambientes católicos. Os pastores, por amor da verdade,
são obrigados a discernir bem as diferentes situações, para ajudar
espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados.(92) O Sínodo dos Bispos
confirmou a prática da Igreja, fundada
na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o
seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor
entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não
obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na
esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através
da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da
escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na
vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida
espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do
empenho na educação dos filhos.
Nos casos em que surjam
legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental contraído,
deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas.
Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico,(93) a presença no território dos tribunais
eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e
pressurosa; (94) é necessário haver, em
cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito
funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que « é uma obrigação grave tornar a actuação
institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis ».(95)
No entanto, é preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista como se
estivesse em contraposição com o direito; ao contrário, deve-se partir do
pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral é o
amor pela verdade: com efeito, esta nunca é abstracta, mas « integra-se no
itinerário humano e cristão de cada fiel ».(96) Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e
se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a
convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua
relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente
abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada
prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser
apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar
estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do
matrimónio.(97)
Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a
Igreja em muitos países, o Sínodo recomendou ainda que se tivesse o máximo
cuidado pastoral com a formação dos nubentes
e a verificação prévia das suas convicções
sobre os compromissos irrenunciáveis para a validade do sacramento do
Matrimónio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar que
impulsos emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir
responsabilidades que depois não poderão honrar.(98) Demasiado grande é o bem
que a Igreja e a sociedade inteira esperam do Matrimónio e da família fundada
sobre o mesmo para não nos comprometermos a fundo neste âmbito pastoral
específico; Matrimónio e família são instituições cuja verdade deve ser
promovida e defendida de qualquer equívoco, porque todo o dano a elas causado é
realmente uma ferida que se inflige à convivência humana como tal.
Eucaristia e escatologia
Eucaristia, dom para o homem a caminho
30. Se é certo que os sacramentos são uma realidade que
pertence à Igreja peregrina no tempo( 99) rumo à plena manifestação da vitória
de Cristo ressuscitado, é igualmente verdade que, sobretudo na liturgia
eucarística, nos é dado saborear antecipadamente a consumação escatológica para
a qual todo o homem e a criação inteira estão a caminho (Rm 8, 19s). O
homem é criado para a felicidade verdadeira e eterna, que só o amor de Deus
pode dar; mas a nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se não lhe fosse possível
experimentar, já desde agora, algo da consumação futura. Aliás, para poder
caminhar na direcção justa, o homem necessita de estar orientado para a meta
final; esta, na realidade, é o próprio Cristo Senhor, vencedor do pecado e da
morte, que Se torna presente para nós de maneira especial na celebração
eucarística. Deste modo, embora sejamos ainda « estrangeiros e peregrinos » (1
Pd 2, 11) neste mundo, pela fé participamos já da plenitude da vida
ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua dimensão intensamente
escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho.
O banquete escatológico
31. Reflectindo sobre este mistério, podemos dizer que
Cristo, com a sua vinda, Se colocou em sintonia com a expectativa presente no
povo de Israel, na humanidade inteira e fundamentalmente na própria criação.
Com o dom de Si mesmo, inaugurou objectivamente o tempo escatológico. Cristo
veio chamar à unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo 11, 52),
manifestando claramente a intenção de congregar a comunidade da aliança para
dar cumprimento às promessas feitas por Deus a nossos pais (Jer 23, 3;
31, 10; Lc 1, 55.70). Com o chamamento dos Doze — número que evoca as
doze tribos de Israel — e o mandato que lhes confiou na Última Ceia, antes da
sua paixão redentora, de celebrarem o seu memorial, Jesus manifestou que queria
transferir, para a comunidade inteira por Ele fundada, a missão de ser, na
história, sinal e instrumento da reunificação escatológica que n'Ele teve
início. Por isso, em cada celebração eucarística, realiza-se sacramentalmente a
unificação escatológica do povo de Deus. Para nós, o banquete eucarístico é uma
antecipação real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25,
6-9) e descrito no Novo Testamento como « as núpcias do Cordeiro » (Ap
19, 7-9) que se hão-de celebrar na comunhão dos santos.(100)
Oração pelos defuntos
A Eucaristia e a Virgem Maria
33. Da relação entre a Eucaristia e os restantes sacramentos
juntamente com o significado escatológico dos santos mistérios, irrompe o
perfil da vida cristã, chamada a ser em cada instante culto espiritual, oferta
de si mesma agradável a Deus. E, se é verdade que nos encontramos todos ainda a
caminho rumo à plena consumação da nossa esperança, isto não impede de podermos
já agora reconhecer, com gratidão, que tudo aquilo que Deus nos deu, se
realizou perfeitamente na Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa: a sua assunção ao
céu em corpo e alma é, para nós, sinal de segura esperança, enquanto nos aponta
a nós, peregrinos no tempo, aquela meta escatológica que o sacramento da
Eucaristia desde já nos faz saborear.
Por isso, sempre que na liturgia eucarística nos abeiramos do
corpo e do sangue de Cristo, dirigimo-nos também a Ela que, por toda a Igreja,
acolheu o sacrifício de Cristo, aderindo plenamente ao mesmo. Justamente
afirmaram os padres sinodais que « Maria inaugura a participação da Igreja no
sacrifício do Redentor ».(104) Ela é a
Imaculada que acolhe incondicionalmente o dom de Deus, e desta forma fica
associada à obra da salvação. Maria de Nazaré, ícone da Igreja nascente, é o
modelo para cada um de nós saber como é chamado a acolher a doação que Jesus
fez de Si mesmo na Eucaristia.
II PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO
« Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão
que vem do céu; meu Pai é que vos dá
o verdadeiro pão que vem do céu » (Jo 6, 32)
Não foi Moisés que vos deu o pão
que vem do céu; meu Pai é que vos dá
o verdadeiro pão que vem do céu » (Jo 6, 32)
Norma da oração e norma de fé
34. O Sínodo dos Bispos reflectiu demoradamente sobre a
relação intrínseca entre fé eucarística e celebração, pondo em evidência a
ligação entre a norma da oração (lex orandi) e a norma de fé (lex
credendi) e sublinhando o primado da acção litúrgica. É necessário
viver a Eucaristia como mistério da fé autenticamente celebrado, bem cientes de
que « a inteligência da fé (intellectus fidei) sempre está originariamente
em relação com a acção litúrgica da Igreja »:(105) neste âmbito, a reflexão
teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo
próprio Cristo; por outro lado, a acção litúrgica nunca pode ser considerada genericamente,
prescindindo do mistério da fé. Com efeito, a fonte da nossa fé e da liturgia
eucarística é o mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de Si próprio no
mistério pascal.
Beleza e liturgia
A beleza da liturgia pertence a este
mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o
céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os
traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre,
a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2).
Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu
elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação.
Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção
litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza.
A celebração eucarística,
obra de Cristo inteiro
obra de Cristo inteiro
Cristo inteiro: cabeça e corpo
Eucaristia e Cristo ressuscitado
37. Visto que a liturgia eucarística é essencialmente acção
de Deus (actio Dei) que nos envolve em Jesus por meio do Espírito, o seu
fundamento não está à mercê do nosso arbítrio e não pode suportar a chantagem
das modas passageiras. Vale aqui também, sem dúvida, a advertência de São
Paulo: « Ninguém pode pôr outro fundamento diferente do que foi posto, isto é,
Jesus Cristo » (1 Cor 3, 11). O Apóstolo das Gentes certifica-nos ainda,
referindo-se à Eucaristia, que não nos comunica uma doutrina pessoal, mas
aquilo que, por sua vez, tinha recebido (1 Cor 11, 23); de facto, a
celebração da Eucaristia implica a Tradição viva. A Igreja celebra o sacrifício
eucarístico obedecendo ao mandato de Cristo, a partir da experiência do
Ressuscitado e da efusão do Espírito Santo. Por este motivo, a comunidade
cristã, desde os seus primórdios, reúne-se para a fracção do pão (fractio panis)
no dia do Senhor. O dia em
que Cristo ressuscitou dos mortos, o domingo, é também o primeiro dia da semana, aquele em que a
tradição do Antigo Testamento contemplava o início da criação. O dia da criação
tornou-se agora o dia da « nova criação », o dia da nossa libertação, no qual
fazemos memória de Cristo morto e ressuscitado.(113)
Arte da celebração
38. Durante os trabalhos sinodais, foi várias vezes
recomendada a necessidade de superar toda e qualquer separação entre a arte da
celebração (ars celebrandi, isto é, a arte de celebrar rectamente) e a
participação plena, activa e frutuosa de todos os fiéis: com efeito, o primeiro
modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a condigna
celebração do mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a
participação activa (actuosa participatio).(114) Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua
integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil
anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração
enquanto povo de Deus, sacerdócio real, nação santa (1 Pd 2,
4-5.9).(115)
O bispo, liturgista por excelência
39. Se é verdade que todo o povo de Deus participa na
liturgia eucarística, uma função imprescindível, relativamente à correcta
ars celebrandi, compete todavia àqueles que receberam o sacramento da
Ordem. Bispos, sacerdotes e diáconos, cada qual segundo o próprio grau, devem
considerar a celebração como o seu dever principal.(116) Antes de mais ninguém,
o bispo diocesano: de facto, como «
primeiro dispensador dos mistérios de Deus na Igreja particular que lhe está
confiada, ele é o guia, o promotor e o guardião de toda a vida litúrgica
».(117) Tudo isto é decisivo para a vida da Igreja particular, não só
porque a comunhão com o bispo é condição para que seja legítima uma celebração
no respectivo território, mas também porque ele mesmo é o liturgista por
excelência da sua Igreja.(118) Compete-lhe
salvaguardar a concorde unidade das celebrações na sua diocese; por isso,
deve ser « preocupação do bispo fazer com que os presbíteros, os diáconos e os
fiéis compreendam cada vez melhor o sentido autêntico dos ritos e dos textos
litúrgicos, levando-os deste modo a uma activa e frutuosa celebração da
Eucaristia ».(119) De modo particular, exorto a fazer tudo o que for necessário
a fim de que as celebrações litúrgicas realizadas pelo bispo na catedral se
desenrolem no respeito cabal da arte da celebração, para que possam ser
consideradas como modelo por todas as igrejas espalhadas no território.(120)
O respeito pelos livros litúrgicos e
pela riqueza dos sinais
40. Ao ressaltar a importância da arte da celebração,
consequentemente põe-se em evidência
o valor das normas litúrgicas.(121) Aquela deve favorecer o sentido do
sagrado e a utilização das formas exteriores que educam para tal sentido, como,
por exemplo, a harmonia do rito, das
vestes litúrgicas, da decoração e do lugar sagrado. A celebração
eucarística é frutuosa quando os sacerdotes e os responsáveis da pastoral
litúrgica se esforçam por dar a conhecer
os livros litúrgicos em vigor e as respectivas normas, pondo em destaque as
riquezas estupendas da Instrução
Geral do Missal Romano e da Instrução das Leituras da Missa.
Talvez se dê por adquirido, nas comunidades eclesiais, o seu conhecimento e
devido apreço, mas frequentemente não é
assim; na realidade, trata-se de textos onde estão contidas riquezas que
guardam e exprimem a fé e o caminho do povo de Deus ao longo dos dois milénios
da sua história. Igualmente importante para uma correcta arte da celebração é a
atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e
canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos paramentos.
Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de
comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A
simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos
momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições
inoportunas. A atenção e a obediência à estrutura própria do rito, ao mesmo
tempo que exprimem a consciência do carácter de dom da Eucaristia, manifestam a
vontade que o ministro tem de acolher, com dócil gratidão, esse dom inefável.
Arte ao serviço da celebração
O mesmo princípio vale para toda a arte sacra em geral,
especialmente para a pintura e a escultura, devendo a iconografia religiosa ser
orientada para a mistagogia sacramental. Um conhecimento profundo das formas
que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos séculos, pode ser de grande
ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar arquitectos e artistas para
comissionar-lhes obras de arte destinadas à acção litúrgica; por isso, é indispensável que, na formação dos
seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a
História da Arte com especial referimento aos edifícios de culto à luz das
normas litúrgicas. Enfim, é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com
a Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se-á ter respeito e cuidado também
pelos paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de
forma orgânica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus, manifestem
a unidade da fé e reforcem a devoção.(125)
O canto litúrgico
42. Na arte da celebração, ocupa lugar de destaque o canto
litúrgico.(126) Com razão afirma Santo Agostinho, num famoso sermão: « O homem
novo conhece o cântico novo. O cântico é uma manifestação de alegria e, se
considerarmos melhor, um sinal de amor ».(127) O povo de Deus, reunido para a
celebração, canta os louvores de Deus. Na sua história bimilenária, a Igreja
criou, e continua a criar, música e cânticos que constituem um património de fé
e amor que não se deve perder. Verdadeiramente, em liturgia, não podemos dizer
que tanto vale um cântico como outro; a
propósito, é necessário evitar a improvisação genérica ou a introdução de
géneros musicais que não respeitem o sentido da liturgia. Enquanto
elemento litúrgico, o canto deve integrar-se na forma própria da celebração; (128)
consequentemente, tudo — no texto, na melodia, na execução — deve corresponder
ao sentido do mistério celebrado, às várias partes do rito e aos diferentes
tempos litúrgicos.(129) Enfim, embora tendo em conta as distintas orientações e
as diferentes e amplamente louváveis tradições, desejo — como foi pedido pelos
padres sinodais — que se valorize
adequadamente o canto gregoriano,(130) como canto próprio da liturgia
romana.(131)
A estrutura da celebração eucarística
43. Depois de ter recordado os elementos fundamentais da arte
da celebração relevados durante os trabalhos sinodais, desejo chamar a atenção
mais especificamente para algumas partes da estrutura da celebração
eucarística, que necessitam de um cuidado particular no nosso tempo, a fim de
permanecermos fiéis à intenção profunda da renovação litúrgica que o Concílio
Vaticano II quis em continuidade com toda a grande tradição eclesial.
Unidade intrínseca da acção litúrgica
44. Antes de mais, é necessário reflectir sobre a unidade
intrínseca do rito da Santa Missa, evitando, tanto nas catequeses como na
modalidade de celebração, que se dê ensejo a uma visão justaposta das duas
partes do rito: a liturgia da palavra e
a liturgia eucarística — para além dos ritos iniciais e conclusivo — « estão
entre si tão estreitamente ligadas que constituem um único acto de culto
».(132) De facto, existe uma ligação intrínseca entre a palavra de Deus e a
parte eucarística: ao ouvirmos a palavra de Deus, nasce ou reforça-se a fé (Rm
10, 17), enquanto, na parte eucarística, o Verbo feito carne dá-Se a nós como
alimento espiritual; (133) assim, « a
partir das duas mesas, a da palavra de Deus e a do corpo de Cristo, a Igreja
recebe e oferece aos fiéis o pão de vida ».(134) Por isso, deve ter-se
constantemente presente que a palavra de Deus, lida e anunciada na liturgia
pela Igreja, conduz à Eucaristia como a seu fim conatural.
A liturgia da palavra
45. Juntamente com o Sínodo, peço que a liturgia da palavra
seja sempre devidamente preparada e vivida. Recomendo, pois, vivamente que se
tenha grande cuidado, nas liturgias, com a proclamação da palavra de Deus por leitores bem preparados; nunca nos
esqueçamos de que, « quando na igreja se lê a Sagrada Escritura, é o próprio
Deus que fala ao seu povo, é Cristo presente na sua palavra que anuncia o
Evangelho ».(135) Se as circunstâncias o recomendarem, pode-se pensar numas
breves palavras de introdução, que ajudem os fiéis a tomar renovada consciência
do momento. Para ser bem compreendida, a palavra de Deus deve ser escutada e
acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento
eucarístico. Com efeito, a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito
carne (Jo 1, 14) e possui uma referência intrínseca à pessoa de Cristo e
à modalidade sacramental da sua permanência: Cristo não fala no passado mas no
nosso presente, tal como Ele está presente na acção litúrgica. Neste horizonte
sacramental da revelação cristã,(136) o conhecimento e o estudo da palavra de
Deus permitem-nos valorizar, celebrar e viver melhor a Eucaristia; também aqui
se mostra em toda a sua verdade a conhecida asserção: « A ignorância da
Escritura é ignorância de Cristo ».(137)
Para isso, é necessário ajudar os fiéis a valorizarem os
tesouros da Sagrada Escritura presentes no Leccionário, por meio de iniciativas
pastorais, de celebrações da palavra
e da leitura orante (lectio divina). Além disso, não se esqueça de
promover as formas de oração confirmadas pela tradição: a Liturgia das Horas,
sobretudo Laudes, Vésperas, Completas e ainda as celebrações das Vigílias. A
oração dos salmos, as leituras bíblicas e as da grande tradição apresentadas no
Ofício Divino podem levar a uma experiência profunda do acontecimento de Cristo
e da economia da salvação, capaz por sua vez de enriquecer a compreensão e a participação
na celebração eucarística.(138)
A homilia
46. Pensando na importância da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a qualidade
da homilia; de facto, esta « constitui parte integrante da acção litúrgica
»,(139) cuja função é favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da
palavra de Deus na vida dos fiéis. Por
isso, os ministros ordenados devem « preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num adequado conhecimento
da Sagrada Escritura ».(140) Evitem-se homilias
genéricas ou abstractas; de modo particular,
peço aos ministros para fazerem com que
a homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relação com a
celebração sacramental (141) e com a vida da comunidade, de tal modo que a
palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja.(142) Tenha-se presente, portanto, a finalidade
catequética e exortativa da homilia. Considera-se que é oportuno oferecer
prudentemente, a partir do Leccionário trienal, homilias temáticas aos fiéis
que tratem, ao longo do ano litúrgico, os grandes temas da fé cristã, haurindo
de quanto está autorizadamente proposto pelo Magistério nos quatro « pilares » do Catecismo da Igreja Católica e
no recente Compêndio: a profissão da fé, a celebração do mistério
cristão, a vida em Cristo, a oração cristã.(143)
Apresentação das oferendas
47. Os padres sinodais chamaram a atenção também para a
apresentação das oferendas. Não se trata simplesmente duma espécie de «
intervalo » entre a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, o que faria,
sem dúvida, atenuar o sentido de um único rito composto de duas partes
interligadas; realmente, neste gesto humilde e simples, encerra-se um
significado muito grande: no pão e no vinho que levamos ao altar, toda a
criação é assumida por Cristo Redentor para ser transformada e apresentada ao
Pai.(144) Nesta perspectiva, levamos ao altar também todo o sofrimento e
tribulação do mundo, na certeza de que tudo é precioso aos olhos de Deus. Este
gesto não necessita de ser enfatizado com descabidas complicações para ser vivido
no seu significado autêntico: o mesmo permite valorizar a participação primeira
que Deus pede ao homem, ou seja, levar em si mesmo a obra divina à perfeição, e
dar assim pleno sentido ao trabalho humano que, através da celebração
eucarística, fica unido ao sacrifício redentor de Cristo.
A Oração Eucarística
Saudação da paz
Distribuição e recepção da Eucaristia
50. Outro momento da celebração, que necessita de menção, é a
distribuição e a recepção da sagrada comunhão. Peço a todos, especialmente aos
ministros ordenados e àqueles que,
devidamente preparados e em caso de real necessidade, estejam
autorizados para o ministério da distribuição da Eucaristia, que façam o
possível para que o gesto, na sua simplicidade, corresponda ao seu valor de
encontro pessoal com o Senhor Jesus no sacramento. Quanto às prescrições para a correcta prática do mesmo, vejam-se os
documentos recentemente emanados; ( 151) todas as comunidades cristãs se atenham fielmente às normas vigentes,
vendo nelas a expressão da fé e do amor que todos devemos ter por este sublime
sacramento. Além disso, não seja transcurado o tempo precioso de acção de
graças depois da comunhão: além da entoação dum cântico oportuno, pode ser muito útil também permanecer
recolhidos em silêncio.(152)
A propósito, desejo chamar a atenção para um problema
pastoral com que frequentemente nos deparamos no nosso tempo: em determinadas
circunstâncias como, por exemplo, nas Missas celebradas por ocasião de
matrimónios, funerais ou acontecimentos análogos, encontram-se presentes na
celebração, além dos fiéis praticantes, outros que talvez há anos não se
aproximam do altar ou se encontram numa situação de vida que não permite o
acesso aos sacramentos; outras vezes acontece que estão presentes pessoas de
outras confissões cristãs ou até de outras religiões. Circunstâncias
semelhantes verificam-se também em igrejas que são meta de turistas, sobretudo
nas cidades de grande valor artístico. Ora, salta aos olhos a necessidade de
encontrar formas breves e incisivas para alertar a todos sobre o sentido da
comunhão sacramental e sobre as condições que se requerem para a sua recepção.
Em situações onde não se possa garantir a necessária clareza quanto ao
significado da Eucaristia, deve-se ponderar a oportunidade de substituir a
celebração eucarística por uma celebração da palavra de Deus.(153)
A despedida: «
Ite, missa est »
51. Por último, quero deter-me naquilo que disseram os padres
sinodais acerca da saudação de despedida no final da celebração eucarística. Depois da bênção, o diácono ou o sacerdote
despede o povo com as palavras « Ide
em paz e o Senhor vos acompanhe », tradução aproximada da fórmula latina:
Ite, missa est. Nesta saudação, podemos identificar a relação entre a
Missa celebrada e a missão cristã no mundo. Na antiguidade, o termo « missa
» significava simplesmente « despedida »; mas, no uso cristão, o mesmo foi
ganhando um sentido cada vez mais profundo, tendo o termo « despedir » evoluído
para « expedir em missão ». Deste modo, a referida saudação exprime
sinteticamente a natureza missionária da Igreja; seria bom ajudar o povo de
Deus a aprofundar esta dimensão constitutiva da vida eclesial, tirando inspiração
da liturgia. Nesta perspectiva, pode ser útil dispor de textos, devidamente
aprovados, para a oração sobre o povo e a bênção final que explicitem tal
ligação.(154)
Participação activa
Autêntica participação
52. O Concílio Vaticano II colocara, justamente, uma ênfase
particular sobre a participação activa, plena e frutuosa de todo o povo de Deus
na celebração eucarística.(155) A renovação operada nestes anos proporcionou,
sem dúvida, notáveis progressos na direcção desejada pelos padres conciliares;
mas não podemos ignorar que houve, às vezes, qualquer incompreensão
precisamente acerca do sentido desta participação. Convém, pois, deixar claro
que não se pretende, com tal palavra, aludir a mera actividade exterior durante
a celebração; na realidade, a participação activa desejada pelo Concílio deve
ser entendida, em termos mais substanciais, a partir duma maior consciência do
mistério que é celebrado e da sua relação com a vida quotidiana. Permanece
plenamente válida ainda a recomendação da Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium feita aos fiéis quando os exorta a não
assistirem à liturgia eucarística « como estranhos ou espectadores mudos », mas
a participarem « na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente ».(156)
E o Concílio, desenvolvendo seu pensamento, prossegue: Os fiéis « sejam
instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do corpo do Senhor; dêem
graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o
sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia,
por Cristo Mediador, progridam na unidade com Deus e entre si ».(157)
Participação e ministério sacerdotal
Celebração eucarística e inculturação
54. Partindo fundamentalmente de quanto afirmou o Concílio
Vaticano II, várias vezes foi sublinhada a importância da participação activa
dos fiéis no sacrifício eucarístico. Para a favorecer, podem ter lugar algumas adaptações
apropriadas aos respectivos contextos e às diversas culturas;( 163) o facto de
ter havido alguns abusos não turba a clareza deste princípio, que deve ser
mantido segundo as necessidades reais da Igreja, a qual vive e celebra o mesmo mistério
de Cristo em situações culturais diferentes. De facto, o Senhor Jesus,
precisamente no mistério da Encarnação, ao nascer de uma mulher como perfeito
homem (Gal 4, 4) colocou-se em relação directa não só com as
expectativas que se registavam no âmbito do Antigo Testamento, mas também com
as cultivadas por todos os povos; manifestou, assim, que Deus pretende
alcançar-nos no nosso contexto vital. Por conseguinte é útil, para uma
participação mais eficaz dos fiéis nos santos mistérios, a continuação do processo
de inculturação inclusivamente quanto à celebração eucarística, tendo em conta
as possibilidades de adaptação oferecidas pela Instrução Geral do Missal
Romano,(164) interpretadas à luz dos critérios estabelecidos pela IV
Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,
designada Varietates legitimæ, de 25 de Janeiro de 1994,(165) e pelas
directrizes expressas pelo Papa João Paulo II nas Exortações pós-sinodais Ecclesia in Africa, Ecclesia in America, Ecclesia in Asia, Ecclesia in Oceania, Ecclesia in Europa.(166) Com esta
finalidade, recomendo às Conferências Episcopais que prossigam com esta obra,
favorecendo um justo equilíbrio entre os critérios e directrizes já emanados e
as novas adaptações,(167) sempre de acordo com a Sé Apostólica.
Condições pessoais para uma participação
activa
55. Ao considerarem o tema da participação activa (actuosa
participatio) dos fiéis no rito sagrado, os padres sinodais ressaltaram
também as condições pessoais que se requerem em cada um para uma frutuosa
participação.(168) Uma delas é, sem dúvida, o espírito de constante conversão
que deve caracterizar a vida de todos os fiéis: não podemos esperar uma
participação activa na liturgia eucarística, se nos abeiramos dela
superficialmente e sem antes nos interrogarmos sobre a própria vida. Favorecem
tal disposição interior, por exemplo, o
recolhimento e o silêncio durante alguns momentos pelo menos antes do início da
liturgia, o jejum e — quando for preciso — a confissão sacramental; um
coração reconciliado com Deus predispõe para a verdadeira participação. De modo
particular é preciso alertar os fiéis que não se pode verificar uma
participação activa nos santos mistérios, se ao mesmo tempo não se procura
tomar parte activa na vida eclesial em toda a sua amplitude, incluindo o
compromisso missionário de levar o amor de Cristo para o meio da sociedade.
Sem dúvida, para a plena participação na Eucaristia é preciso
também aproximar-se pessoalmente do altar para receber a comunhão; (169)
contudo é preciso estar atento para que esta afirmação, justa em si mesma, não induza
os fiéis a um certo automatismo levando-os a pensar que, pelo simples facto de
se encontrar na igreja durante a liturgia, se tenha o direito ou mesmo — quem
sabe — se sinta no dever de aproximar-se da mesa eucarística. Mesmo quando não for possível abeirar-se da
comunhão sacramental, a participação na Santa Missa permanece necessária,
válida, significativa e frutuosa; neste caso, é bom cultivar o desejo da
plena união com Cristo, por exemplo, através da prática da comunhão espiritual,
recordada por João Paulo II (170) e recomendada por santos mestres de vida
espiritual.(171)
Participação dos cristãos não católicos
56. Ao tratarmos o tema da participação, temos
inevitavelmente de falar dos cristãos que pertencem a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em
plena comunhão com a Igreja Católica. A este respeito, temos de dizer, por
um lado, que o vínculo intrínseco existente entre a Eucaristia e a unidade da
Igreja nos faz desejar ardentemente o dia em que poderemos celebrar, juntamente
com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia e exprimir assim
visivelmente aquela plena unidade que Cristo quis para os seus discípulos (Jo
17, 21); mas, por outro lado, o respeito que devemos ao sacramento do corpo e
do sangue de Cristo impede-nos de fazer dele um simples « meio » usado
indiscriminadamente para alcançar a referida unidade.(172) De facto, a
Eucaristia não manifesta somente a nossa comunhão pessoal com Jesus Cristo, mas
implica também a plena comunhão (communio) com a Igreja; este é o motivo
pelo qual, com dor mas não sem esperança, pedimos aos cristãos não católicos
que compreendam e respeitem a nossa convicção, que assenta na Bíblia e na Tradição: pensamos que a comunhão
eucarística e a comunhão eclesial se interpenetrem tão intimamente que se torna
geralmente impossível aos cristãos não católicos terem acesso a uma sem gozar
da outra. Ainda mais desprovida de sentido seria uma concelebração verdadeira e
própria com ministros de Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em
plena comunhão com a Igreja Católica. Não deixa, porém, de ser verdade que, em
ordem à salvação eterna, há a
possibilidade de admitir indivíduos cristãos não católicos à Eucaristia, ao
sacramento da Penitência e à Unção dos Enfermos; mas isso supõe que se
verifiquem determinadas e excepcionais situações, associadas a precisas
condições.(173) Estas aparecem
claramente indicadas no Catecismo da Igreja Católica (174) e no seu Compêndio.(175) É dever de cada um
ater-se a elas fielmente.
Participação através dos meios de
comunicação
57. Devido ao progresso admirável dos meios de comunicação,
nos últimos decénios a palavra « participação » adquiriu um significado mais
amplo do que no passado; com satisfação, todos reconhecemos que estes
instrumentos oferecem novas possibilidades inclusivamente quanto à celebração
eucarística.(176) Isto requer dos agentes pastorais do sector uma preparação
específica e um vivo sentido de responsabilidade; com efeito, a Santa Missa transmitida na televisão ganha
inevitavelmente um certo carácter de exemplaridade; daí o dever de prestar
particular atenção a que a celebração, além de se realizar em lugares dignos e
bem preparados, respeite as normas
litúrgicas.
Enfim, quanto ao valor desta participação na Santa Missa
pelos meios de comunicação, quem assiste a tais transmissões deve saber que, em condições normais, não cumpre o
preceito dominical; de facto, a linguagem da imagem representa a realidade,
mas não a reproduz em si mesma.(177) Se é muito louvável que idosos e doentes
participem na Santa Missa festiva através das transmissões radiotelevisivas, o mesmo não se pode dizer de quem
quisesse, por meio de tais transmissões, dispensar-se de ir à igreja tomar
parte na celebração eucarística na assembleia da Igreja viva.
Participação activa dos doentes
58. Considerando a condição de quantos por motivos de saúde
ou idade não podem ir aos lugares de culto, quero chamar a atenção de toda a
comunidade eclesial para a necessidade pastoral de garantir a assistência
espiritual aos doentes, quer estejam nas próprias casas quer se encontrem no
hospital. Diversas vezes, no Sínodo dos Bispos, se aludiu à sua condição; é
preciso providenciar para que estes nossos irmãos e irmãs possam receber, com
frequência, a comunhão sacramental; revigorando assim a sua relação com Cristo
crucificado e ressuscitado, poderão sentir a própria existência inserida
plenamente na vida e missão da Igreja, por meio da oferta do seu sofrimento em
união com o sacrifício de Nosso Senhor. Uma particular atenção há-de ser
reservada aos deficientes: sempre que a sua condição o permita, a comunidade
cristã deve facilitar a sua participação na celebração no lugar de culto; a
propósito, procure-se remover, nos edifícios sagrados, eventuais obstáculos
arquitectónicos que impeçam o seu acesso aos deficientes. Enfim, seja garantida
também a comunhão eucarística, na medida do possível, aos deficientes mentais,
baptizados e crismados: eles recebem a Eucaristia na fé também da família ou da
comunidade que os acompanha.(178)
A solicitude pelos presos
Os migrantes e a participação na
Eucaristia
60. Ao abordar o problema das pessoas que, por motivos
vários, são obrigadas a deixar a sua terra, o Sínodo manifestou particular
gratidão a quantos vivem empenhados no cuidado pastoral dos migrantes. Neste
contexto, uma atenção específica deve ser dada aos migrantes membros das
Igrejas Católicas Orientais, já que, à separação da própria casa, vem juntar-se
a dificuldade de não poderem participar na liturgia eucarística segundo o
próprio rito a que pertencem; por isso, onde for possível, seja-lhes concedido
usufruir da assistência de sacerdotes do seu rito. Em todo o caso, peço aos
bispos que acolham estes irmãos na caridade de Cristo. O encontro entre fiéis
de rito diverso pode tornar-se também ocasião de mútuo enriquecimento: penso de
modo particular no benefício que pode resultar, sobretudo para o clero, do
conhecimento das diversas tradições.(180)
As grandes concelebrações
A língua latina
62. O que acabo de afirmar não deve, porém, ofuscar o valor
destas grandes liturgias; penso neste momento, em particular, às celebrações
que têm lugar durante encontros internacionais, cada vez mais frequentes hoje,
e que devem justamente ser valorizadas. A fim de exprimir melhor a unidade e a
universalidade da Igreja, quero recomendar o que foi sugerido pelo Sínodo dos
Bispos, em sintonia com as directrizes do Concílio Vaticano II: (182)
exceptuando as leituras, a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em língua latina; sejam igualmente recitadas em latim as
orações mais conhecidas (183) da
tradição da Igreja e, eventualmente, entoadas algumas partes em canto
gregoriano. A nível geral, peço
que os futuros sacerdotes sejam preparados, desde o tempo do seminário, para
compreender e celebrar a Santa Missa em latim, bem
como para usar textos latinos e entoar o canto gregoriano; nem se
transcure a possibilidade de formar os próprios fiéis para saberem, em latim,
as orações mais comuns e cantarem, em gregoriano, determinadas partes da
liturgia.(184)
Celebrações eucarísticas em pequenos
grupos
63. Bem distinta é a situação criada em algumas
circunstâncias pastorais, onde, precisamente para uma participação mais
consciente, activa e frutuosa, se favorecem as celebrações em pequenos grupos.
Embora reconhecendo o valor formativo subjacente a estas opções, é necessário
especificar que as mesmas devem ser harmonizadas com o conjunto da proposta
pastoral da diocese; com efeito, tais experiências perderiam o seu carácter
pedagógico, se fossem vistas em antagonismo ou paralelo com a vida da Igreja
particular. A este respeito, o Sínodo pôs em evidência alguns critérios a que
se devem ater: os pequenos grupos devem servir para unificar a comunidade, e
não para a dividir; a prova disto mesmo há-de ver-se na prática concreta; estes
grupos devem favorecer a participação frutuosa da assembleia inteira e
preservar, na medida do possível, a unidade da vida litúrgica de cada uma das
famílias.(185)
Celebração interiormente participada
Catequese mistagógica
a) Trata-se, primeiramente,
da interpretação dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos, em
conformidade com a tradição viva da Igreja; de facto, a celebração da
Eucaristia, na sua riqueza infinita, possui contínuas referências à história da
salvação. Em Cristo crucificado e ressuscitado, podemos celebrar
verdadeiramente o centro recapitulador de toda a realidade (Ef 1, 10);
desde o seu início, a comunidade cristã leu os acontecimentos da vida de Jesus,
e particularmente o mistério pascal, em relação com todo o percurso do Antigo
Testamento.
b) Além disso, a catequese
mistagógica há-de preocupar-se por introduzir no sentido dos sinais
contidos nos ritos; esta tarefa é particularmente urgente numa época
acentuadamente tecnológica como a actual, que corre o risco de perder a
capacidade de perceber os sinais e os símbolos. Mais do que informar, a
catequese mistagógica deverá despertar e educar a sensibilidade dos fiéis para
a linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à palavra, constituem o rito.
c) Enfim, a catequese
mistagógica deve preocupar-se por mostrar o significado dos ritos para a
vida cristã em todas as suas dimensões: trabalho e compromisso, pensamentos
e afectos, actividade e repouso. Faz parte do itinerário mistagógico pôr em
evidência a ligação dos mistérios celebrados no rito com a responsabilidade
missionária dos fiéis; neste sentido, o fruto maduro da mistagogia é a
consciência de que a própria vida vai sendo progressivamente transformada pelos
sagrados mistérios celebrados. Aliás, a finalidade de toda a educação cristã é
formar o fiel enquanto « homem novo » para uma fé adulta, que o torne capaz de
testemunhar no próprio ambiente a esperança cristã que o anima.
Condição necessária para se realizar, no âmbito das nossas
comunidades eclesiais, esta tarefa educativa é dispor de formadores
adequadamente preparados; mas todo o povo de Deus deve, sem dúvida, sentir-se
comprometido nesta formação. Cada comunidade cristã é chamada a ser lugar de
introdução pedagógica aos mistérios que se celebram na fé; a propósito, durante
o Sínodo, os padres sublinharam a conveniência de um maior envolvimento das
comunidades de vida consagrada, movimentos e agregações que, pelo próprio
carisma, possam dar novo impulso à
formação cristã.(188) Temos a certeza de que, também no nosso tempo, o
Espírito Santo não poupa a efusão dos seus dons para sustentar a missão
apostólica da Igreja, a quem compete difundir a fé e educá-la até à sua
maturidade.(189)
A reverência à Eucaristia
65. Um sinal convincente da eficácia que a catequese
eucarística tem sobre os fiéis é seguramente o crescimento neles do sentido do
mistério de Deus presente entre nós; podemos verificá-lo através de específicas
manifestações de reverência à Eucaristia, nas quais o percurso mistagógico deve
introduzir os fiéis.(190) Penso, em geral, na importância dos gestos e
posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da
Oração Eucarística. Embora adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem
lugar no contexto das diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência
de encontrar-se, em cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que
chega até nós humildemente nos sinais sacramentais.
Adoração e piedade eucarística
A relação intrínseca entre celebração e
adoração
66. Um dos momentos mais intensos do Sínodo vivemo-lo quando
fomos à Basílica de São Pedro, juntamente com muitos fiéis, fazer adoração
eucarística. Com aquele momento de oração, quis a assembleia dos bispos não se
limitar às palavras na sua chamada de atenção para a importância da relação
intrínseca entre a celebração eucarística e a adoração. Neste significativo
aspecto da fé da Igreja, encontra-se um dos elementos decisivos do caminho
eclesial que se realizou após a renovação litúrgica querida pelo Concílio
Vaticano II. Quando a reforma dava os primeiros passos, aconteceu às vezes não
se perceber com suficiente clareza a relação intrínseca entre a Santa Missa e a
adoração do Santíssimo Sacramento; uma objecção então em voga, por exemplo,
partia da ideia que o pão eucarístico nos fora dado não para ser contemplado,
mas comido. Ora, tal contraposição, vista à luz da experiência de oração da
Igreja, aparece realmente destituída de qualquer fundamento; já Santo Agostinho
dissera: « Nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit;
(...) peccemus non adorando – ninguém come esta carne, sem antes a
adorar; (...) pecaríamos se não a adorássemos ».(191) De facto, na Eucaristia,
o Filho de Deus vem ao nosso encontro e deseja unir-Se connosco; a adoração
eucarística é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, a qual,
em si mesma, é o maior acto de adoração da Igreja: (192) receber a Eucaristia
significa colocar-se em atitude de adoração d'Aquele que comungamos.
Precisamente assim, e apenas assim, é que nos tornamos um só com Ele e, de
algum modo, saboreamos antecipadamente a beleza da liturgia celeste. O acto de
adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na
própria celebração litúrgica. Com efeito, « somente na adoração pode maturar um
acolhimento profundo e verdadeiro. Precisamente neste acto pessoal de encontro
com o Senhor amadurece depois também a missão social, que está encerrada na
Eucaristia e deseja romper as barreiras não apenas entre o Senhor e nós mesmos,
mas também, e sobretudo, as barreiras
que nos separam uns dos outros ».(193)
A prática da adoração eucarística
67. Juntamente com a assembleia sinodal, recomendo, pois,
vivamente aos pastores da Igreja e ao povo de Deus a prática da adoração
eucarística tanto pessoal como comunitária.(194) Para isso, será de grande
proveito uma catequese específica na qual se explique aos fiéis a importância
deste acto de culto que permite viver, mais profundamente e com maior fruto, a
própria celebração litúrgica. Depois, na medida do possível e sobretudo nos
centros mais populosos, será conveniente individuar igrejas ou capelas que se
possam reservar propositadamente para a adoração perpétua. Além disso, recomendo que na formação catequética, particularmente nos
itinerários de preparação para a Primeira Comunhão, se iniciem as crianças no
sentido e na beleza de demorar-se na companhia de Jesus, cultivando o enlevo
pela sua presença na Eucaristia.
Quero exprimir, aqui, apreço e apoio a todos os institutos de
vida consagrada, cujos membros dedicam uma parte significativa do seu tempo à
adoração eucarística; deste modo, oferecem a todos o exemplo de pessoas que se
deixam plasmar pela presença real do Senhor. Desejo igualmente encorajar as
associações de fiéis, nomeadamente as confrarias, que assumem esta prática como
seu compromisso especial, tornando-se assim fermento de contemplação para toda
a Igreja e apelo à centralidade de Cristo na vida dos indivíduos e da
comunidade.
Formas de devoção eucarística
68. O relacionamento pessoal que cada fiel estabelece com
Jesus, presente na Eucaristia, recondu-lo sempre ao conjunto da comunhão
eclesial, alimentando nele a consciência da sua pertença ao corpo de Cristo.
Por isso, além de convidar cada um dos fiéis a encontrar pessoalmente tempo para
se demorar em oração diante do sacramento do altar, sinto o dever de convidar
as próprias paróquias e demais grupos eclesiais a promoverem momentos de
adoração comunitária. Obviamente, conservam todo o seu valor as formas já
existentes de devoção eucarística. Penso, por exemplo, nas procissões
eucarísticas, sobretudo a tradicional procissão na solenidade do Corpo de Deus,
na devoção das Quarenta Horas, nos congressos eucarísticos locais, nacionais e
internacionais, e noutras iniciativas análogas. Devidamente actualizadas e
adaptadas às diversas circunstâncias, tais formas de devoção merecem ser
cultivadas ainda hoje.(195)
O lugar do sacrário na igreja
69. Ainda relacionado com a importância da reserva
eucarística e da adoração e reverência diante do sacramento do sacrifício de
Cristo, o Sínodo dos Bispos interrogou-se sobre a devida colocação do sacrário
dentro das nossas igrejas.(196) Com efeito, uma correcta localização do mesmo
ajuda a reconhecer a presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento; por isso,
é necessário que o lugar onde são conservadas as espécies eucarísticas seja
fácil de individuar por qualquer pessoa que entre na igreja, graças
nomeadamente à lâmpada do Santíssimo
perenemente acesa. Tendo em vista tal objectivo, é preciso considerar a
disposição arquitectónica do edifício sagrado: nas igrejas, onde não existe a capela do Santíssimo
Sacramento mas perdura o altar-mor com o sacrário, convém continuar a valer-se de tal estrutura para a conservação e
adoração da Eucaristia, evitando porém colocar a cadeira do celebrante na sua
frente. Nas novas igrejas, bom seria predispor a capela do Santíssimo nas
proximidades do presbitério; onde isso não for possível, é preferível colocar o sacrário no presbitério, em lugar
suficientemente elevado, no centro do fecho absidal ou então noutro ponto onde fique de igual modo bem visível.
Estas precauções concorrem para conferir dignidade ao sacrário que deve ser
cuidado sempre também sob o perfil artístico. Obviamente, é necessário ter em
conta também o que diz a propósito a Instrução Geral do Missal Romano.(197)
Em todo o caso, o juízo último sobre
esta matéria compete ao bispo diocesano.
III PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO
« Assim como o Pai, que vive,
Me enviou e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come
viverá por Mim » (Jo 6, 57)
Me enviou e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come
viverá por Mim » (Jo 6, 57)
Forma eucarística da vida cristã
O culto espiritual
70. O Senhor Jesus, que para nós Se fez alimento de verdade e
amor, falando do dom da sua vida assegura-nos: « Quem comer deste pão viverá
eternamente » (Jo 6, 51). Mas, esta « vida eterna » começa em nós, já
agora, através da mudança que o dom eucarístico gera na nossa vida: « Aquele
que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Estas palavras de Jesus
permitem-nos compreender que o mistério « acreditado » e « celebrado » possui
em si mesmo um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e
forma da existência cristã. De facto, comungando o corpo e o sangue de Jesus
Cristo, vamo-nos tornando participantes da vida divina de modo sempre mais
adulto e consciente. Vale aqui o mesmo que Santo Agostinho afirma a propósito
do Verbo (Logos) eterno, alimento da alma, quando, pondo em evidência o
carácter paradoxal deste alimento, o santo doutor imagina ouvi-Lo dizer: « Sou
o pão dos fortes; cresce e comer-Me-ás. Não Me transformarás em ti como ao
alimento da tua carne, mas mudar-te-ás em Mim ».(198) Com efeito, não é o
alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos
misteriosamente mudados por ele. Cristo alimenta-nos, unindo-nos a Si; «
atrai-nos para dentro de Si ».(199)
A celebração eucarística surge aqui em toda a sua força como
fonte e ápice da existência eclesial, enquanto exprime a origem e
simultaneamente a realização do culto novo e definitivo, o culto espiritual (logiké
latreía).(200) As palavras que encontramos sobre isto, na Carta de
São Paulo aos Romanos, são a formulação mais sintética do modo como a
Eucaristia transforma toda a nossa vida em culto espiritual agradável a Deus: «
Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos
como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Tal é o culto espiritual que Lhe
deveis prestar » (12, 1). Nesta exortação, aparece a imagem do novo culto como
oferta total da própria pessoa em comunhão com toda a Igreja. A insistência do
Apóstolo sobre a oferta dos nossos corpos sublinha o concretismo humano dum
culto de forma alguma desencarnado. E, a propósito, o santo de Hipona
lembra-nos que « este é o sacrifício dos cristãos, ou seja, serem muitos e um
só corpo em Cristo. A
Igreja celebra este mistério através do sacramento do altar,
que os fiéis bem conhecem e no qual se lhes mostra claramente que, naquilo que
se oferece, ela mesma é oferecida ».(201) De facto, a doutrina católica afirma
que a Eucaristia, enquanto sacrifício de Cristo, é também sacrifício da Igreja
e, consequentemente, dos fiéis.(202) Esta insistência sobre o sacrifício — sacrum
facere, « tornar sagrado » — exprime aqui toda a densidade existencial que
está implicada na transformação da nossa realidade humana alcançada por Cristo
(Fil 3, 12).
Eficácia omnicompreensiva do culto
eucarístico
71. O novo culto cristão engloba todos os aspectos da
existência, transfigurando-a: « Quando comeis ou bebeis, ou fazeis qualquer
outra coisa, fazei tudo para glória de Deus » (1 Cor 10, 31). Em cada acto
da sua vida, o cristão é chamado a manifestar o verdadeiro culto a Deus; daqui
toma forma a natureza intrinsecamente eucarística da vida cristã. Uma vez que
abraça a realidade humana do crente em seu concretismo quotidiano, a Eucaristia
torna possível dia após dia a progressiva transfiguração do homem, por graça
chamado a ser conforme à imagem do Filho de Deus (Rm 8, 29s). Nada há de
autenticamente humano — pensamentos e afectos, palavras e obras — que não
encontre no sacramento da Eucaristia a forma adequada para ser vivido em plenitude. Sobressai
aqui todo o valor antropológico da novidade radical trazida por Cristo com a
Eucaristia: o culto a Deus na existência humana não pode ser relegado para um
momento particular e privado, mas tende, por sua natureza, a permear cada
aspecto da realidade do indivíduo. Assim, o culto agradável a Deus torna-se uma
nova maneira de viver todas as circunstâncias da existência, na qual cada
particular fica exaltado porque vivido dentro do relacionamento com Cristo e
como oferta a Deus. A glória de Deus é o homem vivo (1 Cor 10, 31); e a
vida do homem é a visão de Deus.(203)
Viver segundo o domingo
72. Esta novidade radical, que a Eucaristia introduz na vida
do homem, revelou-se à consciência cristã desde o princípio; prontamente os
fiéis compreenderam a influência profunda que a celebração eucarística exercia
sobre o estilo da sua vida. Santo Inácio de Antioquia exprimia esta verdade
designando os cristãos como « aqueles que chegaram à nova esperança », e apresentava-os
como aqueles que vivem « segundo o domingo » (iuxta dominicam viventes).(204)
Esta expressão do grande mártir antioqueno põe claramente em evidência a
ligação entre a realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia. O
costume característico que têm os cristãos de reunir-se no primeiro dia depois
do sábado para celebrar a ressurreição de Cristo — conforme a narração do
mártir São Justino(205) — é também o dado que define a forma da vida renovada
pelo encontro com Cristo. Mas, a expressão de Santo Inácio — « viver segundo o
domingo » — sublinha também o valor paradigmático que este dia santo tem para
os restantes dias da semana. De facto, o domingo não se distingue com base na
simples suspensão das actividades habituais, como se fosse uma espécie de parêntesis
dentro do ritmo normal dos dias; os cristãos sempre sentiram este dia como o
primeiro da semana, porque nele se faz memória da novidade radical trazida por
Cristo. Por isso, o domingo é o dia em que o cristão reencontra a forma
eucarística própria da sua existência, segundo a qual é chamado a viver
constantemente: « viver segundo o domingo » significa viver consciente da
libertação trazida por Cristo e realizar a própria existência como oferta de si
mesmo a Deus, para que a sua vitória se manifeste plenamente a todos os homens
através duma conduta intimamente renovada.
Viver o preceito dominical
73. Cientes deste princípio novo de vida que a Eucaristia
deposita no cristão, os padres sinodais reafirmaram a importância que tem, para
todos os fiéis, o preceito dominical como fonte de liberdade autêntica, a fim
de poderem viver cada um dos outros dias segundo o que celebraram no « dia do
Senhor ». Com efeito, a vida de fé corre perigo quando se deixa de sentir
desejo de participar na celebração eucarística em que se faz memória da vitória
pascal. A participação na assembleia litúrgica dominical, ao lado de todos os
irmãos e irmãs com os quais se forma um só corpo em Cristo Jesus , é
exigida pela consciência cristã e simultaneamente educa a consciência cristã. Perder o sentido do domingo como dia do
Senhor que deve ser santificado é sintoma duma perda do sentido autêntico da
liberdade cristã, a liberdade dos filhos de Deus.(206) Continuam a ser
preciosas as observações feitas a este respeito pelo meu venerado predecessor
João Paulo II, na Carta Apostólica Dies Domini,(207) quando trata das
diversas dimensões que o domingo tem para os cristãos: é dies Domini, em
referimento à obra da criação; dies Christi, enquanto dia da nova
criação e do dom do Espírito Santo que o Senhor Ressuscitado concede; dies
Ecclesiæ, como dia em que a comunidade cristã se reúne para a celebração;
dies hominis, porque dia de alegria, repouso e caridade fraterna.
Um tal dia aparece, assim, como festa primordial em que todo
o fiel, no próprio ambiente onde vive, se pode fazer arauto e guardião do
sentido do tempo. Deste dia, com efeito, brota o sentido cristão da existência
e uma nova maneira de viver o tempo, as relações, o trabalho, a vida e a morte.
Por isso, é bom que, no dia do Senhor, as realidades eclesiais organizem, a
partir da celebração eucarística dominical, manifestações próprias da comunidade
cristã: encontros de amizade, iniciativas para a formação de crianças, jovens e
adultos na fé, peregrinações, obras de caridade e momentos variados de oração.
Por causa destes valores tão importantes — embora justamente a tarde de sábado a partir das primeiras
Vésperas já pertença ao domingo, sendo
permitido cumprir nela o preceito dominical — é necessário recordar que é o
domingo em si mesmo que merece ser santificado, para que não acabe por ficar um
dia « vazio de Deus ».(208)
O sentido do repouso e do trabalho
74. É particularmente
urgente no nosso tempo lembrar que o dia do Senhor é também o dia de repouso do
trabalho. Desejamos vivamente que isto mesmo seja reconhecido também pela
sociedade civil, de modo que se possa ficar livre das obrigações laborais sem
ser penalizado por isso. De facto, os cristãos — não sem relação com o
significado do sábado na tradição hebraica — viram no dia do Senhor também o
dia de repouso da fadiga quotidiana. Isto possui um significado bem preciso, ou
seja, constitui uma relativização do trabalho, que tem por finalidade o
homem: o trabalho é para o homem e não o
homem para o trabalho. É fácil intuir a tutela que isto oferece ao próprio
homem, ficando assim emancipado duma possível forma de escravidão. Como já tive
ocasião de afirmar, « o trabalho reveste uma importância primária para a
realização do homem e o progresso da sociedade; por isso torna-se necessário
que aquele seja sempre organizado e realizado no pleno respeito da dignidade
humana e ao serviço do bem comum. Ao mesmo
tempo, é indispensável que o homem não se deixe escravizar pelo trabalho,
que não o idolatre pretendendo achar nele o sentido último e definitivo da vida
».(209) É no dia consagrado a Deus que o homem compreende o sentido da
sua existência e também do trabalho.(210)
Assembleias dominicais na ausência de
sacerdote
75. Uma vez descoberto o significado da celebração dominical
para a vida do cristão, coloca-se espontaneamente o problema das comunidades
cristãs onde falta o sacerdote e, consequentemente, não é possível celebrar a
Santa Missa no dia do Senhor. A tal respeito, convém reconhecer que nos
encontramos perante situações muito diversificadas entre si. Antes de mais, o
Sínodo recomendou aos fiéis que fossem a uma das igrejas da diocese onde está
garantida a presença do sacerdote, mesmo que isso lhes exija um pouco de
sacrifício.(211) Entretanto, nos casos em que se torne praticamente impossível,
devido à grande distância, a participação na Eucaristia dominical, é importante
que as comunidades cristãs se reúnam igualmente para louvar o Senhor e fazer
memória do dia a Ele dedicado. Mas, isso deverá verificar-se a partir duma
conveniente instrução sobre a diferença entre a Santa Missa e as assembleias
dominicais à espera de sacerdote. A solicitude pastoral da Igreja há-de
exprimir-se, neste caso, vigiando que a liturgia da palavra — organizada sob a
guia dum diácono ou dum responsável da comunidade a quem foi regularmente
confiado este ministério pela autoridade competente — se realize segundo um
ritual específico elaborado pelas Conferências Episcopais e para tal fim
aprovado por elas.(212) Lembro que compete aos Ordinários conceder a faculdade
de distribuir a comunhão nessas liturgias, ponderando atentamente a
conveniência da escolha a fazer. Além disso, tudo deve ser feito de forma que
tais assembleias não criem confusão quanto ao papel central do sacerdote e à
dimensão sacramental na vida da Igreja. A importância da função dos leigos, a
quem justamente há que agradecer a generosidade ao serviço das comunidades cristãs,
jamais deve ofuscar o ministério
insubstituível dos sacerdotes na vida da Igreja.(213) Por isso,
vigie-se atentamente sobre as assembleias à espera de sacerdote para que não
dêem lugar a visões eclesiológicas incompatíveis com a verdade do Evangelho e a
tradição da Igreja; devem antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a
Deus para que mande sacerdotes santos segundo o seu Coração. A propósito, vale
a pena recordar aquilo que escreveu o Papa João Paulo II na Carta aos
Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de 1979, recordando o caso
comovente que se verificava em certos lugares onde as pessoas, privadas de
sacerdote pelo regime ditatorial, se reuniam numa igreja ou num santuário,
colocavam sobre o altar a estola que ainda conservavam e recitavam as orações
da liturgia eucarística até ao « momento que corresponderia à transubstanciação
» e aí se detinham em silêncio, dando testemunho de quão « ardentemente
desejavam ouvir aquelas palavras que só os lábios dum sacerdote podiam eficazmente
pronunciar ».(214) Precisamente nesta perspectiva, considerando o bem
incomparável que deriva da celebração do sacrifício eucarístico, peço a todos
os sacerdotes uma efectiva e concreta disponibilidade para visitarem, com a
maior assiduidade possível, as comunidades que estão confiadas ao seu cuidado
pastoral, a fim de não ficarem demasiado tempo sem o sacramento da caridade.
Uma forma eucarística da existência
cristã,
a pertença eclesial
a pertença eclesial
A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e
comunitária. Através da diocese e das paróquias, enquanto estruturas basilares
da Igreja num território particular, cada fiel pode fazer experiência concreta
da sua pertença ao corpo de Cristo. As associações, os movimentos eclesiais e
novas comunidades — com a vivacidade dos carismas que lhes foram concedidos
pelo Espírito Santo para o nosso tempo — bem como os institutos de vida
consagrada têm a missão de oferecer a sua contribuição específica para
favorecer nos fiéis a percepção desta sua pertença ao Senhor (Rm
14, 8). O fenómeno da secularização, que apresenta — não por acaso — traços
fortemente individualistas, logra seus efeitos deletérios sobretudo nas pessoas
que se isolam por escasso sentido de pertença. Desde os seus inícios, sempre o
cristianismo implica uma companhia, uma trama de relações continuamente
vivificadas pela escuta da palavra e pela celebração eucarística e animadas
pelo Espírito Santo.
Espiritualidade e cultura eucarística
77. Os padres sinodais afirmaram, significativamente, que «
os fiéis cristãos precisam duma compreensão mais profunda das relações entre a
Eucaristia e a vida quotidiana. A espiritualidade eucarística não é apenas
participação na Missa e devoção ao Santíssimo Sacramento; mas abraça a vida
inteira ».(216) Um tal realce assume actualmente particular significado para
todos nós; é preciso reconhecer que um dos efeitos mais graves da
secularização, há pouco mencionada, é ter relegado a fé cristã para a margem da
existência, como se fosse inútil para a realização concreta da vida dos homens;
a falência desta maneira de viver « como
se Deus não existisse » está agora patente a todos. Hoje torna-se necessário redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples
convicção privada ou uma doutrina abstracta, mas uma pessoa real cuja inserção
na história é capaz de renovar a vida de todos. Por isso, a Eucaristia,
enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve traduzir-se em
espiritualidade, em vida « segundo o Espírito » (Rm 8, 4s; cf. Gal
5, 16.25). É significativo que São Paulo, na passagem da Carta aos Romanos
onde convida a viver o novo culto espiritual, apele ao mesmo tempo para a necessidade
de mudar a própria forma de viver e pensar: « Não vos conformeis com este
mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para saberdes
discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável, o que
é perfeito » (12, 2). Deste modo, o Apóstolo das Gentes põe em evidência a
ligação entre o verdadeiro culto espiritual e a necessidade duma nova maneira
de compreender a existência e orientar a vida. Constitui parte integrante da
forma eucarística da vida cristã a renovação da mentalidade, pois « assim já
não seremos crianças inconstantes, levadas ao sabor de todo o vento de doutrina
» (Ef 4, 14).
Eucaristia e evangelização das culturas
78. Daquilo que ficou dito, segue-se que o mistério
eucarístico nos põe em diálogo com as várias culturas, mas de certa
forma também as desafia.(217) É preciso reconhecer o carácter
intercultural deste novo culto, desta logiké latreía: a presença de
Jesus Cristo e a efusão do Espírito Santo são acontecimentos que podem
encontrar-se de forma duradoura com qualquer realidade cultural a fim de a
fermentar evangelicamente. Em consequência disto mesmo, temos a obrigação de
promover convictamente a evangelização das culturas, na certeza de que o
próprio Cristo é a verdade de todo o homem e da história humana inteira. A
Eucaristia torna-se critério de valorização de tudo o que o cristão encontra
nas diversas expressões culturais; num processo importante como este, podem
revelar-se de grande significado as palavras de São Paulo quando, na sua I Carta
aos Tessalonicenses, convida a « avaliar tudo e conservar o que for bom »
(5, 21).
Eucaristia e fiéis leigos
79. Em Cristo, cabeça da Igreja seu corpo, todos os cristãos
formam uma « raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus
para anunciar os louvores d'Aquele que os chamou das trevas à sua luz admirável
» (1 Pd 2, 9). A Eucaristia, enquanto mistério a ser vivido, oferece-se
a cada um de nós na condição concreta em que nos encontramos, fazendo com que
esta mesma situação vital se torne um lugar onde viver diariamente a novidade
cristã. Se o sacrifício eucarístico alimenta e faz crescer em nós tudo o que já
nos foi dado no Baptismo, pelo qual todos somos chamados à santidade,(218)
então isso deve transparecer e manifestar-se precisamente nas situações ou
estados de vida em que cada cristão se encontra; tornamo-nos dia após dia culto
agradável a Deus, vivendo a própria vida como vocação. O próprio sacramento da
Eucaristia, a partir da convocação litúrgica, compromete-nos na realidade
quotidiana a fim de que tudo seja feito para glória de Deus.
E, dado que o mundo é « o campo » (Mt 13, 38) onde
Deus coloca os seus filhos como boa semente, os cristãos leigos, em virtude do
Baptismo e da Confirmação e corroborados pela Eucaristia, são chamados a viver
a novidade radical trazida por Cristo precisamente no meio das condições
normais da vida; (219) devem cultivar o desejo de ver a Eucaristia influir cada
vez mais profundamente na sua existência quotidiana, levando-os a serem
testemunhas reconhecidas como tais no próprio ambiente de trabalho e na
sociedade inteira.(220) Dirijo um particular encorajamento às famílias a
haurirem inspiração e força deste sacramento: o amor entre o homem e a mulher,
o acolhimento da vida, a missão educadora aparecem como âmbitos privilegiados
onde a Eucaristia pode mostrar a sua capacidade de transformar e encher de
significado a existência.(221) Os pastores nunca deixem de apoiar, educar e
encorajar os fiéis leigos a viverem plenamente a própria vocação à santidade no
meio deste mundo que Deus amou até ao ponto de dar o Filho para sua salvação (Jo
3, 16).
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal
Eucaristia e vida consagrada
81. No contexto da relação entre a Eucaristia e as diversas
vocações eclesiais, refulge de modo particular « o testemunho profético de
mulheres e homens consagrados que encontram, na celebração eucarística e na
adoração, a força para o seguimento radical de Cristo obediente, pobre e casto
».(225) Embora realizem muitos serviços no campo da formação humana e do
cuidado pelos pobres, no ensino ou na assistência aos doentes, os consagrados e
consagradas sabem que a finalidade principal da sua vida é « a contemplação das
coisas divinas e a união assídua com Deus »;( 226 a contribuição
essencial que a Igreja espera da vida consagrada destina-se muito mais ao ser
do que ao fazer. Neste contexto, queria evocar a importância do testemunho
virginal precisamente em relação ao mistério da Eucaristia; com efeito, além da
ligação com o celibato sacerdotal, o mistério eucarístico apresenta uma relação
intrínseca com a virgindade consagrada, enquanto esta é expressão da dedicação
exclusiva da Igreja a Cristo, que ela acolhe como seu Esposo com radical e
fecunda fidelidade.227) Na Eucaristia, a virgindade consagrada encontra
inspiração e nutrimento para a sua dedicação total a Cristo; além disso, aufere
da Eucaristia conforto e impulso para ser, no nosso tempo também, sinal do amor
gratuito e fecundo que Deus tem pela humanidade. Enfim, é através do seu testemunho
específico que a vida consagrada se torna objectivamente apelo e antecipação
daquelas « núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) que constituem a meta de
toda a história da salvação; neste sentido, aquela constitui uma evocação
eficaz do horizonte escatológico de que o homem necessita para poder orientar
as suas opções e resoluções de vida.
Eucaristia e transformação moral
82. Descoberta a beleza da forma eucarística da existência
cristã, somos levados a reflectir também sobre as energias morais que, por tal
forma, se desencadeiam em apoio da liberdade autêntica e própria dos filhos de
Deus. Desejo, assim, retomar um assunto que surgiu no Sínodo: a ligação entre forma
eucarística da vida e transformação moral. O Papa João Paulo II
afirmara que a vida moral « possui o valor de um ‘‘culto espiritual'' (Rm
12, 1; cf. Fil 3, 3), que brota e se alimenta daquela fonte inesgotável
de santidade e glorificação de Deus que são os sacramentos, especialmente a
Eucaristia: com efeito, ao participar no sacrifício da cruz, o cristão comunga
do amor de doação de Cristo, ficando habilitado e comprometido a viver esta
mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos de vida ».(228) Em
suma, « no próprio ‘‘culto'', na comunhão eucarística, está contido o ser amado
e o amar por sua vez os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor
concretamente vivido é em si mesma fragmentária ».(229)
Este apelo ao valor moral do culto espiritual não deve ser
interpretado em chave moralista; é, antes de mais, a descoberta feliz do
dinamismo do amor no coração de quem acolhe o dom do Senhor, abandona-se a Ele
e encontra a verdadeira liberdade. A transformação moral, que o novo culto
instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer
corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da
própria fragilidade. Aquilo de que estamos a falar aparece claramente no relato
evangélico de Zaqueu (Lc 19, 1-10): depois de ter hospedado Jesus na sua
casa, o publicano sente-se completamente transformado; decide dar metade dos
seus haveres aos pobres e restituir quatro vezes mais a quem roubou. A tensão
moral, que nasce do acto de hospedar Jesus na nossa vida, brota da gratidão por
se ter experimentado a imerecida proximidade do Senhor.
Coerência eucarística
83. É importante salientar aquilo que os padres sinodais
designaram por coerência eucarística, à qual está objectivamente chamada
a nossa existência. Com efeito, o culto agradável a Deus nunca é um acto
meramente privado, sem consequências nas nossas relações sociais: requer o
testemunho público da própria fé. Evidentemente isto vale para todos os
baptizados, mas impõe-se com particular premência a quantos, pela posição
social ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais
como o respeito e defesa da vida humana
desde a concepção até à morte natural, a
família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a
promoção do bem comum em todas as suas formas.(230) Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua
grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem
sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada
a apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza
humana.(231) Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a Eucaristia (1
Cor 11, 27-29). Os bispos são
obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade
pelo rebanho que lhes foi confiado.(232)
Eucaristia, mistério anunciado
Eucaristia e missão
84. Na homilia durante a celebração eucarística com que
solenemente dei início ao meu ministério na Cátedra de Pedro, disse: « Não há
nada de mais belo do que ser alcançado, surpreendido pelo Evangelho, por Cristo.
Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar aos outros a amizade com
Ele ».(233) Esta afirmação cresce de intensidade, quando pensamos no mistério
eucarístico; com efeito, não podemos reservar para nós o amor que celebramos
neste sacramento: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de
que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e
acreditar n'Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da
Igreja, mas também da sua missão: « Uma Igreja autenticamente eucarística é uma
Igreja missionária ».(234) Havemos, também nós, de poder dizer com convicção
aos nossos irmãos: « Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que
estejais também em comunhão connosco » (1 Jo 1, 2-3). Verdadeiramente
não há nada de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo a todos! Aliás, a
própria instituição da Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da
missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para a redenção do mundo (Jo 3,
16-17; Rm 8, 32). Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o
sacramento que actualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de Si
mesmo pela salvação de todos nós. Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística
sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio
Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é
parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã.
Eucaristia e testemunho
Jesus Cristo, único Salvador
86. Sublinhar a ligação intrínseca entre Eucaristia e missão
faz-nos descobrir também o conteúdo supremo do nosso anúncio. Quanto mais vivo
for o amor pela Eucaristia no coração do povo cristão, tanto mais clara lhe
será a incumbência da missão: levar Cristo; não meramente uma ideia ou
uma ética n'Ele inspirada, mas o dom da sua própria Pessoa. Quem não comunica a
verdade do Amor ao irmão, ainda não deu bastante. A Eucaristia enquanto
sacramento da nossa salvação chama-nos assim, inevitavelmente, à unicidade de
Cristo e da salvação por Ele realizada a preço do seu sangue. Por isso, do
mistério eucarístico acreditado e celebrado nasce a exigência de educar
constantemente a todos para o trabalho missionário, cujo centro é o anúncio de
Jesus, único Salvador.(238) Isto impedirá de confinar, em chave meramente sociológica,
a obra decisiva de promoção humana que todo o processo de evangelização
autêntico sempre implica.
Liberdade de culto
87. Neste contexto, desejo dar voz àquilo que os padres
referiram, durante a assembleia sinodal, a propósito das graves dificuldades
criadas à missão das comunidades cristãs que vivem em condições de minoria ou
mesmo de privação da liberdade religiosa.(239) Devemos verdadeiramente dar
graças ao Senhor por todos os bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e leigos
que se prodigalizam a anunciar o Evangelho e vivem a sua fé sob risco da
própria vida. Não são poucas as regiões
do mundo onde o simples ir à igreja constitui um testemunho heróico que expõe a
vida da pessoa à marginalização e à violência. Nesta ocasião, quero também
reiterar a solidariedade da Igreja inteira a quantos sofrem por falta de
liberdade de culto. Nos lugares onde não há a liberdade religiosa, sabemos que
falta, no fim de contas, a liberdade mais significativa, pois é na fé que o
homem exprime a decisão íntima relativa ao sentido último da própria
existência; por isso, rezemos para que se alargue o espaço da liberdade
religiosa em todos os Estados, a fim de
os cristãos e os membros das outras religiões poderem livremente viver as suas
convicções, pessoalmente e em comunidade.
Eucaristia,
mistério oferecido ao mundo
mistério oferecido ao mundo
Eucaristia, pão repartido para a vida do
mundo
88. « O pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei
pela vida do mundo » (Jo 6, 51). Com estas palavras, o Senhor revela o
verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os homens; as mesmas
mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa. Na
realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus
para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20, 34; Mc
6, 34; Lc 19, 41). Ele exprime, através dum sentimento profundamente
humano, a intenção salvífica de Deus que deseja que todo o homem alcance a
verdadeira vida. Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a
doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro.
Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de
Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o
serviço da caridade para com o próximo, que « consiste precisamente no facto de
eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço
sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um
encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento.
Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e
sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo ».(240) Desta forma, nas
pessoas que contacto, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a sua
vida amando-os « até ao fim » (Jo 13, 1). Por conseguinte, as nossas
comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem
consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos;
e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n'Ele a fazer-se « pão
repartido » para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais
justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de
reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a
empenharem-se pessoalmente: « Dai-lhes vós de comer » (Mt 14, 16). Na
verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão
repartido para a vida do mundo.
As implicações sociais do mistério
eucarístico
Na perspectiva da responsabilidade social de todos os
cristãos, os padres sinodais lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de
libertação que nos interpela e provoca continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos
os fiéis para que se tornem realmente obreiros de paz e justiça: « Com efeito, quem participa na Eucaristia
deve empenhar-se na edificação da paz neste nosso mundo marcado por muitas
violências e guerras, e, hoje de modo particular, pelo terrorismo, a corrupção
económica e a exploração sexual »;( 245) problemas, estes, que geram por
sua vez outros fenómenos degradantes que causam viva preocupação. Sabemos que
estas situações não podem ser encaradas de modo superficial. Precisamente em
virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que
estão em contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu
sangue, afirmando assim o alto valor de cada pessoa.
O alimento da verdade e a indigência do
homem
90. Não podemos ficar inactivos perante certos processos de
globalização, que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre
ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar quem delapida as riquezas da
terra, provocando desigualdades que bradam ao céu (Tg 5, 4). Por exemplo,
é impossível calar diante das « imagens impressionantes dos grandes campos de
deslocados ou refugiados — em várias partes do mundo — amontoados em condições
precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes
seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo
com os mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros? ».(246) O Senhor
Jesus, pão de vida eterna, incita a tornarmo-nos atentos às situações de
indigência em que ainda vive grande parte da humanidade: são situações cuja
causa se fica a dever, frequentemente, a uma clara e preocupante
responsabilidade dos homens. De facto, « com base em dados estatísticos
disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de metade das somas imensas globalmente
destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da indigência o exército
ilimitado dos pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações que
vivem sob o limiar da pobreza, mais por causa de situações que dependem das
relações internacionais políticas, comerciais e culturais do que por
circunstâncias incontroláveis, o nosso esforço comum verdadeiramente pode e
deve oferecer-lhes nova esperança ».(247)
O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações
indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da
injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem
descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos
tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Act 4, 32) e de ajudar
os pobres (Rm 15, 26). O peditório que se realiza nas assembleias
litúrgicas constitui viva reminiscência disso mesmo, mas é também uma
necessidade muito actual. As
instituições eclesiais de beneficência, de modo particular a Caritas nos
seus vários níveis, realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em
necessidade, sobretudo os mais pobres. Tirando inspiração da Eucaristia,
que é o sacramento da caridade, aquelas tornam-se a sua expressão concreta; por
isso, merecem todo o aplauso e estímulo pelo seu empenho solidário no mundo.
A doutrina social da Igreja
91. O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um
compromisso corajoso nas estruturas deste mundo para lhes conferir aquela
novidade de relações que tem a sua fonte inexaurível no dom de Deus. O pedido
que repetimos em cada Missa :
« O pão nosso de cada dia nos dai hoje », obriga-nos a fazer tudo o que for
possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais,
privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e
da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em
vias de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado na escola da
Eucaristia, é chamado a assumir directamente a sua responsabilidade político-social;
a fim de poder desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo
através duma educação concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi
pedido pelo Sínodo, é necessário que,
nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e incremente a doutrina
social da Igreja.(248) Neste precioso património, nascido da mais antiga
tradição eclesial, encontramos os elementos que orientam, com profunda
sabedoria, o comportamento dos cristãos nas questões sociais em ebulição. Amadurecida
durante toda a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se pelo seu
realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs
utopias.
Santificação do mundo e defesa da
criação
92. Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda,
capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o
povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o
fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando
intensamente para tal fim.(249) A própria Eucaristia projecta uma luz intensa
sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental,
aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de
sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a
forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica
mudança de mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto
nos educa a própria liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos
dons, dirige a Deus uma oração de bênção e súplica a respeito do pão e do
vinho, « fruto da terra », « da videira » e do « trabalho do homem ». Com estas
palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a actividade e canseira
humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz quanto
precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de
mera matéria a ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas
coloca-se dentro do desígnio amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos
chamados a ser filhos e filhas de Deus no seu único Filho, Jesus Cristo (Ef 1,
4-12). As condições ecológicas em que a criação subjaz em muitas partes do
mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na
perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar
responsavelmente na defesa da criação; (250) de facto, na relação entre a
Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos
levados a individuar a relação profunda da criação com a « nova criação » que
foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já agora
em virtude do Baptismo (Col 2, 12s), abrindo-se assim à nossa vida
cristã, alimentada pela Eucaristia, a perspectiva do mundo novo, do novo céu e
da nova terra, onde a nova Jerusalém desce do céu, de junto de Deus, « bela
como noiva adornada para o seu esposo » (Ap 21, 2).
Utilidade dum Compêndio Eucarístico
93. No termo destas reflexões em que de boa vontade me detive
sobre as indicações surgidas no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os
padres apresentaram para ajudar o povo cristão a crer, celebrar e viver cada
vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos Dicastérios competentes, há-de
ser publicado um Compêndio, que recolha textos do Catecismo da Igreja
Católica, orações, explicações das Orações Eucarísticas do Missal e tudo o mais
que possa demonstrar-se útil para a correcta compreensão, celebração e adoração
do sacramento do altar.(251) Espero que este instrumento possa contribuir para
que o memorial da páscoa do Senhor se torne cada dia sempre mais fonte e ápice
da vida e da missão da Igreja; isto animará cada fiel a fazer da sua própria
vida um verdadeiro culto espiritual.
CONCLUSÃO
94. Amados irmãos e irmãs, a Eucaristia está na origem de
toda a forma de santidade, sendo cada um de nós chamado à plenitude de vida no
Espírito Santo. Quantos santos tornaram autêntica a própria vida, graças à sua
piedade eucarística! De Santo Inácio de Antioquia a Santo Agostinho, de Santo
Antão Abade a São Bento, de São Francisco de Assis a São Tomás de Aquino, de
Santa Clara de Assis a Santa Catarina de Sena, de São Pascoal Bailão a São
Pedro Julião Eymard, de Santo Afonso Maria de Ligório ao Beato Carlos de Foucauld,
de São João Maria Vianey a Santa Teresa de Lisieux, de São Pio de Pietrelcina à
Beata Teresa de Calcutá, do Beato Pedro Jorge Frassati ao Beato Ivan Merz, para
mencionar apenas alguns de tantos nomes, a santidade sempre encontrou o seu centro
no sacramento da Eucaristia.
Por isso, é necessário que, na Igreja, este mistério
santíssimo seja verdadeiramente acreditado, devotamente celebrado e
intensamente vivido. A doação que Jesus faz de Si mesmo no sacramento memorial
da sua paixão, atesta que o êxito da nossa vida está na participação da vida
trinitária, que nos é oferecida n'Ele de forma definitiva e eficaz. A
celebração e a adoração da Eucaristia permitem abeirar-nos do amor de Deus e a
ele aderir pessoalmente até à união com o bem-amado Senhor. A oferta da nossa
vida, a comunhão com a comunidade inteira dos crentes e a solidariedade com
todo o homem são aspectos imprescindíveis da logiké latreía, ou seja, do
culto espiritual, santo e agradável a Deus (Rm 12, 1), no qual toda a
nossa realidade humana concreta é transformada para glória de Deus. Convido,
pois, todos os pastores a prestarem a máxima atenção à promoção duma
espiritualidade cristã autenticamente eucarística. Os presbíteros, os diáconos
e todos aqueles que exercem um ministério eucarístico possam sempre tirar
destes mesmos serviços, realizados com solicitude e constante preparação, força
e estímulo para o seu caminho pessoal e comunitário de santificação. Exorto
todos os leigos, e as famílias em particular, a encontrarem continuamente no sacramento
do amor de Cristo a energia de que precisam para transformar a própria vida num
sinal autêntico da presença do Senhor ressuscitado. Peço a todos os consagrados
e consagradas para manifestarem, com a própria existência eucarística, o esplendor
e a beleza de pertencer totalmente ao Senhor.
95. No início do século IV, quando o culto cristão era ainda
proibido pelas autoridades imperiais, alguns cristãos do norte de África, que
se sentiam obrigados a celebrar o dia do Senhor, desafiaram tal proibição. Foram
martirizados enquanto declaravam que não lhes era possível viver sem a
Eucaristia, alimento do Senhor: « Sine dominico non possumus – sem o
domingo, não podemos viver ».(252) Estes mártires de Abitinas, juntamente com
muitos outros santos e beatos que fizeram da Eucaristia o centro da sua vida,
intercedam por nós e nos ensinem a fidelidade ao encontro com Cristo
ressuscitado! Também nós não podemos viver sem participar no sacramento da
nossa salvação e desejamos ser iuxta dominicam viventes, isto é, traduzir
na vida o que celebramos no dia do Senhor. Com efeito, este é o dia da nossa
libertação definitiva. Então porquê maravilhar-se quando desejamos que cada dia
seja vivido segundo a novidade introduzida por Cristo com o mistério da Eucaristia?
96. Que Maria Santíssima, Virgem Imaculada, arca da nova e
eterna aliança, nos acompanhe neste caminho ao encontro do Senhor que vem!
N'Ela encontramos realizada, na forma mais perfeita, a essência da Igreja. Esta
vê em Maria, « Mulher eucarística » — como A designou o servo de Deus João
Paulo II (253) —, o seu ícone melhor conseguido e contempla-A como modelo
insubstituível de vida eucarística. Por isso, preparando-se para acolher sobre
o altar «verum corpus natum de Maria Virgine – o verdadeiro corpo nascido
da Virgem Maria», o sacerdote, em nome da assembleia litúrgica, proclama com as
palavras do cânone: « Veneramos a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe
do nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo ».(254) O seu nome santo é invocado e
venerado também nos cânones das tradições orientais cristãs. Por sua vez, os
fiéis « recomendam a Maria, Mãe da Igreja, a sua existência e trabalho.
Esforçando-se por ter os mesmos sentimentos que Maria, ajudam toda a comunidade
a viver em oferta viva, agradável ao Pai ».(255) Ela é a Tota Pulchra, a
Toda Formosa, porque n'Ela resplandece o fulgor da glória de Deus. A beleza da
liturgia celeste, que deve reflectir-se também nas nossas assembleias, encontra
n'Ela um espelho fiel. D'Ela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas
e eclesiais para podermos também nós apresentar-nos, segundo a palavra de São
Paulo, « imaculados » perante o Senhor, tal como Ele nos quis desde o princípio
(Col 1, 22; Ef 1, 4).(256)
97. Por intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, o Espírito
Santo acenda em nós o mesmo ardor que experimentaram os discípulos de Emaús (Lc
24, 13-35) e renove na nossa vida o enlevo eucarístico pelo esplendor e a
beleza que refulgem no rito litúrgico, sinal eficaz da própria beleza infinita
do mistério santo de Deus. Os referidos discípulos levantaram-se e voltaram a
toda a pressa para Jerusalém a fim de partilhar a alegria com os irmãos e irmãs
na fé. Com efeito, a verdadeira alegria é reconhecer que o Senhor permanece no
nosso meio, companheiro fiel do nosso caminho; a Eucaristia faz-nos descobrir
que Cristo, morto e ressuscitado, Se manifesta como nosso contemporâneo no
mistério da Igreja, seu corpo. Deste mistério de amor fomos feitos testemunhas.
Os votos que reciprocamente formulamos sejam os de irmos cheios de alegria e
maravilha ao encontro da santíssima Eucaristia, para experimentar e anunciar
aos outros a verdade das palavras com que Jesus Se despediu dos seus
discípulos: « Eu estou sempre convosco, até ao fim dos tempos » (Mt 28,
20).
Dado em Roma, junto de São
Pedro, no dia 22 de Fevereiro — festa da Cátedra de São Pedro — de 2007,
segundo ano de Pontificado.
BENEDICTUS PP. XVI
FONTE: http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/documents/hf_ben-xvi_exh_20070222_sacramentum-caritatis.html
OBS: OS DESTAQUES SÃO NOSSOS.
OBS: OS DESTAQUES SÃO NOSSOS.
Ótimo! Muito bom. Adorei a parte sobre liturgia e beleza. :D
ResponderEliminarCaro Matheus,Salve Maria.
EliminarFico feliz que tenhas gostado,aliás imaginei que ias gostar mesmo principalmente porque neste documento fala de fato sobre Liturgia e claro, sobre a Santa Missa em Latim. é um ótimo documento, sem dúvida.
Tenhas um santo dia, e Obrigado por acessar o nosso blog!
Ad Majorem Dei Gloriam,
EDGAR LEANDRO DA SILVA
Gostei muito do conteúdo muito bom mesmo. No meu caso esta me ajudando
ResponderEliminarMuito para que eu possa forma minhas pregação.
Prezado ou Prezada,"X",Salve Maria!
EliminarFico feliz que tenhas gostado do conteúdo de nosso blog,e que o mesmo esteja lhe ajudando em seu Apostolado.Não deixe de acessar semanalmente o nosso blog,de Dialogar conosco e de participar de Nossas Campanhas.
Um abraço,
Ad Majorem Dei Gloriam,
EDGAR LEANDRO DA SILVA