Veneráveis
Irmãos no Episcopado,
saúde e Bênção Apostólica!
O ESPLENDOR DA VERDADE brilha em todas as obras do Criador,
particularmente no homem criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,
26): a verdade ilumina a inteligência e modela a liberdade do homem, que, deste
modo, é levado a conhecer e a amar o Senhor. Por isso, reza o salmista: «Fazei
brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face» (Sal 4, 7).
INTRODUÇÃO
Jesus Cristo, luz verdadeira que a todo o homem ilumina
1. Chamados à salvação pela fé em Jesus Cristo, «luz verdadeira que a
todo o homem ilumina» (Jo 1, 9), os homens tornam-se «luz no
Senhor» e «filhos da luz» (Ef 5, 8) e santificam-se pela
«obediência à verdade» (1 Pd 1, 22).
Esta obediência nem sempre é fácil. Na sequência daquele misterioso
pecado de origem, cometido por instigação de Satanás, que é «mentiroso e pai da
mentira» (Jo 8, 44), o homem é continuamente tentado a desviar o
seu olhar do Deus vivo e verdadeiro para o dirigir aos ídolos (cf. 1
Ts 1, 9), trocando «a verdade de Deus pela mentira» (Rm 1,
25); então também a sua capacidade para conhecer a verdade fica ofuscada, e
enfraquecida a sua vontade para se submeter a ela. E assim, abandonando-se ao
relativismo e ao cepticismo (cf. Jo 18, 38), ele vai à procura
de uma ilusória liberdade fora da própria verdade.
Mas nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente do homem
a luz de Deus Criador. Nas profundezas do seu coração, permanece sempre a
nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu
conhecimento. Prova-o, de modo eloquente, a incansável pesquisa do homem em
todas as áreas e sectores. Demonstra-o ainda mais a sua busca do sentido
da vida. O progresso da ciência e da técnica, esplêndido testemunho da
capacidade da inteligência e da tenacidade dos homens, não dispensa a
humanidade de pôr-se as questões religiosas últimas, mas antes, estimula-a a
enfrentar as lutas mais dolorosas e decisivas, que são as do coração e da
consciência moral.
2. Nenhum homem pode esquivar-se às perguntas fundamentais: Que
devo fazer? Como discernir o bem do mal? A resposta somente é possível
graças ao esplendor da verdade que brilha no íntimo do espírito humano, como
atesta o salmista: «Muitos dizem: "Quem nos fará ver o bem?" Fazei
brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face» (Sal 4, 7).
A luz da face de Deus resplandece em toda a sua beleza no rosto de Jesus
Cristo, «imagem do Deus invisível» (Col 1, 15), «resplendor da sua
glória» (Heb 1, 3), «cheio de graça e de verdade» (Jo 1,
14): Ele é «o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). Por isso, a
resposta decisiva a cada interrogação do homem, e particularmente às suas
questões religiosas e morais, é dada por Jesus Cristo, mais, é o próprio Jesus
Cristo, como lembra o Concílio Vaticano II: «Na realidade, o mistério
do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo Encarnado. Efectivamente,
Adão, o primeiro homem, era figura do que havia de vir, Cristo Senhor. Cristo,
novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e do seu amor, manifesta
perfeitamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a sublimidade da sua
vocação».[1] Jesus
Cristo, «luz dos povos», ilumina a face da sua Igreja, que Ele envia pelo mundo
inteiro a anunciar o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16,
15).[2] Assim
a Igreja, Povo de Deus no meio das nações, [3] ao
mesmo tempo que permanece atenta aos novos desafios da história e aos esforços
que os homens realizam na procura do sentido da vida, oferece a todos a
resposta que provém da verdade de Jesus Cristo e do seu Evangelho. Na Igreja,
permanece sempre viva a consciência do seu «dever de investigar a todo o
momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho, para que assim
possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos
homens acerca do sentido da vida presente e da futura e da relação entre
ambas».[4]
3. Os Pastores da Igreja, em comunhão com o Sucessor de Pedro, estão
solidários com os fiéis neste esforço, acompanham e guiam-nos com o seu
magistério, encontrando expressões sempre novas de amor e misericórdia para se
dirigirem não só aos crentes, mas a todos os homens de boa vontade. O Concílio
Vaticano II permanece um testemunho extraordinário desta atitude da Igreja que,
«perita em humanidade»,[5] se
põe ao serviço de cada homem e do mundo inteiro. [6]
A Igreja sabe que a instância moral atinge em profundidade cada homem,
compromete a todos, inclusive aqueles que não conhecem Cristo e o Seu
Evangelho, ou nem mesmo a Deus. Ela sabe que precisamente sobre o
caminho da vida moral se abre para todos
a via da salvação, como
claramente o recordou o Concílio Vaticano II ao escrever: «Aqueles que
ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a
Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a
Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar
a salvação eterna». E acrescenta: «Nem a divina Providência nega os
auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao
conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por
levar uma vida recta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado
pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que
ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida».[7]
O objecto da presente Encíclica
4. Sempre, mas sobretudo ao longo dos dois últimos séculos, os Sumos
Pontífices, quer pessoalmente quer em conjunto com o Colégio Episcopal,
desenvolveram e propuseram um ensinamento moral relativo aos múltiplos e diferentes
âmbitos da vida humana. Em nome e com a autoridade de Jesus Cristo,
eles exortaram, denunciaram, explicaram; fiéis à sua missão, nas lutas a favor
do homem, confirmaram, ampararam, consolaram; com a garantia da assistência do
Espírito da verdade, contribuíram para uma melhor compreensão das exigências
morais nos âmbitos da sexualidade humana, da família, da vida social, económica
e política. O seu ensinamento constitui um contínuo aprofundamento do conhecimento
moral, dentro da tradição da Igreja e da história da humanidade. [8]
Hoje, porém, parece necessário reflectir sobre o conjunto do
ensinamento moral da Igreja, com
a finalidade concreta de evocar algumas verdades fundamentais da doutrina
católica que, no actual contexto, correm o risco de serem deformadas ou
negadas. De facto, formou-se uma nova situação dentro da própria
comunidade cristã, que experimentou a difusão de múltiplas dúvidas e
objecções de ordem humana e psicológica, social e cultural, religiosa e até
mesmo teológica, a propósito dos ensinamentos morais da Igreja. Não se trata já
de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e
sistemática do património moral, baseada sobre determinadas concepções
antropológicas e éticas. Na sua raiz, está a influência, mais ou menos velada
de correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua
relação essencial e constitutiva com a verdade. Rejeita-se, assim, a doutrina
tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade
dos seus preceitos; consideram-se
simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja; pensa-se
que o próprio Magistério possa intervir em matéria moral, somente para «exortar
as consciências» e «propor os valores», nos quais depois cada um inspirará, de
forma autónoma, as decisões e as escolhas da vida.
Em particular, deve-se ressaltar a discordância entre a resposta
tradicional da Igreja e algumas posições teológicas, difundidas mesmo
nos Seminários e Faculdades eclesiásticas, sobre questões da máxima
importância para a Igreja e a vida de fé dos cristãos, bem como para a
própria convivência humana. Em particular, pergunta-se: os mandamentos de Deus,
que estão escritos no coração do homem e fazem parte da Aliança, têm
verdadeiramente a capacidade de iluminar as opções quotidianas dos indivíduos e
das sociedades inteiras? É possível obedecer a Deus e, portanto, amar a Deus e
ao próximo, sem respeitar em todas as circunstâncias estes mandamentos?
Generalizada se encontra também a opinião que põe em dúvida o nexo intrínseco e
indivisível que une entre si a fé e a moral, como se a pertença à Igreja e a
sua unidade interna se devessem decidir unicamente em relação à fé, ao passo
que se poderia tolerar no âmbito moral um pluralismo de opiniões e de
comportamentos, deixados ao juízo da consciência subjectiva individual ou à
diversidade dos contextos sociais e culturais.
5. Neste contexto, ainda agora actual, amadureceu em mim a decisão de
escrever — como já anunciei na Carta Apostólica Spiritus Domini, publicada
no dia 1 de Agosto de 1987, por ocasião do segundo centenário da morte de S.
Afonso Maria de Ligório — uma Encíclica destinada a tratar «mais ampla e
profundamente das questões relativas aos próprios fundamentos da teologia
moral» [9],
fundamentos esses que são atacados por algumas tendências actuais.
Dirijo-me a vós, veneráveis Irmãos no Episcopado, que partilhais comigo
a responsabilidade de guardar a «sã doutrina» (2 Tim 4, 3), com a
intenção de precisar alguns aspectos doutrinais que se revelam
decisivos para debelar aquela que constitui, sem dúvida, uma verdadeira
crise, tão graves são as dificuldades que acarreta à vida moral dos
fiéis e à comunhão da Igreja, bem como a uma convivência social justa e
solidária.
Se esta Encíclica, há muito esperada, é publicada somente agora, é
porque pareceu conveniente fazê-la preceder do Catecismo da Igreja Católica, que contém uma exposição completa e
sistemática da doutrina moral cristã. O Catecismo apresenta a vida moral dos
crentes, nos seus fundamentos e múltiplos conteúdos, como vida dos «filhos de
Deus»: «Reconhecendo na fé a sua nova dignidade, os cristãos são chamados a
levar desde agora, uma "vida digna do Evangelho de Cristo" (Fil 1,
27). Pelos sacramentos e pela oração, recebem a graça de Cristo e os dons do
Seu Espírito, que disso os tornaram capazes».[10] Portanto,
ao remeter para o Catecismo «como texto de referência, seguro e autêntico, para
o ensino da doutrina católica»,[11] a
Encíclica limitar-se-á a afrontar algumas questões fundamentais do
ensinamento moral da Igreja, sob a forma de um necessário
discernimento sobre problemas controversos entre os estudiosos da ética e da
teologia moral. Este é o objecto específico da actual Encíclica, que pretende
expor, sobre os problemas em discussão, as razões de um ensinamento moral
baseado na Sagrada Escritura e na viva Tradição apostólica, [12] pondo
em evidência, ao mesmo tempo, os pressupostos e as consequências das
contestações que atingem um tal ensinamento.
CAPÍTULO I
«MESTRE, QUE DEVO FAZER DE BOM...?» (MT 19, 16)
Jesus Cristo e a resposta à questão moral
«Aproximou-se d'Ele um jovem... » (Mt 19, 16)
6. O diálogo de Jesus com o jovem rico, narrado no
capítulo 19 do Evangelho de S. Mateus, pode constituir uma válida pista para
ouvir novamente, de um modo vivo e incisivo, o Seu ensinamento
moral: «Aproximou-se d'Ele um jovem e disse-Lhe: "Mestre, que
devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?". Jesus respondeu-lhe:
"Por que me interrogas sobre o que é bom? Um só é bom. Mas se queres
entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos". "Quais?" —
perguntou-Lhe. Replicou Jesus: "Não matarás; não cometerás adultério; não
roubarás; não levantarás falso testemunho; honra teu pai e tua mãe; e ainda,
amarás o teu próximo como a ti mesmo". Disse-Lhe o jovem: "Tenho
cumprido tudo isto; que me falta ainda?" Disse-lhe Jesus: "Se queres
ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres, e
terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-Me"» (Mt 19,
16-21). [13]
7. «Aproximou-se d'Ele um jovem... ». No jovem, que o
Evangelho de Mateus deixa sem nome, podemos reconhecer cada homem que, conscientemente
ou não, se aproxima de Cristo, Redentor do homem, e lhe coloca a
questão moral. Para o jovem, mais do que uma pergunta sobre as normas
a observar, trata-se de uma questão de plenitude de significado para a
vida. Esta é efectivamente a aspiração que está no âmago de cada
decisão e de cada acção humana, a inquietude secreta e o impulso íntimo que
movem a liberdade. Esta pergunta é, em última análise, um apelo ao Bem absoluto
que nos atrai e chama para Si, é o eco de uma vocação de Deus, origem e fim da
vida do homem. Precisamente nesta perspectiva, o Concílio Vaticano II convidou
a aperfeiçoar a teologia moral de modo que a sua exposição ilustre a sublime
vocação que os fiéis receberam em Cristo, [14] única
resposta que sacia plenamente o anseio do seu coração humano.
Para que os homens possam realizar este «encontro» com Cristo, Deus quis
a sua Igreja. Ela, de facto, «deseja servir esta
única finalidade: que cada homem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo
possa percorrer juntamente com cada homem o caminho da vida».[15]
«Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?» (Mt 19, 16)
8. Do fundo do coração surge a pergunta que o jovem rico dirige a Jesus
de Nazaré, uma pergunta essencial e irresistível na vida de cada homem:
refere-se, de facto, ao bem moral a praticar e à vida eterna. O interlocutor de
Jesus intui que existe um nexo entre o bem moral e a plena realização do
próprio destino. Trata-se de um piedoso israelita que cresceu, por assim dizer,
à sombra da Lei do Senhor. Podemos imaginar que, se faz esta pergunta a Jesus,
não é por ignorar a resposta contida na Lei. É mais provável que o fascínio da
pessoa de Jesus tenha feito surgir nele novas interrogações acerca do bem
moral. Sente a exigência de se confrontar com Aquele que tinha começado a sua
pregação com este novo e decisivo anúncio: «Completou-se o tempo e o Reino de
Deus está perto: convertei-vos e crede no Evangelho» (Mc 1, 15).
Impõe-se
que o homem de hoje se volte novamente para Cristo, a fim de obter d'Ele a
resposta sobre o que é bem e o que é mal. Ele é
o Mestre, o Ressuscitado que possui em Si a vida e que sempre está presente na
sua Igreja e no mundo. É Ele que desvenda aos fiéis o livro das Escrituras e,
revelando plenamente a vontade do Pai, ensina a verdade sobre o agir moral.
Cristo, fonte e vértice da economia da salvação, Alfa e Ómega da história
humana (cf. Ap 1, 8; 21, 6; 22, 13), revela a condição do
homem e a sua vocação integral. Por isso, «o homem que quiser compreender-se a
si mesmo profundamente — não apenas segundo imediatos, parciais, não raro
superficiais e até mesmo só aparentes critérios e medidas do próprio ser —
deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a
sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Deve, por assim dizer,
entrar n'Ele com tudo o que é em si mesmo, deve "apropriar-se" e
assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para se encontrar a si
mesmo. Se no homem se actuar este processo profundo, então ele produz frutos,
não somente de adoração de Deus, mas também de profunda maravilha perante si
próprio».[16]
Se quisermos então penetrar no âmago da moral evangélica e identificar o
seu conteúdo profundo e imutável, devemos procurar diligentemente o sentido da
questão posta pelo jovem rico do Evangelho e, mais ainda, o sentido da resposta
de Jesus, deixando-nos guiar por Ele. De facto, Jesus, com delicado tacto
pedagógico, responde conduzindo o jovem quase pela mão, passo a passo, em
direcção à verdade plena.
«Um só é bom» (Mt 19,
17)
9. Jesus diz: «Por que me interrogas sobre o que é bom? Um só é bom. Mas
se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19,
17). Na versão dos evangelistas Marcos e Lucas, a pergunta aparece assim
formulada: «Por que Me chamas bom? Ninguém é bom, senão só Deus» (Mc 10,
18; cf. Lc 18, 19).
Antes de responder à pergunta, Jesus quer que o jovem se esclareça a si
próprio sobre o motivo por que O interroga. O «bom Mestre» indica ao seu
interlocutor — e a todos nós — que a resposta à questão «que devo fazer de bom
para alcançar a vida eterna?», apenas pode ser encontrada dirigindo a mente e o
coração para Aquele que «só é bom»: «Ninguém é bom, senão só Deus» (Mc 10,
18; cf. Lc 18, 19). Só Deus pode responder à questão
sobre o bem, porque Ele é o Bem.
Interrogar-se sobre o bem, com
efeito, significa dirigir-se em última análise a Deus, plenitude
da bondade. Jesus mostra que a pergunta do jovem é, na verdade, uma pergunta
religiosa, e que a bondade que atrai e simultaneamente vincula o
homem, tem a sua fonte em Deus, mais, é o próprio Deus, o único que é digno de
ser amado «com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente» (Mt 22,
37), Aquele que é a fonte da felicidade do homem. Jesus reconduz a questão da
acção moralmente boa às suas raízes religiosas, ao reconhecimento de Deus,
única bondade, plenitude da vida, termo último do agir humano, felicidade
perfeita.
10. A Igreja, instruída pelas palavras do Mestre, crê que o homem, feito
à imagem do Criador, redimido pelo Sangue de Cristo e santificado pela presença
do Espírito Santo, tem como fim último da sua vida ser
«para louvor da glória» de Deus (cf. Ef 1, 12),
vivendo de modo que cada uma das suas acções irradie o Seu esplendor.
«Conhece-te, pois, a ti mesma, ó alma bela: tu és a imagem de
Deus — escreve S. Ambrósio —. Conhece-te a ti mesmo, ó homem: tu és a
glória de Deus (1 Cor 11, 7). Escuta de que modo és a sua glória.
Diz o profeta: Admirável se tornou a Vossa ciência que irradia de
mim (Sal 138, 6), ou seja: nas minhas obras, a vossa
majestade é mais admirável, a vossa sabedoria é exaltada na mente do homem. Ao
debruçar-me sobre mim mesmo, que Vós perscrutais até nos pensamentos secretos e
nos íntimos sentimentos, eu reconheço os mistérios da vossa ciência. Conhece-te,
pois, a ti mesmo, ó homem, quão grande és, e vigia sobre ti... ».[17]
Aquilo que o homem é e deve fazer, manifesta-se no momento em que Deus
se revela a Si próprio. O Decálogo,
com efeito, baseia-se sobre estas palavras: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te
fiz sair do Egipto, de uma casa de escravidão. Não terás outro deus além de
mim» (Êx 20, 2-3). Nas «dez palavras» da Aliança com Israel e em
toda a Lei, Deus dá-se a conhecer e identifica-se como Aquele que «só é bom»;
como Aquele que, não obstante o pecado do homem, continua sendo o «modelo» do
agir moral, conforme o Seu próprio apelo: «Sede santos, porque Eu, o Senhor,
vosso Deus, sou santo» (Lv 19, 2); como Aquele que, fiel ao Seu
amor pelo homem, lhe dá a Sua Lei (cf. Êx 19, 9-24; 20,
18-21), para restabelecer a harmonia original com o Criador e com toda a
criação, e mais ainda, para introduzi-lo no Seu amor: «Caminharei no meio de
vós, serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo» (Lv 26, 12).
A vida moral apresenta-se como a resposta devida às iniciativas gratuitas que o amor de Deus multiplica em favor
do homem. É uma resposta de amor, segundo o enunciado que
o Deuteronómio faz do mandamento fundamental: «Escuta, ó
Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com
todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes
mandamentos que hoje te imponho serão gravados no teu coração. Ensiná- -los-ás
aos teus filhos» (Dt 6, 4-7). Assim a vida moral, implicada na
gratuidade do amor de Deus, é chamada a reflectir a Sua glória: «Para quem ama
a Deus, basta-lhe agradar Àquele que ama, uma vez que não se deve procurar
qualquer outra recompensa maior do que o próprio amor; a caridade, de facto,
provém de Deus de modo tal que o próprio Deus é caridade».[18]
11. A afirmação de que «um só é bom» reconduz-nos assim à «primeira
tábua» dos mandamentos, que convida a reconhecer Deus como Senhor único e
absoluto e só a Ele prestar culto, por causa da Sua santidade infinita
(cf. Êx 20, 2-11). O bem consiste em pertencer a Deus,
obedecer-Lhe, caminhar humildemente com Ele, praticando a justiça e
amando a piedade (cf. Miq 6, 8). Reconhecer o Senhor
como Deus é o núcleo fundamental, o coração da Lei, do qual derivam e
para o qual se ordenam os preceitos particulares. É através da moral dos
mandamentos que se manifesta a pertença do povo de Israel ao Senhor, porque só
Deus é Aquele que é bom. Este é o testemunho da Sagrada Escritura, permeada, em
cada uma das suas páginas, pela viva percepção da absoluta santidade de Deus:
«Santo, Santo, Santo é o Senhor dos exércitos» (Is 6, 3).
Mas, se só Deus é o Bem, nenhum esforço humano, nem sequer a observância
mais rigorosa dos mandamentos, consegue «cumprir» a Lei, isto é, reconhecer o Senhor
como Deus e prestar-Lhe a adoração que só a Ele é devida (cf. Mt 4,
10). O «cumprimento» pode vir apenas de um dom de Deus: é a
oferta de uma participação na Bondade divina que se revela e comunica em Jesus,
Aquele a quem o jovem rico designa com os termos «bom Mestre» (Mc 10,
17; Lc 18, 18). Aquilo que por agora o jovem talvez consegue
somente intuir, ser-lhe-á no fim plenamente revelado pelo próprio Jesus no
convite: «Vem e segue-Me» (Mt 19, 21).
«Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19, 17)
12. Só Deus pode responder à pergunta sobre o bem, porque Ele é o Bem.
Mas Deus respondeu já a esta pergunta: fê-lo, criando o homem e
ordenando-o com sabedoria e amor ao seu fim, mediante a lei inscrita
no seu coração (cf. Rm 2, 15), a «lei natural». Esta «não é
mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela,
conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei,
Deus as concedeu na criação».[19] Fê-lo,
depois, na história de Israel, particularmente com as «dez
palavras», ou seja, os mandamentos do Sinai, pelos quais Ele
fundou a existência do povo da Aliança (cf. Êx 24) e chamou-o
a ser sua «propriedade entre todos os povos», «uma nação santa» (Êx 19,
5-6), que fizesse resplandecer a Sua santidade no meio de todas as nações
(cf. Sab 18, 4; Ez 20, 41). O dom do Decálogo
é promessa e sinal da Nova Aliança, quando a lei for nova e
definitivamente escrita no coração do homem (cf. Jer 31,
31-34), substituindo a lei do pecado, que aquele coração tinha deturpado
(cf. Jer 17, 1). Então será dado «um coração novo», porque
nele habitará «um espírito novo», o Espírito de Deus (cf. Ez 36,
24-28). [20]
Por isso, depois do importante esclarecimento «Um só é bom», Jesus
responde ao jovem: «Se queres entrar na vida eterna, guarda os mandamentos» (Mt 19,
17). Deste modo, enuncia-se uma estreita relação entre a vida eterna e
a obediência aos mandamentos de Deus: são estes que indicam ao homem o
caminho da vida e a ela conduzem. Pela boca de Jesus, novo Moisés, são
entregues novamente aos homens os mandamentos do Decálogo; Ele mesmo os
confirma definitivamente e no-los propõe como caminho e condição de
salvação. O mandamento está unido a uma promessa: o objecto da
promessa, na Antiga Aliança, era a posse de uma terra onde o povo pudesse viver
uma existência em liberdade e conforme à justiça (cf. Dt 6,
20-25); na Nova Aliança, o objecto da promessa é o «reino dos céus», como Jesus
afirma ao início do «Discurso da Montanha» — discurso que contém a formulação
mais ampla e completa da Nova Lei (cf. Mt 5-7) —, em conexão
evidente com o Decálogo confiado por Deus a Moisés no monte Sinai. À realidade
mesma do Reino se refere a expressão «vida eterna», que é participação na
própria vida de Deus: só depois da morte se realizará em toda a sua perfeição,
mas, pela fé, ela já é agora luz de verdade, fonte de sentido para a vida,
participação inicial da sua plenitude no seguimento de Cristo. De facto, Jesus diz aos discípulos, depois
do encontro com o jovem rico: «Todo aquele que tiver deixado casas, irmãos,
irmãs, pai, mãe, mulher, filhos ou terras por causa do Meu nome, receberá cem
vezes mais e terá por herança a vida eterna» (Mt 19, 29).
13. A resposta de Jesus não basta ao jovem, que insiste interrogando o
Mestre sobre os mandamentos a observar: «"Quais?" — perguntou ele» (Mt 19,
18). Pede o que deve fazer na vida para pôr em evidência o reconhecimento da
santidade de Deus. Depois de ter orientado o olhar do jovem para Deus, Jesus
lembra- -lhe os mandamentos do Decálogo que se referem ao próximo: «Replicou
Jesus: "Não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não levantarás
falso testemunho; honra teu pai e tua mãe; e ainda, amarás o teu próximo como a
ti mesmo"» (Mt 19, 18-19).
Pelo contexto do diálogo e especialmente pela comparação do texto de
Mateus com as passagens paralelas de Marcos e de Lucas, vê-se que Jesus não
pretende enumerar todos e cada um dos mandamentos necessários para «entrar na
vida», mas sobretudo, remeter o jovem para a «centralidade» do Decálogo relativamente
a qualquer outro preceito, como interpretação daquilo que significa para o
homem «Eu sou o Senhor, teu Deus». De qualquer modo, não podem escapar à nossa
atenção os mandamentos da Lei que o Senhor Jesus lembra ao jovem: são alguns
que pertencem à designada «segunda Tábua» do Decálogo, cujo resumo (cf. Rm 13,
8-10) e fundamento é o mandamento do amor ao próximo: «Ama o
teu próximo como a ti mesmo» (Mt 19, 19; cf. Mc 12,
31). Neste mandamento, exprime-se precisamente a singular dignidade da
pessoa humana, que é «a única criatura na terra a ser querida por Deus
por si mesma».[21] De
facto, os diversos mandamentos do Decálogo não são mais do que a refracção do
único mandamento referente ao bem da pessoa, ao nível dos múltiplos bens que
revelam a sua identidade de ser espiritual e corpóreo, em relação com Deus, com
o próximo e com o mundo das coisas. Como
lemos no Catecismo da Igreja Católica, «os Dez Mandamentos fazem parte
da revelação de Deus. Mas, ao mesmo tempo, ensinam-nos a
verdadeira humanidade do homem. Põem em relevo os deveres essenciais e, por
conseguinte, indirectamente, os direitos fundamentais inerentes à natureza da
pessoa humana».[22]
Os mandamentos, lembrados por Jesus ao jovem interlocutor, destinam-se a
tutelar o bem da pessoa, imagem de Deus, mediante a protecção
dos seus bens. «Não matarás, não cometerás adultério, não
roubarás, não levantarás falso testemunho» são normas morais formuladas em
termos de proibição. Os preceitos negativos exprimem, com uma força particular,
a exigência irreprimível de proteger a vida humana, a comunhão das pessoas no
matrimónio, a propriedade privada, a veracidade e a boa fama.
Os mandamentos representam, portanto, a condição básica para o amor ao
próximo; e são, ao mesmo tempo, a sua confirmação. Constituem a primeira
etapa necessária no caminho para a liberdade, o seu início: «A primeira liberdade — escreve S. Agostinho
— consiste em estar isento de crimes (...) como são o homicídio, o adultério, a
fornicação, o furto, a fraude, o sacrilégio e assim por diante. Quando alguém
principia a não ter estes crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a
levantar a cabeça para a liberdade, mas isto é apenas o início da liberdade,
não a liberdade perfeita... ».[23]
14. Certamente isto não significa que Jesus queira dar precedência ao
amor do próximo ou até separá-lo do amor de Deus. Testemunha-o o seu diálogo
com o doutor da Lei: a este, que faz uma pergunta muito semelhante à do jovem,
Jesus recorda-lhe os dois mandamentos do amor de Deus e do amor do
próximo (cf. Lc 10, 25-27), e lembra-lhe que somente
o seu cumprimento conduz à vida eterna: «Faz isso e viverás» (Lc 10,
28). No entanto, é significativo que seja precisamente o segundo destes
mandamentos a suscitar a curiosidade e a pergunta do doutor da Lei: «E quem é o
meu próximo?» (Lc 10, 29). O Mestre responde com a parábola do bom
Samaritano, a parábola-chave para a plena compreensão do mandamento do amor ao
próximo (cf. Lc 10, 30-37).
Os dois mandamentos, de que «depende toda a Lei e os Profetas» (Mt 22,
40), estão profundamente unidos entre si e compenetram-se reciprocamente. A
sua unidade indivisível é testemunhada por Jesus com as palavras e a
vida: a sua missão culmina na Cruz que redime (cf. Jo 3,
14-15), sinal do Seu amor indiviso ao Pai e à humanidade (cf. Jo 13,
1).
Tanto o Antigo como o Novo Testamento afirmam explicitamente que sem
o amor ao próximo, concretizado na observância dos mandamentos, não
é possível o autêntico amor a Deus. S. João escreve-o com um vigor
extraordinário: «Se alguém disser: "Eu amo a Deus", mas odiar a seu
irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão, ao qual vê, como pode amar a
Deus, que não vê?» (1 Jo 4, 20). O evangelista faz-se eco da
pregação moral de Cristo, expressa de um modo admirável e inequívoco na
parábola do bom Samaritano (cf. Lc 10, 30-37) e no «discurso»
do juízo final (cf. Mt 25, 31-46).
15. No «Discurso da Montanha» que constitui a magna charta da
moral evangélica, [24] Jesus
diz: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-la, mas
completá-la» (Mt 5, 17). Cristo é a chave das Escrituras: «Vós
esquadrinhais as Escrituras: elas dão testemunho de Mim» (cf. Jo 5,
39); é o centro da economia da salvação, a recapitulação do Antigo e do Novo
Testamento, das promessas da Lei e do seu cumprimento no Evangelho; é o elo
vivo e eterno entre a Antiga e a Nova Aliança. Ao comentar a afirmação de Paulo
«o termo da lei é Cristo» (Rm 10, 4), Santo Ambrósio escreve: «Fim,
não enquanto carência, mas como plenitude da lei: esta realiza-se em Cristo (plenitudo
legis in Christo est), uma vez que Ele veio, não para ab-rogar a lei, mas
para levá-la a cumprimento. Da mesma forma que há um Antigo Testamento, mas a
verdade total está contida dentro do Novo Testamento, assim se dá com a lei:
aquela que foi dada através de Moisés é figura da verdadeira lei. Portanto, a
lei mosaica é cópia da verdade».[25]
Jesus leva a cumprimento os mandamentos de Deus, nomeadamente o mandamento do amor ao próximo, interiorizando e
radicalizando as suas exigências: o amor ao próximo nasce de um
coração que ama, e, precisamente porque ama, está disposto a
viver as mais elevadas exigências. Jesus mostra que os
mandamentos não devem ser entendidos como um limite mínimo a não ultrapassar,
mas antes, como uma estrada aberta para um caminho moral e espiritual de
perfeição, cuja alma é o amor (cf. Col 3, 14). Assim, o
mandamento «Não matarás» torna-se apelo a um amor solícito que tutela e promove
a vida do próximo; o preceito que proíbe o adultério torna-se convite a um
olhar puro, capaz de respeitar o significado esponsal do corpo: «Ouvistes que
foi dito aos antigos: Não matarás; aquele que matar está
sujeito a ser condenado. Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar
contra o seu irmão será réu perante o tribunal (...) Ouvistes que foi dito: Não
cometerás adultério; eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar
para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5,
21-22.27-28). O próprio Jesus é o «cumprimento» vivo da Lei, visto
que Ele realiza o seu significado autêntico com o dom total de Si: Ele
mesmo se torna Lei viva e pessoal que convida ao seu seguimento, dá,
mediante o Espírito, a graça de partilhar a Sua própria vida e amor, e oferece
a força para O testemunhar nas opções e nas obras (cf. Jo 13,
34-35).
«Se queres ser perfeito» (Mt 19, 21)
16. A resposta sobre os mandamentos não satisfaz o jovem, que pergunta a
Jesus: «Tenho cumprido tudo isto; que me falta ainda? » (Mt 19,
20). Não é fácil dizer em sã consciência: «tenho cumprido tudo isto», quando se
começa a compreender o alcance efectivo das exigências contidas na Lei de Deus.
E contudo, mesmo sendo-lhe possível dar semelhante resposta, mesmo tendo
seguido o ideal moral com seriedade e generosidade desde a sua infância, o
jovem rico sabe que está ainda longe da meta: diante da pessoa de Jesus,
percebe que ainda lhe falta alguma coisa. É à consciência desta insuficiência
que se dirige Jesus, na Sua última resposta: aproveitando a nostalgia
de uma plenitude que supere a interpretação legalista dos mandamentos, o
bom Mestre convida o jovem a tomar a estrada da perfeição: «Se
queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres,
e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-Me» (Mt 19, 21).
Tal como já sucedeu na passagem precedente da resposta de Jesus, também
esta deve ser lida e interpretada no contexto de toda a mensagem moral do
Evangelho e, especialmente, no contexto do Discurso da Montanha, das
bem-aventuranças (cf. Mt 5, 3-12), a primeira das quais é
precisamente a bem-aventurança dos pobres, dos «pobres em espírito», como
esclarece S. Mateus (Mt 5, 3), ou seja, dos humildes. Neste sentido,
pode-se dizer que também as bem-aventuranças entram no espaço aberto pela
resposta de Jesus à pergunta do jovem: «Que devo fazer de bom para alcançar a
vida eterna?». De facto, cada bem-aventurança promete, desde uma particular
perspectiva, precisamente aquele «bem» que abre o homem à vida eterna, mais,
que é a própria vida eterna.
As bem-aventuranças não têm
propriamente por objecto normas particulares de comportamento, mas falam de
atitudes e disposições de fundo da existência e, portanto, não coincidem
exactamente com os mandamentos. Por outro lado, não há
separação ou oposição entre as bem-aventuranças e os mandamentos:
ambos se referem ao bem, à vida eterna. O Discurso da Montanha começa pelo
anúncio das bem-aventuranças, mas contém também a referência aos mandamentos
(cf. Mt 5, 20-48). Ao mesmo tempo, esse Discurso mostra a
abertura e a orientação dos mandamentos para a perspectiva da perfeição,
própria das bem-aventuranças. Estas são, antes de tudo, promessas, das
quais de modo indirecto derivam também indicações normativas para
a vida moral. Na sua profundidade original, são uma espécie de auto-retrato
de Cristo e, precisamente por isso, constituem convites ao Seu
seguimento e à comunhão de vida com Ele. [26]
17. Não sabemos até que ponto o jovem do Evangelho tenha compreendido o
conteúdo profundo e exigente da primeira resposta dada por Jesus: «Se queres
entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos»; certo é, porém, que o
compromisso professado pelo jovem a respeito de todas as exigências morais dos
mandamentos, constitui o terreno indispensável onde poderá germinar e
amadurecer o desejo da perfeição, ou seja, da realização do seu sentido mais
amplo no seguimento de Cristo. O diálogo de Jesus com o jovem ajuda-nos a
identificar as condições necessárias para o crescimento moral do homem
chamado à perfeição: o jovem, que observou todos os mandamentos,
mostra-se incapaz de, unicamente com as suas forças, dar o passo seguinte. Para
o conseguir, são precisos uma liberdade humana amadurecida: «Se queres», e o
dom divino da graça: «Vem, e segue-Me».
A perfeição exige aquela maturidade no dom de si, a que é chamada a
liberdade do homem. Jesus indica ao jovem os
mandamentos como a primeira condição imprescindível para obter a vida eterna; o
abandono de tudo quanto o jovem possui e o seguimento do Senhor assumem, pelo
contrário, o carácter de uma proposta: «Se queres... ». A
palavra de Jesus revela a dinâmica particular do crescimento da liberdade em
direcção à sua maturidade e, ao mesmo tempo, comprova a relação
fundamental da liberdade com a lei divina. A liberdade do homem e a
lei de Deus não se opõem, pelo contrário, reclamam-se mutuamente. O discípulo
de Cristo sabe que a sua é uma vocação para a liberdade. «Vós, irmãos, fostes
chamados à liberdade» (Gál 5, 13), proclama com alegria e orgulho o
apóstolo Paulo. Mas logo precisa: «Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto
para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela
caridade» (ibid.). A firmeza com que o Apóstolo se opõe a quem confia a
própria justificação à Lei, nada tem a ver com a «libertação» do homem dos
preceitos, os quais, pelo contrário, estão ao serviço da prática do amor: «Pois
quem ama o próximo cumpre a Lei. Com efeito, o preceito: Não cometerás
adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás e qualquer um dos
outros mandamentos resumem-se nestas palavras: Amarás o próximo como a
ti mesmo» (Rm 13, 8-9). O mesmo S. Agostinho, depois de
ter falado da observância dos mandamentos como sendo a primeira e imperfeita
liberdade, assim continua: «Não é ainda perfeita, por quê? — perguntará alguém.
Porque "sinto nos meus membros uma outra lei em conflito com a lei da
minha razão" (...) Liberdade parcial, parcial escravidão: a liberdade
ainda não é completa, não é ainda pura, não é ainda plena, porque ainda não estamos na eternidade. Conservamos, em parte, a
fraqueza, e, em parte, alcançamos já a liberdade. Todos os nossos pecados foram
destruídos no baptismo, mas porventura desapareceu a fraqueza, depois de ter
sido destruída a iniquidade? Se aquela tivesse desaparecido, viver-se-ia na terra
sem pecado. Quem ousará afirmar isto a não ser o soberbo ou quem é indigno da
misericórdia do libertador? (...) Ora, uma vez que ficou em nós alguma
fraqueza, ouso dizer que, na medida em que servimos a Deus somos livres, mas
somos escravos na medida em que seguimos a lei do pecado».[27]
18. Quem vive «segundo a carne» sente a lei de Deus como um peso, mais,
como uma negação ou, pelo menos, uma restrição da própria liberdade. Ao
contrário, quem é animado pelo amor e «caminha segundo o Espírito» (Gál 5,
16) e deseja servir os outros, encontra na lei de Deus o caminho fundamental e
necessário para praticar o amor, livremente escolhido e vivido. Mais ainda, ele
percebe a urgência interior — uma verdadeira e própria «necessidade», e não já
uma imposição — de não se deter nas exigências mínimas da lei, mas de vivê-las
em toda a sua «plenitude». É um caminho ainda incerto e frágil, enquanto
estivermos na terra, mas tornado possível pela graça que nos outorga a posse da
plena liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8, 21) e, portanto,
de responder na vida moral à sublime vocação de ser «filhos no Filho».
Esta vocação ao amor perfeito não está reservada só para um círculo de
pessoas. O convite «vai, vende tudo o que possuíres, dá o
dinheiro aos pobres» com a promessa «terás um tesouro no céu», dirige-se
a todos, porque é uma radicalização do mandamento do amor ao próximo,
assim como o convite posterior «vem e segue-Me» é a nova forma concreta do
mandamento do amor de Deus. Os mandamentos e o convite de Jesus ao jovem rico
estão ao serviço de uma única e indivisível caridade, que espontaneamente tende
à perfeição, cuja medida é só Deus: «Sede, pois, perfeitos, como é perfeito o
vosso Pai celeste» (Mt 5, 48). No Evangelho de S. Lucas, Jesus
precisa ainda mais o sentido desta perfeição: «Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6,
36).
«Vem e segue-Me» (Mt 19,
21)
19. O caminho e, simultaneamente, o conteúdo desta perfeição consiste
na sequela Christi, no seguir Jesus, depois de ter renunciado
aos próprios bens e a si mesmo. Esta é precisamente a conclusão do diálogo de
Jesus com o jovem: «Depois, vem e segue-Me» (Mt 19, 21). É um
convite, cuja maravilhosa profundidade será plenamente compreendida pelos
discípulos só depois da ressurreição de Cristo, quando o Espírito Santo os
guiar para a verdade total (cf. Jo 16, 13).
É o próprio Jesus que toma a iniciativa, chamando para O seguir. O apelo
é feito, antes de mais, àqueles a quem Ele confia uma missão particular, a
começar pelos Doze; mas vê-se claramente também que ser discípulo de Cristo é a
condição de todo o crente (cf. Act 6, 1). Por isso, seguir Cristo é o fundamento essencial e original da
moral cristã: como o povo de Israel seguia Deus que o
conduzia no deserto rumo à Terra Prometida (cf. Êx 13, 21),
assim o discípulo deve seguir Jesus, para o Qual é atraído pelo próprio Pai
(cf. Jo 6, 44).
Aqui não se trata apenas de dispor-se a ouvir um ensinamento e de
acolher na obediência um mandamento. Trata-se, mais radicalmente, de aderir
à própria pessoa de Cristo, de compartilhar a sua vida e o seu
destino, de participar da sua obediência livre e amorosa à vontade do Pai.
Seguindo, mediante a resposta da fé, Aquele que é a Sabedoria encarnada, o
discípulo de Jesus torna-se verdadeiramente discípulo de Deus (cf. Jo 6,
45). De facto, Jesus é a luz do mundo, a luz da vida (cf. Jo 8,
12); é o pastor que guia e alimenta as ovelhas (cf. Jo 10,
11-16), é o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14, 6), é
Aquele que conduz ao Pai, ao ponto que vê-Lo a Ele, o Filho, é ver o Pai
(cf. Jo 14, 6-10). Portanto, imitar o Filho, «a imagem do Deus
invisível» (Col 1, 15), significa imitar o Pai.
20. Jesus pede para O seguir e imitar pelo caminho do amor, de
um amor que se dá totalmente aos irmãos por amor de Deus: «O meu
mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, como eu vos
amei» (Jo 15, 12). Este «como» exige a imitação de
Jesus, do seu amor, de que o lava-pés é sinal: «Se eu vos lavei os pés, sendo
Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o
exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também» (Jo 13,
14-15). O comportamento de Jesus e a Sua palavra, as Suas acções e os Seus
preceitos constituem a regra moral da vida cristã. De facto, estas suas acções
e, particularmente, a sua paixão e morte na cruz são a revelação viva do Seu
amor pelo Pai e pelos homens. É precisamente este amor que Jesus pede seja
imitado por quantos O seguem. Este é o mandamento «novo»: «Um
novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei,
vós também vos deveis amar uns aos outros. É por isto que todos saberão que
sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13,
34-35).
Este «como» indica também a medida com que Jesus amou,
e com a qual os seus discípulos se devem amar entre si. Depois de ter dito: «O
meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, como eu
vos amei» (Jo 15, 12), Jesus prossegue com as palavras que indicam
o dom sacrifical da sua vida na cruz, como testemunho de um amor «até ao fim» (Jo 13,
1): «Ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13).
Ao chamar o jovem para O seguir pelo caminho da perfeição, Jesus
pede-lhe para ser perfeito no mandamento do amor, no «Seu» mandamento: para
inserir-se no movimento da Sua doação total, para imitar e reviver o próprio
amor do Mestre «bom», d'Aquele que amou «até ao fim». É o que Jesus pede a cada
homem que quer segui-l'O: «Se alguém quiser vir após Mim, renegue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-Me» (Mt 16, 24).
21. Seguir Cristo não é uma imitação exterior, já que
atinge o homem na sua profunda interioridade. Ser discípulo de Jesus
significa tornar-se conforme a Ele, que Se fez servo até ao
dom de Si sobre a cruz (cf. Fil 2, 5-8). Pela fé, Cristo
habita no coração do crente (cf. Ef 3, 17), e assim o
discípulo é assimilado ao seu Senhor e configurado com Ele. Isto é fruto
da graça, da presença operante do Espírito Santo em nós.
Inserido em Cristo, o cristão torna-se membro do Seu Corpo, que
é a Igreja (cf. 1 Cor 12, 13.27). Sob o influxo do
Espírito, o Baptismo configura radicalmente o fiel a Cristo no
mistério pascal da morte e ressurreição, «reveste-o» de Cristo (cf. Gál 3,
27): «Alegremo-nos e agradeçamos — exclama S. Agostinho dirigindo-se aos
baptizados —: tornamo-nos não apenas cristãos, mas Cristo (...). Maravilhai-vos
e regozijai: tornamo-nos Cristo!». [28] Morto
para o pecado, o baptizado recebe a vida nova (cf. Rm 6,
3-11): vivendo para Deus em Jesus Cristo, é chamado a caminhar segundo o
Espírito e a manifestar na vida os seus frutos (cf. Gál 5,
16-25). Depois a participação na Eucaristia, sacramento da
Nova Aliança (cf. 1 Cor 11, 23-29), é o ápice da assimilação a
Cristo, fonte de «vida eterna» (cf. Jo 6, 51-58), princípio e
força do dom total de si mesmo, que Jesus — segundo o testemunho transmitido
por S. Paulo — manda rememorar na celebração e na vida: «Sempre que comerdes
este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha»
(1 Cor 11, 26).
«A Deus tudo é possível» (Mt 19,
26)
22. Amarga é a conclusão do colóquio de Jesus com o jovem rico: «Ao
ouvir isto, o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens» (Mt 19,
22). Não só o homem rico, mas também os próprios discípulos se assustam com o
apelo de Jesus para O seguir, cujas exigências superam as aspirações e as
forças humanas: «Ao ouvir isto, os discípulos ficaram estupefactos e disseram:
"Quem pode então salvar-se?"» (Mt 19, 25). Mas o
Mestre faz apelo ao poder de Deus: «Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível» (Mt 19,
26).
No mesmo capítulo do Evangelho de Mateus (19, 3-10), Jesus, ao
interpretar a Lei mosaica sobre o matrimónio, rejeita o direito de repúdio,
apoiando-se num «princípio» mais original e autêntico que a Lei de Moisés: o
desígnio primordial de Deus sobre o homem, um desígnio para o qual o homem,
após o pecado, se tornou inadequado: «Por causa da dureza do vosso coração,
Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres, mas ao princípio não foi
assim» (Mt 19, 8). A chamada ao «princípio» abala os discípulos,
que comentam com estas palavras: «Se essa é a situação do homem perante a
mulher, não é conveniente casar-se!» (Mt 19, 10). E Jesus,
referindo-se especificamente ao carisma do celibato «pelo Reino dos céus» (Mt 19,
12), mas enunciando uma regra geral, apela para a nova e surpreendente
possibilidade aberta ao homem pela graça de Deus: «Ele respondeu-lhes:
"Nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é
dado"» (Mt 19, 11).
Ao homem, não é possível imitar e reviver o amor de Cristo unicamente
com as suas forças. Torna-se capaz deste amor somente em virtude de um
dom recebido. Tal como o Senhor Jesus recebe o amor do seu Pai, assim
Ele, por Sua vez, comunica-o gratuitamente aos discípulos: «Como o Pai Me amou,
também Eu vos amei; permanecei no Meu amor» (Jo 15, 9). O
dom de Cristo é o Seu Espírito, cujo «fruto» primeiro (cf. Gál 5,
22) é a caridade: «O amor de Deus foi derramado em nossos corações, pelo
Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rm 5, 5). S. Agostinho
pergunta-se: «É o amor que nos faz cumprir os mandamentos, ou é a observância
dos mandamentos que faz nascer o amor?». E responde: «Mas quem pode pôr em
dúvida que o amor precede a observância? Quem, de facto, não ama está privado
de motivações para cumprir os mandamentos».[29]
23. «A lei do Espírito de vida em Cristo Jesus, libertou-nos da lei do
pecado e da morte» (Rm 8, 2). Com estas palavras, o apóstolo Paulo
nos leva a considerar, na perspectiva da história da Salvação que se cumpre em
Cristo, a relação entre a Lei (antiga) e a graça (nova
Lei). Ele reconhece o papel pedagógico da Lei, a qual permitindo ao homem
pecador medir a sua fraqueza e retirando-lhe a presunção da auto-suficiência,
abre-o à invocação e ao acolhimento da «vida no Espírito». Só nesta vida nova é
possível a prática dos mandamentos de Deus. Com efeito, é pela fé em Cristo que
fomos justificados (cf. Rm 3, 28): a «justiça» que a Lei
exige, mas não pode dar a ninguém, encontra-a o crente manifestada e concedida
pelo Senhor Jesus. De forma admirável, o mesmo S. Agostinho sintetiza a
dialéctica paulina sobre a lei e a graça: «Portanto, a lei foi dada para se
invocar a graça; a graça foi dada para que se observasse a lei».[30]
O amor e a vida segundo o Evangelho não podem ser pensados primariamente
em termos de preceito, porque o que eles pedem supera as forças do homem:
apenas são possíveis como fruto de um dom de Deus, que restaura, cura e
transforma o coração do homem através da Sua graça: «Porque, se a Lei foi dada
por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo» (Jo 1,
17). Por isso, a promessa da vida eterna está unida ao dom da graça, e o dom do
Espírito que recebemos é já «penhor da nossa herança» (cf. Ef 1,
14).
24. Revela-se assim a face autêntica e original do mandamento do amor e
da perfeição, à qual aquele se ordena: trata-se de uma possibilidade
aberta ao homem exclusivamente pela graça, pelo dom de Deus, pelo Seu
amor. Por outro lado, precisamente a consciência de ter recebido o dom, de
possuir em Jesus Cristo o amor de Deus, gera e sustenta a resposta
responsável de um amor total a Deus e entre os irmãos, como
insistentemente lembra o apóstolo João na sua primeira Carta: «Caríssimos,
amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama,
nasceu de Deus e conhece-O. Aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus
é amor (...) Caríssimos, se Deus nos amou assim, também nos devemos amar uns
aos outros (...) Nós amamo-Lo, porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4,
7-8. 11. 19).
Esta conexão indivisível entre a graça do Senhor e a liberdade do homem,
entre o dom e o dever, foi expressa, em termos simples e profundos, por S.
Agostinho, ao rezar assim: «Da quod iubes et iube quod vis» (dá
o que mandas e manda o que quiseres). [31]
O dom não diminui, mas reforça a exigência moral do amor: «O Seu mandamento é este: que creiamos no nome de Seu Filho, Jesus
Cristo, e nos amemos uns aos outros, como Ele nos mandou» (1 Jo 3,
23). Só se pode «permanecer» no amor, com a condição de observar os
mandamentos, como afirma Jesus: «Se guardardes os Meus mandamentos,
permanecereis no Meu amor, do mesmo modo que Eu tenho guardado os mandamentos
de Meu Pai e permaneço no Seu amor» (Jo 15, 10).
Recolhendo aquilo que constitui o âmago da mensagem moral de Jesus e da
pregação dos Apóstolos, e repropondo numa síntese admirável a grande tradição
dos Padres do Oriente e do Ocidente — particularmente de S. Agostinho [32] —,
S. Tomás pôde escrever que a Nova Lei é a graça do
Espírito Santo dada pela fé em Cristo. [33] Os
preceitos externos, de que, aliás, fala o Evangelho, dispõem para esta graça ou
prolongam os seus efeitos na vida. De facto, a Nova Lei não se contenta em
dizer o que se deve fazer, mas dá também a força «de praticar a verdade»
(cf. Jo 3, 21). Ao mesmo tempo, S. João Crisóstomo observou
que a Nova Lei foi promulgada precisamente quando o Espírito Santo desceu do
céu no dia de Pentecostes, e que os Apóstolos «não desceram do monte trazendo
em suas mãos, como Moisés, tábuas de pedra; mas traziam o Espírito Santo em
seus corações, (...) tornados pela Sua graça uma lei viva, um livro com vida».[34]
«Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28, 20)
25. O colóquio de Jesus com o jovem rico continua, de
certa forma, em cada época da história, hoje também. A
pergunta: «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?»,
desabrocha no coração de cada homem, e é sempre Cristo e unicamente Ele a
oferecer a resposta plena e decisiva. O Mestre, que ensina os mandamentos de
Deus, que convida ao Seu seguimento e dá a graça para uma vida nova, está
sempre presente e operante no meio de nós, como prometeu: «Eu estarei sempre
convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28, 20). A
contemporaneidade de Cristo ao homem de cada época realiza-se no Seu corpo, que
é a Igreja. Por esta razão, o Senhor prometeu aos Seus discípulos o
Espírito Santo, que lhes haveria de «lembrar» e fazer compreender os seus
mandamentos (cf. Jo 14, 26) e seria o princípio fontal de uma
nova vida no mundo (cf. Jo 3, 5-8; Rm 8,
1-13).
As prescrições morais, emanadas por Deus na Antiga Aliança e levadas à
sua perfeição na Nova e Eterna Aliança pela Pessoa mesma do Filho de Deus feito
homem, devem ser fielmente conservadas e permanentemente
actualizadas nas diferentes culturas, ao longo da história. A tarefa
da sua interpretação foi confiada por Jesus aos Apóstolos e aos seus
sucessores, com a especial assistência do Espírito da verdade: «Quem vos ouve é
a Mim que ouve» (Lc 10, 16). Com a luz e a força deste Espírito, os
Apóstolos cumpriram a missão de pregar o Evangelho e de indicar a «via» do
Senhor (cf. Act 18, 25), ensinando, antes de mais, a seguir e
a imitar Cristo: «Para mim, o viver é Cristo» (Fil 1, 21).
26. Na catequese moral dos Apóstolos, a par de
exortações e indicações ligadas ao contexto histórico e cultural, há um
ensinamento ético com normas precisas de comportamento. Comprovam-no as
suas Cartas que contêm a interpretação, guiada pelo Espírito
Santo, dos preceitos do Senhor vividos nas distintas circunstâncias culturais
(cf. Rm 12-15; 1 Cor 11-14; Gál 5-6; Ef 4-6; Col 3-4; 1
Pd e Tg ). Incumbidos de pregar o Evangelho, os
Apóstolos, desde as origens da Igreja, movidos pela sua responsabilidade
pastoral, vigiaram sobre a rectidão da conduta dos cristãos,[35] da
mesma forma que vigiaram sobre a pureza da fé e sobre a transmissão dos dons
divinos através dos Sacramentos. [36] Os
primeiros cristãos, provindos quer do povo judaico quer dos gentios,
diferenciavam-se dos pagãos não somente pela sua fé e pela liturgia, mas também
pelo testemunho da própria conduta moral, inspirada na Nova Lei. [37] De
facto, a Igreja é, ao mesmo tempo, comunhão de fé e de vida; a sua norma é «a
fé que actua pela caridade» (Gál 5, 6).
Nenhuma dilaceração deve atentar contra a harmonia entre a fé e
a vida: a unidade da Igreja é ferida não apenas pelos cristãos que
recusam ou alteram as verdades da fé, mas também por aqueles que desconhecem as
obrigações morais a que o Evangelho os chama (cf. 1 Cor 5,
9-13). Os Apóstolos recusaram, com decisão, qualquer ruptura entre o
compromisso do coração e os gestos que o exprimem e comprovam (cf. 1
Jo 2, 3-6). E, desde os tempos apostólicos, os Pastores da Igreja
denunciaram abertamente os modos de agir daqueles que eram fautores de divisão
com os seus ensinamentos ou com o seus comportamentos. [38]
27. Promover e guardar, na unidade da Igreja, a fé e a vida moral é a
tarefa confiada aos Apóstolos por Jesus (cf. Mt 28, 19-20),
que continua no ministério dos seus sucessores. É o que se encontra na Tradição
viva, através da qual — como ensina o Concílio Vaticano II — «a
Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações
tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita. Esta tradição apostólica progride
na Igreja sob a assistência do Espírito Santo».[39] No
Espírito, a Igreja acolhe e transmite a Escritura como testemunho das «grandes
coisas» que Deus faz na história (cf. Lc 1, 49), confessa pela
boca dos Padres e Doutores a verdade do Verbo feito carne, põe em prática os
preceitos e a caridade na vida dos Santos e Santas e no sacrifício dos
Mártires, celebra a esperança na Liturgia: através da mesma Tradição, os
cristãos recebem «a voz do Evangelho que ressoa viva»,[40] como
expressão fiel da sabedoria e da vontade divina.
Dentro da Tradição, desenvolve-se, com a assistência do Espírito
Santo, a interpretação autêntica da lei do Senhor. O mesmo
Espírito, que está na origem da Revelação dos mandamentos e dos ensinamentos de
Jesus, garante que sejam santamente conservados, fielmente expostos e
correctamente aplicados, nos vários tempos e circunstâncias. Esta
«actualização» dos mandamentos é sinal e fruto de uma penetração mais profunda
da Revelação, e de uma compreensão à luz da fé das novas situações históricas e
culturais. Todavia, aquela não pode deixar de confirmar a validade da
Revelação, inserindo-se no sulco da interpretação dada pela grande Tradição de
ensinamento e vida da Igreja, que tem como testemunhas a doutrina dos Padres, a
vida dos Santos, a liturgia da Igreja e o ensinamento do Magistério.
Mais em particular, como afirma
o Concílio, «o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus
escrita ou transmitida pela Tradição foi confiado unicamente ao Magistério vivo
da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo».[41] Assim a Igreja, na sua vida e ensinamento, apresenta-se como «coluna e
sustentáculo da verdade» (1 Tim 3, 15), inclusive da verdade sobre o agir moral. De facto, «à Igreja
compete anunciar sempre e em toda a parte os princípios morais, mesmo de ordem
social, bem como emitir juízo acerca de quaisquer realidades humanas, na medida em que o exijam os direitos
fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas».[42]
Precisamente sobre as questões que caracterizam hoje o debate moral e à
volta das quais se desenvolveram novas tendências e teorias, o Magistério, por
fidelidade a Jesus Cristo e em continuidade com a tradição da Igreja, sente com
maior urgência o dever de oferecer o próprio discernimento e ensinamento, para
ajudar o homem no seu caminho em busca da verdade e da liberdade.
CAPÍTULO II
«NÃO VOS CONFORMEIS COM A MENTALIDADE DESTE MUNDO (RM 12, 2)
A Igreja e o discernimento de algumas tendências da teologia moral
hodierna
Ensinar o que é conforme à sã doutrina (cf. Tit 2, 1)
28. A meditação do diálogo entre Jesus e o jovem rico permitiu-nos
recolher os conteúdos essenciais da Revelação do Antigo e do Novo Testamento
sobre o agir moral. Ou sejam: a subordinação do homem e da sua acção a
Deus, Aquele que «só é bom»; a relação entre o bem moral dos
actos humanos e a vida eterna; o seguimento de Cristo, que
abre ao homem a perspectiva do amor perfeito; e, enfim, o dom do
Espírito Santo, fonte e auxílio da vida moral da «nova criatura»
(cf. 2 Cor 5, 17).
Na sua reflexão moral, a Igreja teve constantemente
presente as palavras, que Jesus dirigiu ao jovem rico. A Sagrada Escritura, de
facto, permanece a fonte viva e fecunda da doutrina moral da Igreja, como
recordou o Concílio Vaticano II: «O Evangelho é (...) fonte de toda a verdade
salutar e de toda a disciplina de costumes».[43] Aquela
conservou fielmente aquilo que a palavra de Deus ensina, tanto acerca das
verdades a acreditar, como sobre o agir moral, isto é, o agir agradável a Deus
(cf. 1 Ts 4, 1), realizando um progresso
doutrinal análogo ao verificado no âmbito das verdades da fé.
Assistida pelo Espírito Santo que a guia para a verdade total (cf. Jo 16,
13), a Igreja nunca cessou, nem poderá cessar, de perscrutar o «mistério do
Verbo encarnado», no qual «se esclarece verdadeiramente o mistério do homem».[44]
29. A reflexão moral da Igreja, sempre realizada à luz de Cristo, o «bom
Mestre», desenvolveu-se também na forma específica de ciência teológica,
chamada «teologia moral», uma ciência que acolhe e interroga a
Revelação divina e, ao mesmo tempo, responde às exigências da razão humana. A
teologia moral é uma reflexão que se refere à «moralidade», ou seja, ao bem e
ao mal dos actos humanos e da pessoa que os realiza, e neste sentido está
aberta a todos os homens; mas é também «teologia», enquanto reconhece o
princípio e o fim do agir moral n'Aquele que «só é bom» e que, doando-Se ao
homem em Cristo, lhe oferece a bem-aventurança da vida divina.
O Concílio Vaticano II convidou os estudiosos a porem «especial
cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica,
mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos
fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para a vida do
mundo».[45] O
mesmo Concílio convidou os teólogos «a buscar constantemente, de acordo com os
métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais
adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma
coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra, o modo como elas se
enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado».[46] Daí
o posterior convite, lançado a todos os fiéis, mas dirigido particularmente aos
teólogos: «vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu
tempo, e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual
se exprime pela cultura».[47]
O esforço de muitos teólogos, incentivados pelo encorajamento do
Concílio, já deu os seus frutos com interessantes e úteis reflexões sobre as
verdades da fé a crer e a aplicar na vida, apresentadas de forma mais adequada
à sensibilidade e às questões dos homens do nosso tempo. A Igreja e, em
particular, os Bispos, a quem Jesus Cristo confiou primariamente o ministério
de ensinar, acolham com gratidão um tal esforço e estimulem os teólogos a
prosseguirem o trabalho, animados por um profundo e autêntico temor do Senhor,
que é o princípio da sabedoria (cf. Prov 1, 7).
Ao mesmo tempo, porém, no âmbito das discussões teológicas
pós-conciliares, foram-se desenvolvendo algumas interpretações da moral
cristã que não são compatíveis com a «sã doutrina» (2 Tim 4,
3). Certamente o Magistério da Igreja não pretende impor aos fiéis nenhum
sistema teológico particular nem mesmo filosófico, mas para «guardar
religiosamente e expor fielmente» a Palavra de Deus, [48] ele
tem o dever de declarar a incompatibilidade com a verdade revelada de certas
orientações do pensamento teológico ou de algumas afirmações filosóficas. [49]
30. Ao dirigir-me com esta Encíclica a vós, Irmãos no Episcopado, desejo
enunciar os princípios necessários para o discernimento daquilo que é
contrário à «sã doutrina», apelando para aqueles elementos do
ensinamento moral da Igreja, que hoje
parecem particularmente expostos ao erro, à ambiguidade ou ao esquecimento. De
resto, são os elementos de que depende «a resposta para os enigmas da condição
humana que, hoje como ontem, profundamente preocupam os seus corações: que é o
homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado? donde provém o
sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a felicidade
verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? finalmente,
que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para
onde vamos?». [50] Estas
e outras questões — como: que é a liberdade e qual a sua relação com a verdade
contida na lei de Deus? qual é o papel da consciência na formação do perfil
moral do homem? como discernir, em conformidade com a verdade sobre o bem, os
direitos e os deveres concretos da pessoa humana? — podem-se resumir na pergunta
fundamental que o jovem do Evangelho pôs a Jesus: «Mestre, que devo
fazer de bom para alcançar a vida eterna?». Enviada por Jesus a pregar o
Evangelho e a «instruir todas as nações (...) ensinando-as a observar tudo» o
que Ele mandou (cf. Mt 28, 19-20), a Igreja propõe
sempre de novo, hoje também, a resposta do Mestre: esta possui luz e
força capazes de resolver inclusive as questões mais discutidas e complexas.
Esta mesma luz e força impelem a Igreja a desenvolver constantemente a reflexão
não só dogmática mas também moral, num âmbito interdisciplinar, tal como é
necessário especialmente para os novos problemas.[51]
É sempre nessa mesma luz e força que o Magistério da Igreja
realiza a sua obra de discernimento, acolhendo e pondo em prática a
admoestação que o apóstolo Paulo dirigia a Timóteo: «Conjuro-te diante de Deus
e de Jesus Cristo que há-de julgar os vivos e os mortos, e em nome da Sua
aparição e do Seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente,
repreende, censura e exorta com bondade e doutrina. Porque virá o tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina.
Desejosos de ouvir novidades, escolherão para si uma multidão de mestres, ao
sabor das paixões, e hão-de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os às
fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, suporta os trabalhos, evangeliza e
consagra-te ao teu ministério» (2 Tim 4, 1-5; cf. Tit 1,
10.13-14).
«Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32)
31. Os problemas humanos mais debatidos e diversamente resolvidos na
reflexão moral contemporânea, estão ligados, mesmo se de várias maneiras, a um
problema crucial: o da liberdade do homem.
Não há dúvida que a nossa época adquiriu uma percepção particularmente
viva da liberdade. «Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da
dignidade da pessoa humana», como já constatava a Declaração conciliar Dignitatis humanae, sobre a liberdade religiosa. [52] Daí
a reivindicação de que os homens possam «agir segundo a própria convicção e com
liberdade responsável, não forçados por coacção, mas levados pela consciência
do dever».[53] Em
particular, o direito à liberdade religiosa e ao respeito da consciência no seu
caminho para a verdade é sentido cada vez mais como fundamento dos direitos da
pessoa, considerados no seu conjunto. [54]
Assim, o sentido mais agudo da dignidade e da unicidade da pessoa
humana, bem como do respeito devido ao caminho da consciência, constitui
certamente uma conquista positiva da cultura moderna. Esta percepção, em si
mesma autêntica, encontrou múltiplas expressões, mais ou menos adequadas,
algumas das quais, porém, se afastam da verdade do homem enquanto criatura e
imagem de Deus, e requerem, portanto, ser corrigidas ou purificadas à luz da
fé. [55]
32. Em algumas correntes do pensamento moderno, chegou-se a exaltar
a liberdade até ao ponto de se tornar um absoluto, que seria a fonte dos
valores. Nesta direcção, movem-se as doutrinas que perderam o sentido
da transcendência ou as que são explicitamente ateias. Atribuíram-se à
consciência individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral,
que decide categórica e infalivelmente o bem e o mal. À afirmação do dever de
seguir a própria consciência foi indevidamente acrescentada aqueloutra de que o
juízo moral é verdadeiro pelo próprio facto de provir da consciência. Deste
modo, porém, a imprescindível exigência de verdade desapareceu em prol de um
critério de sinceridade, de autenticidade, de «acordo consigo próprio», a ponto
de se ter chegado a uma concepção radicalmente subjectivista do juízo moral.
Como facilmente se compreende, não é alheia a esta evolução, a
crise em torno da verdade. Perdida a ideia de uma verdade universal
sobre o bem, cognoscível pela razão humana, mudou também inevitavelmente a
concepção da consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade
original, ou seja, como um acto da inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar
o conhecimento universal do bem numa determinada situação e exprimir assim um
juízo sobre a conduta justa a eleger, aqui e agora; tende-se a conceder à
consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer autonomamente os critérios
do bem e do mal e agir em consequência. Esta visão identifica-se com uma ética
individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua verdade, diferente
da verdade dos outros. Levado às últimas consequências, o individualismo
desemboca na negação da ideia mesma de natureza humana.
Estas diversas concepções estão na origem das orientações de pensamento
que sustentam a antinomia entre lei moral e consciência, entre natureza e
liberdade.
33. Paralelamente à exaltação da liberdade, e
paradoxalmente em contraste com ela, a cultura moderna põe radicalmente
em questão a própria liberdade. Um conjunto de disciplinas, agrupadas
sob o nome de «ciências humanas», chamou justamente a atenção para os
condicionamentos de ordem psicológica e social, que pesam sobre o exercício da
liberdade humana. O conhecimento desses condicionalismos e a atenção que lhes é
prestada são conquistas importantes, que encontraram aplicação em diversos
âmbitos da existência, como, por exemplo, na pedagogia ou na administração da
justiça. Mas alguns, ultrapassando as conclusões, que legitimamente se podem
tirar destas observações, chegaram ao ponto de pôr em dúvida ou de negar a
própria realidade da liberdade humana.
São de lembrar ainda algumas interpretações abusivas da pesquisa
científica a nível antropológico. Partindo da grande variedade de tradições,
hábitos e instituições existentes na humanidade, concluem, senão sempre pela
negação de valores humanos universais, pelo menos com uma concepção relativista
da moral.
34. «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». A
pergunta moral, à qual responde Cristo, não pode prescindir da
questão da liberdade, pelo contrário, coloca-a no centro dela, porque
não há moral sem liberdade: «Só na liberdade é que o homem se pode converter ao
bem».[56] Mas
qual liberdade? Perante os nossos contemporâneos que «apreciam
grandemente» a liberdade e que a «procuram com ardor», mas que «muitas vezes a
fomentam dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja
o que for, mesmo o mal, contanto que agrade», o Concílio apresenta a «verdadeira » liberdade:
«A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no
homem. Pois Deus quis "deixar o homem entregue à sua própria decisão"
(cf. Sir 15, 14), para que busque por si mesmo o seu Criador e
livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele».[57] Se
existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral grave para
cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida. [58] Neste
sentido, afirmava com decisão o Cardeal J. H. Newman, eminente defensor dos
direitos da consciência: «A consciência tem direitos, porque tem deveres».[59]
Algumas tendências da teologia moral hodierna, sob a influência das
correntes subjectivistas e individualistas agora lembradas, interpretam de um
modo novo a relação da liberdade com a lei moral, com a natureza humana e com a
consciência, e propõem critérios inovadores de avaliação moral dos actos: são tendências
que, em sua variedade, coincidem no facto de atenuar ou mesmo negar a
dependência da liberdade da verdade.
Se queremos realizar um discernimento crítico destas tendências, capaz
de reconhecer o que nelas existe de legítimo, útil e válido, e indicar, ao
mesmo tempo, as suas ambiguidades, perigos e erros, devemos examiná-las à luz
da dependência fundamental da liberdade da verdade, dependência que foi
expressa do modo mais claro e autorizado pelas palavras de Cristo: «Conhecereis
a verdade, e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32).
I. A liberdade e a lei
«Não comas da árvore da ciência do bem e do mal» (Gn 2, 17)
35. Lemos no livro do Génesis: «O Senhor deu esta ordem ao
homem: "Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas
o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres,
certamente morrerás"» (Gn 2, 16-17).
Com esta imagem, a Revelação ensina que não pertence ao homem o
poder de decidir o bem e o mal, mas somente a Deus. O homem é
certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de
Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer «de todas as
árvores do jardim». Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da
«árvore da ciência do bem e do mal», chamada que é a aceitar a lei moral que
Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e
plena realização, precisamente nesta aceitação. Deus, que «só é bom», conhece
perfeitamente o que é bom para o homem, e, devido ao seu mesmo amor, propõe-lo
nos mandamentos.
Portanto, a lei de Deus não diminui e muito menos elimina a liberdade do
homem, pelo contrário, garante-a e promove-a. Bem distintas se apresentam,
porém, algumas tendências culturais hodiernas, que estão na origem de muitas
orientações éticas que colocam no centro do seu pensamento um suposto
conflito entre a liberdade e a lei. Tais são as doutrinas que atribuem
a simples indivíduos ou a grupos sociais a faculdade de decidir o bem e
o mal: a liberdade humana poderia «criar os valores», e gozaria de uma
primazia sobre a verdade, até ao ponto de a própria verdade ser considerada uma
criação da liberdade. Esta, portanto, reivindicaria tal autonomia moral, que,
praticamente, significaria a sua soberania absoluta.
36. A exigência moderna de autonomia não deixou de exercer o seu influxo
também no âmbito da teologia moral católica. Se é certo que esta nunca
pretendeu contrapor a liberdade humana à lei divina, nem pôr em dúvida a
existência de um fundamento religioso último das normas morais, foi, porém,
incitada a uma profunda revisão do papel da razão e da fé na individuação das
normas morais que se referem aos comportamentos específicos «intramundanos», ou
seja, relativos ao próprio sujeito, aos outros e ao mundo das coisas.
Deve-se reconhecer que, na origem deste esforço de revisão,
acham-se algumas instâncias positivas, que em boa parte,
aliás, pertencem à melhor tradição do pensamento católico. Solicitados pelo
Concílio Vaticano II, [60] quis-se
favorecer o diálogo com a cultura moderna, pondo em evidência o carácter
racional — e, portanto, universalmente compreensível e comunicável — das normas
morais que pertencem ao âmbito da lei moral natural. [61] Pretendeu-se,
além disso, confirmar o carácter interior das exigências éticas que dela
derivam e que só se impõem à vontade como uma obrigação por força do
reconhecimento prévio da razão humana e, em concreto, da consciência pessoal.
Esquecendo, porém, a dependência da razão humana da Sabedoria divina e,
no actual estado de natureza decaída, a necessidade, mais, a efectiva realidade
da Revelação divina para o conhecimento das verdades morais, mesmo de ordem
natural, [62] alguns
chegaram a teorizar uma completa soberania da razão no âmbito
das normas morais, relativas à recta ordenação da vida neste mundo: tais normas
constituiriam o âmbito de uma moral puramente «humana», isto é, seriam a
expressão de uma lei que o homem autonomamente daria a si próprio, com a sua
fonte exclusiva na razão humana. Desta lei, Deus não poderia de modo algum ser
considerado Autor, salvo no sentido que a razão humana exerceria a sua
autonomia legislativa por força de um mandato original e total de Deus ao
homem. Ora, estas tendências de pensamento levaram a negar, contra a Sagrada
Escritura e a doutrina constante da Igreja, que a lei moral natural tenha Deus
como autor e que o homem, mediante a sua razão, participe da lei eterna, dado
que não é ele a estabelecê-la.
37. Querendo, porém, manter a vida moral num contexto cristão, foi introduzida por alguns teólogos
moralistas uma nítida distinção, contrária à doutrina católica, [63] entre
uma ordem ética, que teria origem humana e valor apenas temporal,
e uma ordem da salvação, para a qual contariam somente algumas
intenções e atitudes interiores relativas a Deus e ao próximo.
Consequentemente, chegou-se ao ponto de negar, na Revelação divina, a
existência de um conteúdo moral específico e determinado, universalmente válido
e permanente: a Palavra de Deus limitar-se-ia a propor uma exortação, uma
genérica parénese, que depois unicamente a razão autónoma teria a tarefa de
preencher com determinações normativas verdadeiramente «objectivas», ou seja,
adequadas à situação histórica concreta. Naturalmente, uma autonomia assim
concebida comporta também a negação à Igreja e ao seu Magistério de uma
competência doutrinal específica sobre normas morais concretas relacionadas com
o chamado «bem humano»: elas não pertenceriam ao conteúdo próprio da Revelação,
nem seriam em si próprias relevantes para a salvação.
É impossível não ver que uma tal interpretação da autonomia da razão
humana comporta teses incompatíveis com a doutrina católica.
Neste contexto, é absolutamente necessário esclarecer, à luz da Palavra
de Deus e da tradição viva da Igreja, as noções fundamentais da liberdade
humana e da lei moral, como também as suas relações profundas e interiores. Só
assim será possível corresponder às justas exigências da racionalidade humana,
integrando os elementos válidos de algumas correntes da teologia moral hodierna
sem prejudicar o património moral da Igreja com teses derivadas de um conceito
erróneo de autonomia.
Deus quis deixar o homem «entregue à sua própria decisão» (Sir 15, 14)
38. Retomando as palavras do Sirácida, o Concílio Vaticano II explica
assim a «verdadeira liberdade», que, no homem, é «sinal privilegiado da imagem
divina»: «Deus quis "deixar o homem entregue à sua própria decisão",
para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e
beatífica perfeição, aderindo a Ele».[64] Estas
palavras indicam a maravilhosa profundidade da participação na
soberania divina, à qual foi chamado o homem: indicam que o poder do
homem se estende, de certa maneira, sobre si mesmo. Este é um aspecto
constantemente acentuado na reflexão teológica sobre a liberdade humana,
interpretada como uma forma de realeza. Escreve, por exemplo, S. Gregório de
Nissa: «O espírito manifesta a sua realeza e excelência (...) pelo facto de ser
sem dono e livre, governando-se soberanamente pelo seu querer. De quem é
próprio isto, senão de um rei? (...) Assim a natureza humana, criada para ser
senhora das outras criaturas, pela semelhança com o Soberano do universo, foi
estabelecida como uma imagem viva, participante da dignidade e do nome do
Arquétipo».[65]
Já o governar o mundo constitui para o homem uma tarefa
grande e cheia de responsabilidade, que compromete a sua liberdade na
obediência ao Criador: «Enchei e dominai a terra» (Gn 1, 28). Sob
este aspecto, compete ao indivíduo, bem como à comunidade humana, uma justa
autonomia, à qual a Constituição conciliar Gaudium et spes dedica uma especial atenção. É a
autonomia das realidades terrenas, significando que «as coisas criadas e as
próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente
descobrindo, utilizando e organizando».[66]
39. Não só o mundo, mas o homem mesmo foi confiado ao seu
próprio cuidado e responsabilidade. Deus deixou-o «entregue à sua
própria decisão» (Sir 15, 14), para que procurasse o seu Criador e
alcançasse livremente a perfeição. Alcançar significa edificar
pessoalmente em si próprio tal perfeição. Com efeito, do mesmo modo
que ao governar o mundo, o homem o forma segundo a sua inteligência e vontade, assim também praticando actos moralmente
bons, o homem confirma, desenvolve e consolida em si mesmo a semelhança com
Deus.
No entanto, o Concílio pede vigilância perante um falso conceito da autonomia
das realidades terrenas, ou seja, o de considerar que «as criaturas não
dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador».[67] Aplicado
depois ao homem, tal conceito de autonomia produz efeitos particularmente
danosos, assumindo, em última análise, um carácter ateu: «Pois, sem o Criador,
a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece de Deus, a própria criatura
se obscurece».[68]
40. O ensinamento do Concílio sublinha, por um lado, a actividade
da razão humana na descoberta e na aplicação da lei moral: a vida
moral exige a criatividade e o engenho próprios da pessoa, fonte e causa dos
seus actos deliberados. Por outro lado, a razão obtém a sua verdade e
autoridade da lei eterna, que não é senão a própria sabedoria divina. [69] Na
base da vida moral, está, pois, o princípio de uma «justa autonomia»[70] do
homem, sujeito pessoal dos seus actos. A lei moral provém de Deus e
n'Ele encontra sempre a sua fonte: em virtude da razão natural, que
deriva da sabedoria divina, ela é simultaneamente a lei própria do
homem. De facto, a lei natural, como vimos, «não é mais do que a luz
da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se
deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus a concedeu na
criação».[71] A
justa autonomia da razão prática significa que o homem possui em si mesmo a
própria lei, recebida do Criador. Mas, a autonomia da razão não pode
significar a criação, por parte da mesma razão, dos valores e
normas morais. [72] Se
esta autonomia implicasse uma negação da participação da razão prática na
sabedoria do divino Criador e Legislador, ou então se sugerisse uma liberdade
criadora das normas morais, segundo as contingências da história ou das
diversas sociedades e culturas, uma tal suposta autonomia contradiria o
ensinamento da Igreja sobre a verdade do homem. [73] Seria
a morte da verdadeira liberdade: «Mas não comas da árvore da ciência do bem e
do mal, porque, no dia em que comeres, certamente morrerás (Gn 2,
17).
41. A verdadeira autonomia moral do homem de modo algum
significa a recusa, mas sim o acolhimento da lei moral, do mandamento de Deus:
«O Senhor deu esta ordem ao homem... » (Gn 2, 16). A
liberdade do homem e a lei de Deus encontram-se e são chamadas a compenetrar-se
entre si, no sentido de uma livre obediência do homem a Deus e da
benevolência gratuita de Deus ao homem. E, portanto, a obediência a Deus não é,
como pensam alguns, uma heteronomia, de modo que a vida moral
estivesse submetida à vontade de uma omnipotência absoluta, externa ao homem e
contrária à afirmação da sua liberdade. Na verdade, se heteronomia da moral
significasse negação da autodeterminação do homem ou imposição de normas
estranhas ao seu bem, estaria em contradição com a revelação da Aliança e da
Encarnação redentora. Semelhante heteronomia seria apenas uma forma de
alienação, contrária à sabedoria divina e à dignidade da pessoa humana.
Alguns falam, justamente, de teonomia, ou de teonomia
participada, porque a livre obediência do homem à lei de Deus implica,
de facto, a participação da razão e da vontade humana na sabedoria e
providência de Deus. Proibindo ao homem comer da «árvore da ciência do bem e do
mal», Deus afirma que o homem não possui originariamente como própria esta «ciência»,
mas só participa nela através da luz da razão natural e da revelação divina,
que lhe manifestam as exigências e os apelos da sabedoria eterna. A lei,
portanto, deve entender-se como uma expressão da sabedoria divina: ao
submeter-se a ela, a liberdade submete-se à verdade da criação. Por isso, é
necessário reconhecer na liberdade da pessoa humana, a imagem e a proximidade
de Deus, que Se «encontra em todos» (cf. Ef 4, 6); da mesma
forma, impõe-se confessar a majestade do Deus do universo e venerar a santidade
da lei de Deus infinitamente transcendente. Deus semper maior. [74]
Feliz o homem que põe o seu enlevo na lei do Senhor (cf. Sal 1, 1-2)
42. Modelada sobre a de Deus, a liberdade do homem não só não é negada
pela sua obediência à lei divina, mas apenas mediante essa obediência, ela
permanece na verdade e é conforme à dignidade do homem, como diz claramente o
Concílio: «A dignidade do homem exige que ele proceda segundo a própria
consciência e por livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde
dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa.
O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões,
tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente
iniciativa os meios convenientes».[75]
Na sua inclinação para Deus, para Aquele que «só é bom», o homem deve
livremente fazer o bem e evitar o mal. Mas para isso, o homem deve poder
distinguir o bem do mal. Fá-lo, antes de mais, graças à luz da razão
natural, reflexo no homem do esplendor da face de Deus. Neste sentido, escreve
S. Tomás ao comentar um versículo do Salmo 4: «Depois de ter dito: Oferecei
sacrifícios de justiça (Sal 4, 6), como se alguns lhe pedissem
quais são as obras da justiça, o Salmista acrescenta: Muitos dizem:
quem nos fará ver o bem? E, respondendo à pergunta, diz: A luz
da Vossa face, Senhor, foi impressa em nós. Como se quisesse dizer que
a luz da razão natural, pela qual distinguimos o bem do mal — naquilo que é da
competência da lei natural — nada mais é senão um vestígio da luz divina em
nós».[76] Disto
se deduz também o motivo pelo qual esta lei é chamada lei natural:
chama-se assim, não por referência à natureza dos seres irracionais, mas porque
a razão, que a dita, é própria da natureza humana. [77]
43. O Concílio Vaticano II lembra que «a suprema norma da vida humana é
a própria lei divina, objectiva e universal, com a qual Deus, no desígnio da
sua sabedoria e amor, ordena, dirige e governa o universo inteiro e os caminhos
da comunidade humana. Desta sua lei, Deus torna o homem participante, de modo
que este, segundo a suave disposição da divina providência, possa conhecer cada
vez mais a verdade imutável».[78]
O Concílio remete para a doutrina clássica sobre a lei eterna de
Deus. S. Agostinho define-a como «a razão ou a vontade de Deus que
manda observar a ordem natural e proíbe alterá-la»;[79] S.
Tomás identifica-a com «a razão da divina sabedoria que conduz tudo ao devido
fim».[80] E
a sabedoria de Deus é providência, amor que cuida com diligência. É o próprio
Deus, portanto, que ama e cuida, no sentido mais literal e fundamental, de toda
a criação (cf. Sab 7, 22; 8, 11). Mas aos homens, Deus provê
de um modo diferente do usado com os seres que não são pessoas: não «de fora»,
através das leis da natureza física, mas «de dentro», mediante a razão que,
conhecendo pela luz natural a lei eterna de Deus, está, por isso mesmo, em
condições de indicar ao homem a justa direcção do seu livre agir. [81] Deste
modo, Deus chama o homem a participar da Sua providência, querendo dirigir o
mundo, por meio do próprio homem, ou seja, através do seu cuidado consciencioso
e responsável: não só o mundo das coisas, mas também o das pessoas humanas.
Neste contexto se situa a lei natural como a expressão humana
da lei eterna de Deus: «Em relação às outras criaturas — escreve S. Tomás —, a
criatura racional está sujeita de um modo mais excelente à divina providência,
enquanto ela também se torna participante da providência ao cuidar de si
própria e dos outros. Por isso, ela participa da razão eterna, graças à qual
tem uma inclinação natural para o acto e o fim devidos; esta participação da
lei eterna na criatura racional é chamada lei natural».[82]
44. A Igreja referiu-se frequentemente à doutrina tomista da lei natural, assumindo-a no próprio
ensinamento moral. Assim, o meu venerado predecessor Leão XIII sublinhou a
essencial subordinação da razão e da lei humana à Sabedoria de Deus e à Sua
lei. Depois de dizer que
«a lei natural está escrita e esculpida no coração de todos e
de cada um dos homens, visto que esta não é mais do que a mesma razão
humana enquanto nos ordena fazer o bem e intima a não pecar», Leão XIII remete
para a «razão mais elevada» do divino Legislador: «Mas esta prescrição da razão
humana não poderia ter força de lei, se não fosse a voz e a intérprete de uma
razão mais alta, à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem estar
submetidos». De facto, a força da lei reside na sua autoridade de impor
deveres, conferir direitos e aplicar a sanção a certos comportamentos: «Ora,
nada disso poderia existir no homem, se fosse ele mesmo a estipular, como
legislador supremo, a norma das suas acções». E conclui: «Daí decorre que a lei
natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de
razão, que os inclina para o acto e o fim que lhes convém; ela
é a própria razão eterna do Criador e governador do universo».[83]
O homem pode reconhecer o bem e o mal, graças àquele discernimento entre
o bem e o mal que ele mesmo realiza com a sua razão, em particular com a
sua razão iluminada pela Revelação divina e pela fé, em
virtude da lei que Deus outorgou ao povo eleito, a começar pelos mandamentos do
Sinai. Israel foi chamado a acolher e viver a lei de Deus como particular
dom e sinal da eleição e da Aliança divina, e, ao mesmo tempo, como
garantia da bênção de Deus. Assim, Moisés podia dirigir-se aos filhos de
Israel, perguntando-lhes: «Que povo há tão grande que tenha deuses como o
Senhor, nosso Deus, sempre pronto a atender-nos quando O invocamos? Qual é o
grande povo, que possua mandamentos e preceitos tão justos como esta Lei que
hoje vos apresento? (Dt 4, 7-8). Nos Salmos, encontramos
os sentimentos de louvor, gratidão e veneração que o povo eleito é chamado a
nutrir pela lei de Deus, a par da exortação a conhecê-la, meditá-la e levá-la à
vida: «Feliz do homem que não segue o conselho dos ímpios, não se detém no
caminho dos pecadores, nem toma assento na reunião dos enganadores; antes, põe
o seu enlevo na lei do Senhor e sobre ela medita, dia e noite» (Sal 1,
1-2); «A lei do Senhor é perfeita, reconforta o espírito; os Seus testemunhos
são fiéis, tornam sábio o homem simples. Os Seus mandamentos são rectos,
deleitam o coração; os Seus preceitos são puros, iluminam os olhos» (Sal 18
19, 8-9).
45. A Igreja acolhe com gratidão e guarda com amor todo o depósito da
Revelação, tratando-o com religioso respeito e cumprindo a sua missão de
interpretar autenticamente a lei de Deus à luz do Evangelho. Além disso, a
Igreja recebe como dom a nova Lei, que é o «cumprimento» da
lei de Deus em Jesus Cristo e no Seu Espírito: é uma lei «interior» (cf. Jer 31,
31-33), «escrita, não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas
de pedra, mas em tábuas de carne, nos nossos corações» (2 Cor 3,
3); uma lei de perfeição e de liberdade (cf. 2 Cor 3, 17); é
«a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus» (Rm 8, 2). A propósito
desta lei, escreve S. Tomás: «Esta pode ser denominada lei num duplo sentido.
Primeiramente, lei do espírito é o Espírito Santo (...) que, habitando na alma,
não só ensina o que é necessário realizar pela iluminação da inteligência sobre
as coisas a serem cumpridas, mas inclina também a agir com rectidão (...) Num
segundo sentido, lei do espírito pode designar o efeito próprio do Espírito
Santo, ou seja, a fé que actua pela caridade (Gál 5, 6), a qual,
portanto, ensina interiormente sobre as coisas que devem ser feitas (...) e
inclina o afecto a agir».[84]
Apesar de habitualmente, na reflexão teológico-moral, se distinguirem a
lei de Deus positiva ou revelada da lei natural, e, na economia da salvação, a
lei «antiga» da lei «nova», não se pode esquecer que estas e outras distinções
úteis referem-se sempre à lei, cujo autor é o mesmo e único Deus e o
destinatário é o homem. As diversas maneiras como, na história, Deus cuida do
mundo e do homem, não só não se excluem entre si, mas, pelo contrário,
apoiam-se e compenetram-se mutuamente. Todas elas derivam e terminam no sábio e
amoroso desígnio eterno com que Deus predestina os homens «a serem conformes à
imagem do Seu Filho» (Rm 8, 29). Neste desígnio, não há qualquer
ameaça à verdadeira liberdade do homem: pelo contrário, o seu acolhimento é o
único caminho para a afirmação da liberdade.
«O que a lei ordena está escrito nos seus corações» (Rm 2, 15)
46. O suposto conflito entre liberdade e lei afirma-se hoje com especial
intensidade no caso da lei natural, e particularmente no que se refere à
natureza. Na verdade, os debates sobre natureza e liberdade acompanharam
sempre a história da reflexão moral, subindo de tom no Renascimento e na
Reforma, como se pode deduzir dos ensinamentos do Concílio de Trento. [85] A
época contemporânea está caracterizada por uma tensão análoga, mesmo se num
sentido diferente: o gosto pela observação empírica, os processos de
objectivação científica, o progresso técnico, algumas formas de liberalismo
levaram a contrapor os dois termos, como se a dialéctica — senão mesmo o
conflito — entre liberdade e natureza fosse uma característica estrutural da
história humana. Noutras épocas, parecia que a «natureza» submetesse totalmente
o homem aos seus dinamismos e até aos seus determinismos. Ainda hoje, as
coordenadas espaço-temporais do mundo sensível, as constantes físico-químicas,
os dinamismos corpóreos, os impulsos psíquicos, os condicionamentos sociais
parecem ser, para muitos, os únicos factores realmente decisivos das realidades
humanas. Neste contexto, também os factos morais, não obstante a sua
especificidade, são com frequência tratados como se fossem dados
estatisticamente comprováveis, como comportamentos observáveis ou explicáveis
somente com as categorias dos mecanismos psicossociais. E assim alguns
estudiosos de ética, obrigados por profissão a examinar os factos e os
gestos do homem, podem ser tentados a medir a própria ciência, senão as suas
prescrições, baseando-se numa relação estatística dos comportamentos humanos
concretos e das opiniões morais da maioria.
Outros moralistas, pelo
contrário, preocupados em educar para os valores, mantêm-se sensíveis ao
prestígio da liberdade, mas com frequência concebem-na em oposição, ou em
contraste, com a natureza material e biológica, sobre a qual deveria
progressivamente ir-se afirmando. A propósito disto, diferentes concepções
convergem no facto de esquecerem a dimensão de criatura da natureza e
desconhecerem a sua totalidade. Para alguns, a natureza fica
reduzida a simples material ao dispor do agir humano e do seu poder: ela
deveria ser profundamente transformada, antes, superada pela liberdade, dado
que constituiria um seu limite e negação. Para outros, é na
promoção ilimitada do poder humano ou da sua liberdade, que se constituem os
valores económicos, sociais, culturais e até morais: a natureza serviria para
significar tudo aquilo que no homem e no mundo se coloca fora da liberdade. Tal
natureza compreenderia, em primeiro lugar, o corpo humano, a sua constituição e
os seus dinamismos: a este dado físico, opor-se-ia tudo o que é «construído»,
isto é, a «cultura», como obra e produto da liberdade. A natureza humana, assim
entendida, poderia ser reduzida e tratada como mero material biológico ou
social, sempre disponível. O que significa, em última análise, definir a
liberdade por si mesma, tornando-a uma instância criadora de si própria e dos
seus valores. Desta forma, no caso extremo, o homem nem sequer teria natureza,
e seria por si mesmo o próprio projecto de existência. O homem nada mais seria
que a sua liberdade!
47. Neste contexto, surgiram as objecções de fisicismo e
naturalismo contra a concepção tradicional da lei
natural: esta apresentaria como leis morais, leis que, em si próprias,
seriam somente biológicas. Assim, com grande superficialidade, ter-se-ia
atribuído a alguns comportamentos humanos um carácter permanente e imutável e,
nesta base, pretender-se-ia formular normas morais válidas universalmente.
Segundo alguns teólogos, semelhante «argumentação biologista ou naturalista»
estaria também presente em certos documentos do Magistério da Igreja,
especialmente naqueles que se referem ao âmbito da ética sexual e matrimonial. Com base numa concepção naturalista do acto
sexual, teriam sido condenadas como moralmente inadmissíveis a contracepção, a
esterilização directa, a masturbação, as relações pré-matrimoniais, as relações
homossexuais, como também a fecundação artificial. Ora, segundo o parecer
destes teólogos, a avaliação moralmente negativa de tais actos não teria em
suficiente consideração o carácter racional e livre do homem, nem o
condicionamento cultural de cada norma moral. Dizem eles que o homem, como ser
racional, não só pode, mas até deve decidir livremente o sentido dos
seus comportamentos. Este «decidir o sentido» deverá ter em conta, obviamente,
as múltiplas limitações do ser humano, que possui uma condição corpórea e
histórica.
Deverá, além disso, tomar em consideração os modelos de comportamento e
os significados que estes assumem numa determinada cultura. E, sobretudo,
deverá respeitar o mandamento fundamental do amor de Deus e do próximo. Mas
Deus — afirmam ainda — fez o homem como um ser racionalmente livre, deixou-o «entregue
à sua própria decisão», e dele espera uma própria formação racional da sua
vida. O amor do próximo significaria sobretudo, ou mesmo exclusivamente,
respeito pela livre decisão de si próprio. Os mecanismos dos comportamentos
típicos do homem e também das chamadas «inclinações naturais», no máximo,
estabeleceriam — como dizem — uma orientação geral do comportamento correcto,
mas não poderiam determinar a avaliação moral de cada um dos actos humanos, tão
complexos do ponto de vista das situações.
48. Perante uma tal interpretação, ocorre considerar atentamente a recta
relação que existe entre a liberdade e a natureza humana, e
particularmente o lugar que ocupa o corpo humano nas questões da lei
natural.
Uma liberdade, que pretenda ser absoluta, acaba por tratar o corpo
humano como um dado bruto, desprovido de significados e de valores morais
enquanto aquela não o tiver moldado com o seu projecto. Consequentemente, a
natureza humana e o corpo aparecem como pressupostos ou
preliminares, materialmente necessários para a opção
da liberdade, mas extrínsecos à pessoa, ao sujeito e ao acto
humano. Os seus dinamismos não poderiam constituir pontos de referência para a
opção moral, uma vez que as finalidades destas inclinações seriam só bens
«físicos», chamados por alguns «pré-morais». Fazer-lhes referência,
para procurar indicações racionais sobre a ordem da moralidade, deveria ser
qualificado como fisicismo ou biologismo. Em semelhante contexto, a tensão
entre a liberdade e uma natureza concebida em sentido redutivo, termina numa
divisão no mesmo homem.
Esta teoria moral não está de acordo com a verdade sobre o homem e sobre
a sua liberdade. Contradiz os ensinamentos da Igreja sobre a unidade do
ser humano, cuja alma racional é per se et essentialiter a
forma do corpo. [86] A
alma espiritual e imortal é o princípio de unidade do ser humano, é aquilo pelo
qual este existe como um todo — «corpore et anima unus»[87] —
enquanto pessoa. Estas definições não indicam apenas que o corpo, ao qual é
prometida a ressurreição, também participará da glória; elas lembram igualmente
a ligação da razão e da vontade livre com todas as faculdades corpóreas e
sensíveis. A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente confiada a si
própria, e é na unidade da alma e do corpo que ela é o sujeito dos próprios
actos morais. A pessoa, através da luz da razão e do apoio da virtude,
descobre no seu corpo os sinais prévios, a expressão e a promessa do dom de si,
de acordo com o sábio desígnio do Criador. É à luz da dignidade da pessoa
humana — que se afirma por si própria — que a razão depreende o valor moral
específico de alguns bens, aos quais a pessoa está naturalmente inclinada. E
tendo em vista que a pessoa humana não é redutível a uma liberdade que se autoprojecta,
mas comporta uma estrutura espiritual e corpórea determinada, a exigência moral
originária de amar e respeitar a pessoa como um fim e nunca como um simples
meio, implica também, intrinsecamente, o respeito de alguns bens fundamentais,
sem os quais cai-se no relativismo e no arbitrário.
49. Uma doutrina que separe o acto moral das dimensões corpóreas
do seu exercício, é contrária aos ensinamentos da Sagrada Escritura e da
Tradição: essa doutrina faz reviver, sob novas formas, alguns velhos
erros sempre combatidos pela Igreja, porquanto reduzem a pessoa humana a uma
liberdade «espiritual», puramente formal. Esta redução desconhece o significado
moral do corpo e dos comportamentos que a ele se referem (cf. 1
Cor 6, 19). O apóstolo Paulo
declara excluídos do Reino dos céus os «imorais, idólatras, adúlteros,
efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e salteadores»
(cf. 1 Cor 6, 9-10). Tal condenação — assumida pelo
Concílio de Trento [88] —
enumera como «pecados mortais», ou «práticas infames», alguns comportamentos
específicos, cuja aceitação voluntária impede os crentes de terem parte na
herança prometida. De facto, corpo e alma são inseparáveis: na
pessoa, no agente voluntário e no acto deliberado, eles salvam-se ou
perdem-se juntos.
50. Pode-se agora compreender o verdadeiro significado da lei natural:
ela refere-se à natureza própria e original do homem, à «natureza da pessoa
humana»,[89] que
é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade das
suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras
características específicas, necessárias para a obtenção do seu fim. «A lei
moral natural exprime e prescreve as finalidades, os direitos e os deveres que se
fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana. Portanto,
não pode ser concebida como uma tendência normativa meramente biológica, mas
deve ser definida como a ordem racional segundo a qual o homem é chamado pelo
Criador a dirigir e regular a sua vida e os seus actos e, particularmente, a
usar e dispor do próprio corpo».[90]Por
exemplo, a origem e o fundamento do dever de respeitar absolutamente a vida
humana devem-se encontrar na dignidade própria da pessoa, e não simplesmente na
inclinação natural para conservar a própria vida física. Assim, a vida humana,
mesmo sendo um bem fundamental do homem, ganha um significado moral pela
referência ao bem da pessoa, que deve ser sempre afirmada por si própria:
enquanto é sempre moralmente ilícito matar um ser humano inocente, pode ser
lícito, louvável ou até mesmo obrigatório dar a própria vida (cf. Jo 15,
13) por amor do próximo ou em testemunho da verdade. Na realidade, só fazendo
referência à pessoa humana na sua «totalidade unificada», ou seja, «alma que se
exprime no corpo e corpo informado por um espírito imortal»,[91] pode
ser lido o significado especificamente humano do corpo. Com efeito, as
inclinações naturais adquirem dimensão moral, apenas enquanto se referem à
pessoa humana e à sua autêntica realização, a qual, por seu lado, pode
acontecer sempre e somente na natureza humana. Rejeitando as manipulações da
corporeidade que alteram o seu significado humano, a Igreja serve o homem indicando-lhe o caminho do verdadeiro amor, o
único onde ele pode encontrar o verdadeiro Deus.
A lei natural, assim entendida, não deixa espaço à divisão entre
liberdade e natureza. De facto, estas estão harmonicamente ligadas entre si, e
intimamente aliadas uma à outra.
«Mas ao princípio não foi assim» (Mt 19, 8)
51. O suposto conflito entre liberdade e natureza repercute-se também
sobre a interpretação de alguns aspectos específicos da lei natural, sobretudo
da sua universalidade e imutabilidade. «Onde estão, pois, escritas
estas regras — perguntava-se S. Agostinho — a não ser no livro daquela luz que
se chama verdade? Daqui, portanto, é ditada toda a lei justa e se transfere
directamente ao coração do homem que pratica a justiça, não vivendo aí como
estrangeira, mas quase que imprimindo-se nele, à semelhança da imagem que passa
do anel à cera, sem abandonar todavia o anel».[92]
Graças precisamente a esta «verdade», a lei natural implica a
universalidade. Aquela, enquanto inscrita na natureza racional da
pessoa, impõe-se a todo o ser dotado de razão e presente na história. Para se
aperfeiçoar na sua ordem específica, a pessoa deve fazer o bem e evitar o mal,
deve vigiar pela transmissão e conservação da vida, aperfeiçoar e desenvolver
as riquezas do mundo sensível, promover a vida social, procurar o verdadeiro,
praticar o bem, contemplar a beleza. [93]
A cisão criada por alguns entre a liberdade dos indivíduos e a natureza
comum a todos, como emerge de certas teorias filosóficas de grande repercussão
na cultura contemporânea, obscurece a percepção da universalidade da lei moral
por parte da razão. Mas, enquanto exprime a dignidade da pessoa humana e põe a
base dos seus direitos e deveres fundamentais, a lei natural é universal nos
seus preceitos e a sua autoridade estende-se a todos os homens. Esta
universalidade não prescinde da individualidade dos seres humanos, nem
se opõe à unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa: pelo contrário, abraça
pela raiz cada um dos seus actos livres, que devem atestar a universalidade do
verdadeiro bem. Submetendo-se à lei comum, os nossos actos edificam a
verdadeira comunhão das pessoas e, pela graça de Deus, exercem a caridade,
«vínculo da perfeição» (Col 3, 14). Quando, pelo contrário,
desconhecem ou simplesmente ignoram a lei, de forma imputável ou não, os nossos
actos ferem a comunhão das pessoas, com prejuízo para todos.
52. É justo e bom, sempre e para todos, servir a Deus, prestar-Lhe o
culto devido e honrar verdadeiramente os
pais. Tais preceitos positivos, que prescrevem cumprir
certas acções e promover determinadas atitudes, obrigam universalmente; são
imutáveis; [94] congregam
no mesmo bem comum todos os homens de cada época da história, criados para «a
mesma vocação e o mesmo destino divino».[95] Estas
leis universais e permanentes correspondem a conhecimentos da razão prática e
são aplicadas aos actos particulares através do juízo da consciência. O sujeito
agente assimila pessoalmente a verdade contida na lei: apropria-se, faz sua
esta verdade do seu ser, mediante os actos e as correlativas virtudes. Os preceitos
negativos da lei natural são universalmente válidos: obrigam a todos e
cada um, sempre e em qualquer circunstância. Trata-se, com efeito, de
proibições que vetam uma determinada acção semper et pro semper, sem
excepções, porque a escolha de um tal comportamento nunca é compatível com a
bondade da vontade da pessoa que age, com a sua vocação para a vida com Deus e
para a comunhão com o próximo. É proibido a cada um e sempre infringir
preceitos que vinculam, todos e a qualquer preço, a não ofender em ninguém e,
antes de mais, em si próprio, a dignidade pessoal e comum a todos.
Por outro lado, o facto de que apenas os mandamentos negativos obrigam
sempre e em qualquer circunstância, não significa que na vida moral as
proibições sejam mais importantes que o compromisso de praticar o bem indicado
pelos mandamentos positivos. O motivo é sobretudo o seguinte: o mandamento do
amor de Deus e do próximo não tem, na sua dinâmica positiva, qualquer limite
superior, mas possui limite inferior, abaixo do qual se viola o mandamento.
Além disso, o que deve ser feito numa determinada situação depende das
circunstâncias, que não se podem prever todas de antemão; pelo contrário, há
comportamentos que em nenhuma situação e jamais podem ser uma resposta adequada
— isto é, conforme à dignidade da pessoa. Enfim, é sempre possível que o homem,
por coacção ou por outras circunstâncias, seja impedido de levar a cabo
determinadas acções boas; porém, nunca pode ser impedido de não fazer certas
acções, sobretudo se ele está disposto a morrer antes que fazer o mal.
A Igreja sempre ensinou que nunca se devem escolher comportamentos
proibidos pelos mandamentos morais, expressos de forma negativa no Antigo e no
Novo Testamento. Como vimos, Jesus mesmo reitera a irrevogabilidade destas
proibições: «Se queres entrar na vida, cumpre os mandamentos (...): não
matarás; não cometerás adultério; não roubarás, não levantarás falso testemunho»
(Mt 19, 17-18).
53. A grande sensibilidade, que o homem contemporâneo testemunha pela
historicidade e pela cultura, leva alguns a duvidar da imutabilidade
da mesma lei natural, e consequentemente, da
existência de «normas objectivas de moralidade» [96],
válidas para todos os homens do presente e do futuro, como o foram já para os
do passado: será possível afirmar como válidas universalmente para todos e
sempre permanentes certas determinações racionais estabelecidas no passado,
quando se ignorava o progresso que a humanidade haveria de fazer
posteriormente?
Não se pode negar que o homem sempre existe dentro de uma cultura
particular, mas também não se pode negar que o homem não se esgota nesta mesma
cultura. De resto, o próprio progresso das culturas demonstra que, no homem,
existe algo que transcende as culturas. Este «algo» é precisamente a
natureza do homem: esta natureza é exactamente a medida da cultura, e
constitui a condição para que o homem não seja prisioneiro de nenhuma das suas
culturas, mas afirme a sua dignidade pessoal pelo viver conforme à verdade
profunda do seu ser. Pôr em discussão os elementos estruturais permanentes do
homem, conexos também com a própria dimensão corpórea, não só estaria em
conflito com a experiência comum, mas tornaria incompreensível a
referência que Jesus fez ao «princípio», precisamente onde o contexto
social e cultural da época tinha deformado o sentido original e o papel de
algumas normas morais (cf. Mt 19, 1-9). Neste sentido, a
Igreja afirma que «subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que
não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem,
hoje e para sempre».[97] É
Ele o «Princípio» que, tendo assumido a natureza humana, a ilumina definitivamente
nos seus elementos constitutivos e no seu dinamismo de caridade para com Deus e
o próximo. [98]
Ocorre, sem dúvida, procurar e encontrar, para as normas morais
universais e permanentes, a formulação mais adequada aos
diversos contextos culturais, mais capaz de lhes exprimir incessantemente a
actualidade histórica, de fazer compreender e interpretar autenticamente a sua
verdade. Esta verdade da lei moral — como a do «depósito da fé» — explicita-se
ao longo dos séculos: as normas que a exprimem, permanecem válidas em sua
substância, mas devem ser precisadas e determinadas «eodem sensu
eademque sententia » [99] conforme
as circunstâncias históricas do Magistério da Igreja, cuja decisão é precedida
e acompanhada pelo esforço de leitura e de formulação próprio da razão dos
crentes e da reflexão teológica. [100]
II. A consciência e a verdade
O santuário do homem
54. A relação que existe entre a liberdade do homem e a lei de Deus tem
a sua sede viva no «coração» da pessoa, ou seja, na sua consciência
moral: «No fundo da própria consciência — escreve o Concílio Vaticano
II — o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve
obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal,
soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo.
O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus: a sua dignidade está
em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado (cf. Rm 2,
14-16)». [101]
Por isso, o modo como se concebe a relação entre a liberdade e a lei
está ligado intimamente com a interpretação que se atribui à consciência moral.
Neste sentido, as tendências culturais acima indicadas, que contrapõem e
separam entre si a liberdade e a lei, e exaltam idolatricamente a liberdade,
conduzem a uma interpretação «criativa» da consciência moral, que
se afasta da posição da tradição da Igreja e do seu Magistério.
55. Segundo a opinião de vários teólogos, a função da consciência teria
sido reduzida, pelo menos num certo período do passado, a uma simples aplicação
de normas morais gerais aos casos individuais da vida da pessoa. Mas, tais
normas — dizem — não podem ser capazes de acolher e respeitar toda a
irrepetível especificidade de cada um dos actos concretos das pessoas; podem,
de algum modo, contribuir para uma justa avaliação da
situação, mas não podem substituir as pessoas quando tomam uma decisão pessoal
sobre o modo como comportar-se nos determinados casos particulares. Mais, a
crítica acima indicada à interpretação tradicional da natureza humana e da sua
importância para a vida moral induz alguns autores a afirmarem que estas normas
não são tanto um critério objectivo vinculante para os juízos da consciência,
como sobretudo uma perspectiva geral que ajuda o homem, numa
primeira estimativa, a ordenar a sua vida pessoal e social. Além disso, eles
põem em relevo a complexidade típica do fenómeno da
consciência: esta relaciona-se profundamente com toda a esfera psicológica e
afectiva e com os múltiplos influxos do ambiente social e cultural da pessoa.
Por outro lado, exalta-se ao máximo o valor da consciência, que o próprio
Concílio definiu «o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus,
cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser».[102] Esta
voz — diz-se — induz o homem não tanto a uma observância meticulosa das normas
universais, como sobretudo a uma assunção criativa e responsável das tarefas
pessoais que Deus lhe confia.
Ao querer pôr em evidência o carácter «criativo» da consciência, alguns
autores já não chamam os seus actos com o nome de «juízos», mas «decisões»: só
assumindo «autonomamente» estas decisões é que o homem poderia alcançar a sua
maturidade moral. Não falta mesmo quem considere que este processo de
amadurecimento seria dificultado pela posição demasiado categórica, que, em
muitas questões morais, assume o Magistério da Igreja, cujas intervenções
seriam causa do despertar de inúteis conflitos de consciência nos
fiéis.
56. Para justificar semelhantes posições, alguns propuseram uma espécie
de duplo estatuto da verdade moral. Para além do nível doutrinal e abstracto,
seria necessário reconhecer a originalidade de uma certa consideração
existencial mais concreta. Esta, tendo em conta as circunstâncias e a situação,
poderia legitimamente estabelecer excepções à regra geral permitindo
desta forma cumprir praticamente, em boa consciência, aquilo que a lei moral
qualifica como intrinsecamente mau. Deste modo, instala-se, em alguns casos,
uma separação, ou até oposição entre a doutrina do preceito válido em geral e a
norma da consciência individual, que decidiria, de facto, em última instância,
o bem e o mal. Sobre esta base, pretende-se estabelecer a legitimidade de
soluções chamadas «pastorais», contrárias aos ensinamentos do Magistério, e
justificar uma hermenêutica «criadora», segundo a qual a consciência moral não
estaria de modo algum obrigada, em todos os casos, por um preceito negativo
particular.
É impossível não ver como, nestas posições, é posta em questão a identidade
mesma da consciência moral, face à liberdade do homem e à lei de Deus.
Apenas o esclarecimento precedente sobre a relação entre liberdade e lei,
apoiada na verdade, torna possível o discernimento acerca desta interpretação
«criativa» da consciência.
O juízo da consciência
57. O mesmo texto da Carta aos Romanos, que nos fez ver
a essência da lei natural, também indica o sentido bíblico da
consciência, especialmente na sua conexão específica com a
lei: «Porque, quando os gentios, que não têm lei, cumprem naturalmente
os preceitos da lei, não tendo eles lei, a si mesmos servem de lei. Deste modo,
demonstram que o que a lei ordena está escrito nos seus corações, dando-lhes
testemunho disso a sua consciência e os seus pensamentos, quer acusando-os,
quer defendendo-os» (Rm 2, 14-15).
De acordo com as palavras de S. Paulo, a consciência, de certo modo, põe
o homem perante a lei, tornando-se ela mesma «testemunha» para o
homem: testemunha da sua fidelidade ou infidelidade relativamente à
lei, ou seja, da sua essencial rectidão ou maldade moral. A consciência é a
única testemunha: o que acontece na intimidade da pessoa fica velado aos olhos
de quem vê de fora. Ela dirige o seu testemunho somente à própria pessoa. E,
por sua vez, só esta conhece a própria resposta à voz da consciência.
58. Jamais se apreciará adequadamente a importância deste íntimo diálogo
do homem consigo mesmo. Mas, na verdade, este é o diálogo do
homem com Deus, autor da lei, modelo primeiro e fim último do homem.
«A consciência — escreve S. Boaventura — é como o arauto de Deus e o seu
mensageiro, e o que diz não o ordena de si própria mas como proveniente de
Deus, à semelhança de um arauto quando proclama o édito do rei. E disto deriva
o facto de a consciência ter a força de obrigar».[103] Portanto,
pode-se dizer que a consciência dá ao próprio homem o testemunho da sua
rectidão ou da sua maldade, mas conjuntamente, e antes mesmo, é
testemunho do próprio Deus, cuja voz e juízo penetram no íntimo do homem
até às raízes da sua alma, chamando-o fortiter et suaviter à
obediência: «A consciência moral não encerra o homem dentro de uma solidão
intransponível e impenetrável, mas abre-o à chamada, à voz de Deus. Nisto, e em
nada mais, se encontra todo o mistério e dignidade da consciência moral: em ser
o lugar, o espaço santo no qual Deus fala ao homem».[104]
59. S. Paulo não se limita a reconhecer que a consciência faz de
«testemunha», mas revela também o modo como ela cumpre uma tal função. Trata-se
de «pensamentos», que acusam ou defendem os gentios relativamente aos seus
comportamentos (cf. Rm 2, 15). O termo «pensamentos» põe em
evidência o carácter próprio da consciência, o de ser um juízo moral
sobre o homem e sobre os seus actos: é um juízo de absolvição ou de
condenação, segundo os actos humanos são ou não conformes com a lei de Deus
inscrita no coração. E é precisamente acerca do julgamento dos actos e,
simultaneamente, do seu autor e do momento da sua definitiva actuação que fala
o Apóstolo, no mesmo texto: «Como se verá no dia em que Deus julgar, por Jesus
Cristo, as acções secretas dos homens, segundo o meu Evangelho» (Rm 2,
16).
O juízo da consciência é um juízo prático, ou seja, um
juízo que dita aquilo que o homem deve fazer ou evitar, ou então avalia um acto
já realizado por ele. É um juízo que aplica a uma situação concreta a convicção
racional de que se deve amar e fazer o bem e evitar o mal. Este primeiro
princípio da razão prática pertence à lei natural, mais, constitui o seu
próprio fundamento, enquanto exprime aquela luz originária sobre o bem e o mal,
reflexo da sabedoria criadora de Deus, que, como uma centelha indelével (scintilla
animae), brilha no coração de cada homem. Mas, enquanto a lei natural põe
em evidência as exigências objectivas e universais do bem moral, a consciência
é a aplicação da lei ao caso particular, a qual se torna assim para o homem um
ditame interior, uma chamada a realizar o bem na realidade concreta da
situação. A consciência formula assim a obrigação moral à luz
da lei natural: é a obrigação de fazer aquilo que o homem, mediante o acto da
sua consciência, conhece como um bem que lhe é imposto aqui
e agora. O carácter universal da lei e da obrigação não é anulado,
antes fica reconhecido, quando a razão determina as suas aplicações na
realidade concreta. O juízo da consciência afirma por último a conformidade de
um certo comportamento concreto com a lei; ele formula a norma próxima da
moralidade de um acto voluntário, realizando «a aplicação da lei objectiva a um
caso particular».[105]
60. Tal como a mesma lei natural e cada conhecimento prático, também o
juízo da consciência tem carácter imperativo: o homem deve agir de
acordo com ele. Se o homem age contra esse juízo, ou realiza um determinado
acto ainda sem a certeza da sua rectidão e bondade, é condenado pela própria
consciência, norma próxima da moralidade pessoal. A dignidade
desta instância racional e a autoridade da sua voz e dos seus juízos derivam
da verdade sobre o bem e o mal moral, que aquela é chamada a
escutar e a exprimir.
Esta verdade é indicada pela «lei divina», norma universal e
objectiva da moralidade. O juízo da consciência não estabelece a lei,
mas atesta a autoridade da lei natural e da razão prática face ao bem supremo,
do qual a pessoa humana se sente atraída e acolhe os mandamentos: «A
consciência não é uma fonte autónoma e exclusiva para decidir o que é bom e o
que é mau; pelo contrário, nela está inscrito profundamente um princípio de
obediência relacionado com a norma objectiva, que fundamenta e condiciona a
conformidade das suas decisões com os mandamentos e as proibições que estão na
base do comportamento humano».[106]
61. A verdade sobre o bem moral, declarada na lei da razão, é
reconhecida prática e concretamente pelo juízo da consciência, o qual leva a
assumir a responsabilidade do bem realizado e do mal cometido: se o homem
comete o mal, o recto juízo da sua consciência permanece nele testemunha da
verdade universal do bem, como também da malícia da sua escolha particular. Mas
o veredicto da consciência permanece nele ainda como um penhor de esperança e
de misericórdia: enquanto atesta o mal cometido, lembra também o perdão a
pedir, o bem a praticar e a virtude a cultivar sempre, com a graça de Deus.
Desta forma, no juízo prático da consciência, que impõe
à pessoa a obrigação de cumprir um determinado acto, revela-se o
vínculo da liberdade com a verdade. Precisamente por isso a
consciência se exprime com actos de «juízo» que reflectem a verdade do bem, e
não com «decisões» arbitrárias. E a maturidade e responsabilidade daqueles
juízos — e, em definitivo, do homem que é o seu sujeito — medem-se, não pela
libertação da consciência da verdade objectiva em favor de uma suposta
autonomia das próprias decisões, mas, ao contrário, por uma procura insistente
da verdade deixando-se guiar por ela no agir.
Procurar a verdade e o bem
62. A consciência, como juízo de um acto, não está isenta da
possibilidade de erro. «Não raro porém acontece que a consciência erra, por
ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não
se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem, e
quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado».[107] Com
estas breves palavras, o Concílio oferece uma síntese da doutrina que a Igreja,
ao longo dos séculos, elaborou sobre a consciência errónea.
Sem dúvida, o homem, para ter uma «boa consciência» (1 Tim 1,
5), deve procurar a verdade e julgar segundo esta mesma verdade. Como diz o
apóstolo Paulo, a consciência deve ser iluminada pelo Espírito Santo (cf. Rm 9,
1), deve ser «pura» (2 Tim 1, 3), não deve com astúcia adulterar a
palavra de Deus, mas manifestar claramente a verdade (cf. 2 Cor 4,
2). Por outro lado, o mesmo Apóstolo adverte os cristãos, dizendo: «Não vos conformeis com a mentalidade deste
mundo mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, a fim de conhecerdes a
vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (Rm 12,
2).
O aviso de Paulo convida-nos à vigilância, advertindo-nos de que, nos
juízos da nossa consciência, sempre se esconde a possibilidade do erro.
Ela não é um juiz infalível: pode errar. Todavia o erro da
consciência pode ser fruto de uma ignorância invencível, isto
é, de uma ignorância de que o sujeito não é consciente e donde não pode sair
sozinho.
Quando essa ignorância invencível não é culpável, lembra-nos o Concílio,
a consciência não perde a sua dignidade, porque ela, mesmo orientando-nos
efectivamente de um modo discordante com a ordem moral objectiva, não deixa de
falar em nome daquela verdade do bem que o sujeito é chamado a procurar
sinceramente.
63. De qualquer forma, é sempre da verdade que deriva a dignidade da
consciência: no caso da consciência recta, trata-se da verdade
objectiva acolhida pelo homem; no da consciência errónea, trata-se
daquilo que o homem errando considera subjectivamente verdadeiro.
Nunca é aceitável confundir um erro «subjectivo» acerca do bem moral com a
verdade «objectiva», racionalmente proposta ao homem em virtude do seu fim, nem
equiparar o valor moral do acto cumprido com uma consciência verdadeira e
recta, àquele realizado seguindo o juízo de uma consciência errónea. [108] O
mal cometido por causa de uma ignorância invencível ou de um erro de juízo não
culpável, pode não ser imputado à pessoa que o realiza; mas, também neste caso,
aquele não deixa de ser um mal, uma desordem face à verdade do bem. Além disso,
o bem não reconhecido não contribui para o crescimento moral da pessoa que o
cumpre: não a aperfeiçoa nem serve para encaminhá-la ao supremo bem. Assim,
antes de nos sentirmos facilmente justificados em nome da nossa consciência,
deveríamos meditar nas palavras do Salmo: «Quem poderá discernir todos os
erros? Purificai-me das faltas escondidas» (Sal 19, 13). Existem
faltas que não conseguimos ver e que, não obstante, permanecem culpáveis,
porque nos recusamos a caminhar para a luz (cf. Jo 9, 39-41).
A consciência, como juízo último concreto, compromete a sua dignidade
quando é culpavelmente errónea, ou seja, «quando o homem não
se preocupa de buscar a verdade e o bem, e quando a consciência se torna quase
cega em consequência do hábito ao pecado».[109] Jesus
alude aos perigos da deformação da consciência, quando admoesta: «A lâmpada do
corpo é o olho; se o teu olho estiver são, todo o teu corpo andará iluminado.
Se, porém, o teu olho for mau, todo o teu corpo andará em trevas. Portanto, se
a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão essas trevas!» (Mt 6,
22-23).
64. Nas palavras de Jesus agora referidas, encontramos também o apelo
para formar a consciência, fazendo-a objecto de contínua
conversão à verdade e ao bem. Análoga é a exortação do Apóstolo a não se
conformar com a mentalidade deste mundo, mas a transformar-se pela renovação da
própria mente (cf. Rm 12, 2). Na verdade, o «coração»
convertido ao Senhor e ao amor do bem é a fonte dos juízos verdadeiros da
consciência. Com efeito, «para poder conhecer a vontade de Deus, o que é bom, o
que Lhe é agradável e o que é perfeito» (Rm 12, 2), é necessário o
conhecimento da lei de Deus em geral, mas aquele não é suficiente: é
indispensável uma espécie de «conaturalidade» entre o homem
e o verdadeiro bem. [110] Esta
conaturalidade fundamenta-se e desenvolve-se nos comportamentos virtuosos do
mesmo homem: a prudência e as outras virtudes cardeais, e, antes ainda as
virtudes teologais da fé, esperança e caridade. Neste sentido, disse Jesus: «Quem pratica a verdade aproxima-se da luz»
(Jo 3, 21).
Uma grande ajuda para a
formação da consciência têm-na os cristãos, na Igreja e no seu
Magistério, como afirma o Concílio: «Os fiéis, por sua vez, para
formarem a sua própria consciência, devem atender diligentemente à doutrina
sagrada e certa da Igreja. Pois, por
vontade de Cristo, a Igreja Católica é mestra da verdade, e tem por encargo dar
a conhecer e ensinar autenticamente a Verdade que é Cristo, e ao mesmo tempo
declara e confirma, com a sua autoridade, os princípios de ordem moral que
dimanam da natureza humana».[111] Portanto,
a autoridade da Igreja, que se pronuncia sobre as questões morais, não lesa de
modo algum a liberdade de consciência dos cristãos: não apenas porque a
liberdade da consciência nunca é liberdade «da» verdade, mas sempre e só «na»
verdade; mas também porque o Magistério não apresenta à consciência cristã
verdades que lhe são estranhas, antes manifesta as verdades que deveria já possuir,
desenvolvendo-as a partir do acto originário da fé. A Igreja põe-se sempre e só
ao serviço da consciência, ajudando-a a não se deixar levar cá
e lá por qualquer sopro de doutrina, ao sabor da maldade dos homens (cf. Ef 4,
14), a não se desviar da verdade sobre o bem do homem, mas, especialmente nas
questões mais difíceis, a alcançar com segurança a verdade e a permanecer nela.
III. A opção fundamental e os comportamentos concretos
«Não tomeis, porém, a liberdade, como pretexto para servir a
carne» (Gál 5, 13)
65. O interesse pela liberdade, hoje particularmente sentido, induz
muitos estudiosos de ciências, quer humanas quer teológicas, a desenvolver uma
análise mais profunda da sua natureza e dos seus dinamismos. Salienta-se
acertadamente que a liberdade não é só a escolha desta ou daquela acção
particular; mas é também, dentro duma tal escolha, decisão sobre si
mesmo e determinação da própria vida a favor ou contra o Bem, a favor
ou contra a Verdade, em última análise, a favor ou contra Deus. Justamente se
destaca a elevada importância de algumas opções, que dão «forma» a toda a vida
moral de um homem, configurando-se como o sulco dentro do qual poderão
encontrar espaço e incremento as demais escolhas quotidianas particulares.
Alguns autores, porém, propõem uma revisão bem mais radical da relação
entre pessoa e actos. Falam de uma «liberdade fundamental», mais
profunda e diversa da liberdade de escolha, fora da qual não se poderiam
compreender nem julgar correctamente os actos humanos. De acordo com esses
autores, o papel chave na vida moral deveria ser atribuído a
uma «opção fundamental», actuada por aquela liberdade fundamental, com que a
pessoa decide globalmente de si própria, não através de uma escolha determinada
e consciente a nível reflexo, mas de maneira «transcendental» e «atemática».
Os actos particulares, derivados desta opção, constituiriam
somente tentativas parciais e nunca decisivas de exprimi-la, seriam apenas
«sinais» ou sintomas dela. Objecto imediato destes actos — diz-se — não é o Bem
absoluto (diante do qual se exprimiria, a nível transcendental, a liberdade da
pessoa), mas são os bens particulares (também chamados «categoriais»). Ora,
segundo a opinião de alguns teólogos, nenhum destes bens, por sua natureza
parciais, poderia determinar a liberdade do homem como pessoa na sua
totalidade, mesmo que o homem só pudesse exprimir a própria opção fundamental,
mediante a sua realização ou a sua recusa.
Deste modo, chega-se a introduzir uma distinção entre a opção
fundamental e as escolhas deliberadas de um comportamento concreto, uma
distinção que, nalguns autores, assume a forma de uma separação, já que eles
restringem expressamente o «bem» e o «mal» moral à dimensão transcendental
própria da opção fundamental, qualificando como «justas» ou «erradas» as
escolhas de comportamentos particulares «intramundanos», isto é, referentes às
relações do homem consigo próprio, com os outros e com o mundo das coisas.
Parece assim delinear-se, no interior do agir humano, uma cisão entre dois
níveis de moralidade: por um lado, a ordem do bem e do mal que depende da
vontade, e, por outro, os comportamentos determinados, que são julgados como
moralmente justos ou errados, somente em função de um cálculo técnico da
proporção entre bens e males «pré-morais» ou «físicos», que efectivamente
resultam da acção. E isto até ao ponto de um comportamento concreto, mesmo
escolhido livremente, ser considerado como um processo simplesmente físico, e
não segundo os critérios próprios de um acto humano. O resultado a que se chega,
é reservar a qualificação propriamente moral da pessoa à opção fundamental,
subtraindo-a total ou parcialmente à escolha dos actos particulares, dos
comportamentos concretos.
66. Não há dúvida que a doutrina moral cristã, em suas mesmas raízes
bíblicas, reconhece a importância específica de uma opção fundamental que
qualifica a vida moral e que compromete radicalmente a liberdade diante de
Deus. Trata-se da escolha da fé, da obediência da
fé (cf. Rm 16, 26), pela qual «o homem entrega-se
total e livremente a Deus prestando "a Deus revelador o obséquio pleno da
inteligência e da vontade"».[112] Esta
fé, que opera mediante a caridade (cf. Gál 5, 6), provém do
mais íntimo do homem, do seu «coração» (cf. Rm 10, 10), e daí
é chamada a frutificar nas obras (cf. Mt 12, 33-35; Lc 6,
43-45; Rm 8, 5-
8; Gál 5, 22). No Decálogo ao início dos diversos
mandamentos, aparece a cláusula fundamental: «Eu sou o
Senhor, teu Deus...» (Êx 20, 2), a qual, imprimindo o
sentido original às múltiplas e variadas prescrições particulares, assegura à
moral da Aliança uma fisionomia de globalidade, unidade e profundidade. A opção
fundamental de Israel refere-se então ao mandamento fundamental (cf. Jos 24,
14-25; Êx 19, 3-8; Miq 6, 8). Também a moral
da Nova Aliança está dominada pelo apelo fundamental de Jesus para O «seguir» —
assim diz Ele ao jovem: «Se queres ser perfeito (...) vem e segue-me» (Mt 19,
21) —: a este apelo, o discípulo responde com uma decisão e escolha radical. As
parábolas evangélicas do tesouro e da pérola preciosa, pela qual se vende tudo
o que se possui, são imagens eloquentes e efectivas do carácter radical e incondicionado
da opção exigida pelo Reino de Deus. A radicalidade da escolha de seguir Jesus
está maravilhosamente expressa nas suas palavras: «O que quiser salvar a sua
vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho,
salvá-la-á» (Mc 8, 35).
O apelo de Jesus «vem e segue-Me» indica a máxima exaltação possível da
liberdade do homem e, ao mesmo tempo, atesta a verdade e a obrigação de actos
de fé e de decisões que se podem designar como opção fundamental. Uma análoga
exaltação da liberdade humana, encontramo-la nas palavras de S. Paulo: «Vós,
irmãos, fostes chamados à liberdade» (Gál 5, 13). Mas o Apóstolo
acrescenta imediatamente uma grave admoestação: «Não tomeis, porém, a liberdade
como pretexto para servir a carne». Nesta advertência, ressoam as suas palavras
precedentes: «Cristo nos libertou, para que permaneçamos livres. Ficai,
portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão» (Gál 5,
1).
O apóstolo Paulo convida-nos à vigilância: a liberdade está sempre ameaçada
pela insídia da escravidão. E é precisamente este o caso de um acto de fé — no
sentido de uma opção fundamental — que seja separado da escolha dos actos
particulares, conforme opinavam as tendências acima recordadas.
67. Estas tendências são, pois, contrárias ao ensinamento bíblico, que
concebe a opção fundamental como uma verdadeira e própria escolha da liberdade
e une profundamente uma tal escolha com os actos particulares. Pela opção
fundamental, o homem é capaz de orientar a sua vida e tender, com a ajuda da
graça, para o seu fim, seguindo o apelo divino. Mas esta capacidade
exercita-se, de facto, nas escolhas particulares de actos determinados, pelos
quais o homem se conforma deliberadamente com a vontade, a sabedoria e a lei de
Deus. Portanto, deve-se afirmar que a chamada opção fundamental, na
medida em que se diferencia de uma intenção genérica e, por
conseguinte, ainda não determinada numa forma vinculante da liberdade, realiza-se
sempre através de escolhas conscientes e livres. Precisamente por
isso, ela fica revogada quando o homem compromete a sua liberdade em
escolhas conscientes de sentido contrário, relativas a matéria moral grave.
Separar a opção fundamental dos comportamentos concretos, significa
contradizer a integridade substancial ou a unidade pessoal do agente moral no
seu corpo e alma. Uma opção fundamental, que não considere explicitamente as
potencialidades que põe em acto e as determinações que a exprimem, não se
ajusta à finalidade racional imanente ao agir do homem e a cada uma das suas
escolhas deliberadas. Na verdade, a moralidade dos actos humanos não se deduz
somente da intenção, da orientação ou opção fundamental, interpretada no
sentido de uma intenção vazia de conteúdos vinculantes bem determinados ou de
uma intenção à qual não corresponda um esforço real nas distintas obrigações da
vida moral. A moralidade não pode ser julgada, se se prescinde da conformidade
ou oposição da escolha deliberada de um comportamento concreto relativamente à
dignidade e à vocação integral da pessoa humana. Cada escolha implica sempre
uma referência da vontade deliberada aos bens e aos males, indicados pela lei
natural como bens a praticar e males a evitar. No caso dos preceitos morais
positivos, a prudência tem sempre a função de verificar a sua oportunidade numa
determinada situação, por exemplo tendo em conta outros deveres quem sabe mais
importantes ou urgentes. Mas os preceitos morais negativos, ou seja, os que
proibem alguns actos ou comportamentos concretos como intrinsecamente maus, não
admitem qualquer legítima excepção; eles não deixam nenhum espaço moralmente
aceitável para a «criatividade» de qualquer determinação contrária. Uma vez
reconhecida, em concreto, a espécie moral de uma acção proibida por uma regra
universal, o único acto moralmente bom é o de obedecer à lei moral e abster-se
da acção que ela proibe.
68. Deve-se acrescentar aqui uma importante consideração pastoral. Pela
lógica das posições acima descritas, o homem poderia, em virtude de uma opção
fundamental, permanecer fiel a Deus, independentemente da conformidade ou não
de algumas das suas escolhas e dos seus actos determinados com as normas ou
regras morais específicas. Devido a uma opção originária pela caridade, o homem
poderia manter-se moralmente bom, perseverar na graça de Deus, alcançar a
própria salvação, mesmo se alguns dos seus comportamentos concretos fossem
deliberada e gravemente contrários aos mandamentos de Deus, reafirmados pela
Igreja.
Na verdade, o homem não se perde só pela infidelidade àquela opção fundamental,
pela qual ele se entregou «total e deliberadamente a Deus».[113] Em cada pecado mortal cometido deliberadamente,
ele ofende a Deus que deu a lei e torna-se, portanto, culpável perante toda a
lei (cf. Tg 2, 8-11); mesmo conservando-se na fé, ele
perde a «graça santificante», a «caridade» e a «bem-aventurança eterna».[114] «A
graça da justificação — ensina o Concílio de Trento —, uma vez recebida, pode
ser perdida não só pela infidelidade que faz perder a mesma fé, mas também por
qualquer outro pecado mortal».[115]
Pecado mortal e venial
69. As considerações em torno da opção fundamental induziram, como
acabamos de ver, alguns teólogos a submeterem também a profunda revisão a
distinção tradicional entre pecados mortais e pecados veniais. Eles
sublinham que a oposição à lei de Deus, que causa a perda da graça santificante
— e, no caso de morte neste estado de pecado, a eterna condenação — pode ser
somente o fruto de um acto que empenhe a pessoa na sua totalidade, isto é, um
acto de opção fundamental. Segundo esses teólogos, o pecado mortal, que separa
o homem de Deus, verificar-se-ia somente na rejeição de Deus, feita a um nível
da liberdade que não é identificável com um acto de escolha, nem alcançável com
consciência reflexa. Neste sentido — acrescentam —, é difícil, pelos menos
psicologicamente, aceitar o facto de que um cristão, que quer permanecer unido
a Jesus Cristo e à Sua Igreja, possa cometer pecados mortais tão fácil e
repetidamente, como indicaria, às vezes, a mesma «matéria» dos seus actos.
Seria igualmente difícil aceitar que o homem é capaz, num breve espaço de
tempo, de romper radicalmente o ligame de comunhão com Deus e, sucessivamente,
converter-se a Ele por uma sincera penitência. É necessário, portanto, — dizem
— medir a gravidade do pecado mais pelo grau de empenho da liberdade da pessoa
que realiza um acto do que pela matéria de tal acto.
70. A Exortação Apostólica pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia reiterou a importância e a permanente
actualidade da distinção entre pecados mortais e veniais, conforme a tradição
da Igreja. E o Sínodo dos Bispos de 1983, donde procedia tal Exortação, «não só
reafirmou tudo o que foi proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e
a natureza dos pecados mortais e veniais, mas quis ainda lembrar que é pecado
mortal aquele que tem por objecto uma matéria grave e que,
conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado».[116]
A afirmação do Concílio de Trento não considera só a «matéria grave» do
pecado mortal, mas lembra também, como sua condição necessária, «a plena
advertência e o consentimento deliberado». De resto, quer na teologia moral
quer na prática pastoral, são bem conhecidos os casos onde um acto grave, por
causa da sua matéria, não constitui pecado mortal devido à falta de plena
advertência ou do consentimento deliberado de quem o realiza. Por outro lado,
«há-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de"opção
fundamental" — como hoje em dia se costuma dizer — contra Deus»,
entendendo com isso quer um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo,
quer uma recusa implícita e não reflexa do amor. «Dá-se, efectivamente, o
pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo
escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já
está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para
com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta-se de Deus e perde a
caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser
radicalmente modificada por actos particulares. Podem, sem dúvida,
verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista
psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador. Mas, da
consideração da esfera psicológica, não se pode passar para a constituição de
uma categoria teológica, como é precisamente a da "opção
fundamental", entendendo-a de tal modo que, no plano objectivo, mudasse ou
pusesse em dúvida a concepção tradicional de pecado mortal».[117]
Deste modo, a separação entre opção fundamental e escolhas deliberadas
de determinados comportamentos — desordenados em si próprios ou nas
circunstâncias — que não a poriam em causa, supõe o desconhecimento da doutrina
católica sobre o pecado mortal: «Com toda a tradição da Igreja, chamamos pecado
mortal a este acto, pelo qual o homem, com liberdade e advertência
rejeita Deus, a sua lei, a aliança de amor que Deus lhe propõe, preferindo
voltar-se para si mesmo, para qualquer realidade criada e finita, para algo
contrário ao querer divino (conversio ad creaturam). Isto pode acontecer
de modo directo e formal, como nos pecados de idolatria, apostasia e ateísmo;
ou de modo equivalente, como em qualquer desobediência aos mandamentos de Deus
em matéria grave».[118]
IV. O acto moral
Teleologia e teleologismo
71. A relação entre a liberdade do homem e a lei de Deus, que encontra a
sua sede íntima e viva na consciência moral, manifesta-se e realiza-se
nos actos humanos. É precisamente através dos seus actos que o
homem se aperfeiçoa como homem, como homem chamado a procurar espontaneamente o
seu Criador e a chegar livremente, pela adesão a Ele, à perfeição total e
beatífica. [119]
Os actos humanos são actos morais, porque exprimem e
decidem a bondade ou malícia do homem que realiza aqueles actos. [120] Eles
não produzem apenas uma mudança do estado das coisas externas ao homem, mas,
enquanto escolhas deliberadas, qualificam moralmente a pessoa que os faz e
determinam a sua profunda fisionomia espiritual, como sublinha
sugestivamente S. Gregório de Nissa: «Todos os seres sujeitos a transformação
nunca ficam idênticos a si próprios, mas passam continuamente de um estado a
outro por uma mudança que sempre se dá, para o bem ou para o mal (...) Ora, estar
sujeito a mudança é nascer continuamente (...) Mas aqui o nascimento não
acontece por uma intervenção alheia, como se dá nos seres corpóreos (...)
Aquele é o resultado de uma livre escolha e nós somos assim,
de certo modo, os nossos próprios pais, ao criarmo-nos como
queremos, e, pela nossa escolha, dotarmo-nos da forma que queremos».[121]
72. A moralidade dos actos é definida pela relação da
liberdade do homem com o bem autêntico. Um tal bem é estabelecido como lei
eterna pela Sabedoria de Deus, que ordena cada ser para o seu fim: esta lei
eterna é conhecida tanto pela razão natural do homem (e assim é «lei natural»),
como — de modo integral e perfeito — através da revelação sobrenatural de Deus
(sendo assim chamada «lei divina»). O agir é moralmente bom quando as escolhas
da liberdade são conformes ao verdadeiro bem do homem e
exprimem, desta forma, a ordenação voluntária da pessoa para o seu fim último,
isto é, o próprio Deus: o bem supremo, no Qual o homem encontra a sua
felicidade plena e perfeita. A pergunta inicial da conversa do jovem com Jesus:
«Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?» (Mt 19, 16),
põe imediatamente em evidência o nexo essencial entre o valor moral de
um acto e o fim último do homem. Na sua resposta, Jesus confirma a
convicção do seu interlocutor: a realização de actos bons, mandados por Aquele
que «só é bom», constitui a condição indispensável e o caminho para a
bem-aventurança eterna: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os
mandamentos» (Mt 19, 17). A resposta de Jesus com o apelo aos
mandamentos manifesta também que o caminho para o fim último está assinalado
pelo respeito das leis divinas que tutelam o bem humano. Só o acto
conforme ao bem pode ser caminho que conduz à vida.
A ordenação racional do acto humano para o bem na sua verdade e a
procura voluntária deste bem, conhecido pela razão, constituem a moralidade.
Portanto, o agir humano não pode ser considerado como moralmente bom só porque
destinado a alcançar este ou aquele objectivo que persegue, ou simplesmente
porque a intenção do sujeito é boa. [122] O
agir é moralmente bom, quando atesta e exprime a ordenação voluntária da pessoa
para o fim último e a conformidade da acção concreta com o bem humano, tal como
é reconhecido na sua verdade pela razão. Se o objecto da acção concreta não
está em sintonia com o verdadeiro bem da pessoa, a escolha de tal acção torna a
nossa vontade e nós próprios moralmente maus e, portanto, põe-nos em contraste
com o nosso fim último, o bem supremo, isto é, o próprio Deus.
73. O cristão, pela Revelação de Deus e pela fé, conhece a «novidade»
que caracteriza a moralidade dos seus actos; estes são chamados a exprimir a
coerência ou a sua falta relativamente àquela dignidade e vocação, que lhe
foram dadas pela graça: em Jesus Cristo e no Seu Espírito, o cristão é
«criatura nova», filho de Deus, e, mediante os seus actos, manifesta a sua
conformidade ou discordância com a imagem do Filho que é o primogénito entre
muitos irmãos (cf. Rm 8, 29), vive a sua fidelidade ou
infidelidade ao dom do Espírito e abre-se ou fecha-se à vida eterna, à comunhão
de visão, de amor e de bem-aventurança com Deus Pai, Filho e Espírito
Santo. [123] Cristo
«forma-nos à sua imagem — escreve S. Cirilo de Alexandria —, de modo a fazer
brilhar em nós os traços da sua natureza divina mediante a santificação, a
justiça, e a rectidão de uma vida conforme à virtude (...) Assim, a beleza
desta imagem incomparável resplandece em nós, que estamos em Cristo, e nos
revelamos pessoas de bem pelas nossas obras».[124]
Neste sentido, a vida moral possui um essencial carácter
«teleológico», visto que consiste na ordenação deliberada dos actos
humanos para Deus, sumo bem e fim (telos) último do homem. Comprova-o,
mais uma vez, a pergunta do jovem a Jesus: «Que devo fazer de bom para alcançar
a vida eterna?». Mas esta ordenação ao fim último não é uma dimensão
subjectivista, que depende só da intenção. Ela pressupõe que aqueles actos
sejam em si próprios ordenáveis a um tal fim, enquanto conformes ao autêntico
bem moral do homem, tutelado pelos mandamentos. É o que lembra Jesus na
resposta ao jovem: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19,
17).
Evidentemente deve ser uma ordenação racional e livre, consciente e
deliberada, baseado na qual o homem é «responsável» dos seus actos e está
sujeito ao juízo de Deus, juiz justo e bom, que premeia o bem e castiga o mal,
como nos lembra o apóstolo Paulo: «Todos, com efeito, havemos de comparecer
perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o que mereceu, conforme o
bem ou o mal que tiver feito, enquanto estava no corpo» (2 Cor 5,
10).
74. Mas de que depende a qualificação moral do livre agir do
homem? Esta ordenação a Deus dos actos humanos, por que é
assegurada? Pela intenção do sujeito que age, pelas circunstâncias —
e, em particular, pelas consequências — do seu agir, pelo próprio objecto do
seu acto?
Este é o problema tradicionalmente chamado das «fontes da moralidade». Precisamente
a respeito de tal problema, nestes decénios manifestaram-se — ou
reconstituíram-se — novas tendências culturais e teológicas que exigem um
cuidadoso discernimento por parte do Magistério da Igreja.
Algumas teorias éticas, denominadas «teleológicas», mostram-se
atentas à conformidade dos actos humanos com os fins procurados pelo agente e
com os valores que ele tem em vista. Os critérios para avaliar a rectidão moral
de uma acção são deduzidos da ponderação dos bens não morais ou pré-morais a
conseguir e dos correspondentes valores não morais ou pré-morais a respeitar.
Para alguns, o comportamento concreto seria justo ou errado, segundo pudesse ou
não produzir um melhor estado de coisas para todas as pessoas interessadas:
seria justo o comportamento em grau de «maximizar» os bens e «minimizar» os
males.
Muitos dos moralistas católicos, que seguem esta orientação, procuram
distanciar-se do utilitarismo e do pragmatismo, que avaliam a moralidade dos
actos humanos sem fazer referência ao verdadeiro fim último do homem. Aqueles
sentem justamente a necessidade de encontrar argumentações racionais, sempre
mais consistentes, para justificar as exigências e fundamentar as normas da
vida moral. Tal pesquisa é legítima e necessária, visto que a ordem moral,
estabelecida pela lei natural, é, em princípio, acessível à razão humana. Além
disso, é uma pesquisa que corresponde às exigências do diálogo e colaboração
com os não-católicos e os não-crentes, especialmente nas sociedades
pluralistas.
75. Mas, no âmbito do esforço de elaborar essa moral racional — por isso
mesmo, às vezes, chamada «moral autónoma» —, existem falsas soluções,
ligadas em particular a uma inadequada compreensão do objecto do agir moral.
Alguns não têm em suficiente consideração o facto de que a vontade
fica comprometida com as escolhas concretas que realiza: estas são condição da
sua bondade moral e da sua ordenação para o fim último da pessoa. Outros,
ainda, inspiram-se num conceito da liberdade que prescinde das condições
efectivas do seu exercício, da sua referência objectiva à verdade sobre o bem,
da sua determinação através de escolhas de comportamentos concretos. Assim,
segundo estas teorias, a vontade livre não estaria moralmente sujeita a
obrigações determinadas, nem modelada pelas suas opções, embora permanecesse
responsável pelos próprios actos e pelas suas consequências. Este «teleologismo»,
como método para a descoberta da norma moral, pode então ser chamado — segundo
as terminologias e perspectivas adoptadas pelas distintas correntes de
pensamento — «consequencialismo» ou «proporcionalismo».
O primeiro pretende deduzir os critérios da rectidão de um determinado agir
somente a partir do cálculo das consequências que se prevêem derivar da
execução de uma opção. O segundo, ponderando entre si valores e bens
procurados, centra-se mais na proporção reconhecida entre os efeitos bons e
maus, em vista do «maior bem» ou do «menor mal» efectivamente possível numa
situação particular.
As teorias éticas teleológicas (proporcionalismo, consequencialismo), apesar de reconhecerem que os valores morais são indicados pela razão e
pela Revelação, consideram que nunca se poderá formular uma proibição absoluta
de comportamentos determinados que estariam em contradição com aqueles valores,
em toda e qualquer circunstância e cultura. O sujeito que age seria certamente
responsável pela obtenção dos valores pretendidos, mas segundo um duplo
aspecto: de facto, os valores ou bens implicados num acto humano seriam, por um
lado, de ordem moral (relativamente a valores propriamente
morais, como o amor de Deus, a benevolência para com o próximo, a justiça,
etc.) e, por outro, de ordem pré-moral, também chamada não
moral, física ou ôntica (relativamente às vantagens e desvantagens ocasionadas
seja a quem age, seja a qualquer pessoa neles implicada antes ou depois, como
por exemplo, a saúde ou a sua lesão, a integridade física, a vida, a morte, a
perda de bens materiais, etc.). Num mundo onde o bem sempre estaria misturado
com o mal e cada efeito bom ligado a outros efeitos maus, a moralidade do acto
seria julgada de maneira diferenciada: a sua «bondade» moral, com base na
intenção do sujeito referida aos bens morais, e a sua «rectidão», com base na
consideração dos efeitos ou consequências previsíveis e da sua proporção.
Consequentemente, os comportamentos concretos seriam qualificados como «rectos»
ou «errados», sem que, por isso, fosse possível avaliar como moralmente «boa»
ou «má» a vontade da pessoa que os escolhe. Deste modo, um acto, que, pondo-se
em contradição com uma norma universal negativa, viola directamente bens
considerados como «pré-morais», poderia ser qualificado como moralmente
aceitável se a intenção do sujeito se concentrasse, graças a uma ponderação
«responsável» dos bens implicados na acção concreta, sobre o valor moral
considerado decisivo naquela circunstância.
A avaliação das consequências da acção, com base na proporção do acto
com os seus efeitos e dos efeitos entre si, referir-se-ia apenas à ordem
pré-moral. Quanto à especificidade moral dos actos, ou seja, quanto à sua
bondade ou malícia, decidiria exclusivamente a fidelidade da pessoa aos valores
mais altos da caridade e da prudência, sem que esta fidelidade fosse
necessariamente incompatível com opções contrárias a certos preceitos morais
particulares. Mesmo em matéria grave, estes últimos deveriam ser considerados
como normas operativas, sempre relativas e susceptíveis de excepções.
Nesta perspectiva, o consentimento deliberado a certos comportamentos,
declarados ilícitos pela moral tradicional, não implicaria uma malícia moral
objectiva.
O objecto do acto deliberado
76. Estas teorias podem adquirir uma certa força persuasiva pela sua
afinidade com a mentalidade científica, justamente preocupada em ordenar as
actividades técnicas e económicas, baseada no cálculo dos recursos e lucros,
dos processos e efeitos. Aquelas querem libertar das pressões de uma moral da
obrigação, voluntarista e arbitrária, que se revelaria desumana.
Porém, tais teorias não são fiéis à doutrina da Igreja, já que crêem
poder justificar como moralmente boas, escolhas deliberadas de comportamentos
contrários aos mandamentos da lei divina e natural. Estas teorias não podem
apelar à tradição moral católica: se é verdade que nesta última se desenvolveu
uma casuística atenta a ponderar em algumas situações concretas as
possibilidades maiores de bem, também é certo que isso se confinava apenas aos
casos onde a lei era incerta, e portanto, não punha em discussão a validade
absoluta dos preceitos morais negativos que obrigam sem excepções. Os fiéis
hão-de reconhecer e respeitar os preceitos morais específicos, declarados e
ensinados pela Igreja em nome de Deus, Criador e Senhor. [125] Quando
o apóstolo Paulo recapitula o cumprimento da lei no preceito de amar o próximo
como a si mesmo (cf. Rm 13, 8-10), não atenua os mandamentos,
mas antes, os confirma, dado que revela as suas exigências e gravidade. O amor de Deus e o amor do próximo são
inseparáveis da observância dos mandamentos da Aliança, renovada no
sangue de Jesus Cristo e no dom do Espírito. Os cristãos têm por própria
honra obedecer a Deus antes que aos homens (cf. Act 4, 19; 5,
29) e, por isso, aceitar inclusive o martírio, como fizeram os santos e santas
do Antigo e do Novo Testamento, assim reconhecidos por terem dado a sua vida
antes que fazerem este ou aquele gesto particular contrário à fé ou à virtude.
77. Para oferecer os critérios racionais de uma justa decisão moral, as
mencionadas teorias têm em conta a intenção e as consequências da
acção humana. Certamente, num acto particular, há que tomar em grande
consideração tanto a intenção — como insiste, com particular vigor, Jesus, em
clara contraposição aos escribas e fariseus que prescreviam minuciosamente
certas obras exteriores, sem atenderem ao coração (cf. Mc 7,
20-21; Mt 15, 19) — como os bens obtidos e os males evitados,
em decorrência de um acto particular. Trata-se de uma exigência de
responsabilidade. Mas a consideração destas consequências — como também das
intenções — não é suficiente para avaliar a qualidade moral de uma opção
concreta. A ponderação dos bens e dos males, previsíveis como consequência de uma
acção, não é um método adequado para determinar se a escolha daquele
comportamento concreto é «segundo a sua espécie», ou «em si mesma», moralmente
boa ou má, lícita ou ilícita. As consequências previsíveis pertencem àquelas
circunstâncias do acto, que, embora podendo modificar a gravidade de um acto
mau, não podem, porém, mudar a sua espécie moral.
Aliás, cada um conhece as dificuldades — ou melhor, a impossibilidade —
de avaliar todas as consequências e todos os efeitos bons ou maus — definidos
pré-morais — dos próprios actos: não é possível um cálculo racional exaustivo.
Então, como fazer para estabelecer proporções que dependem de uma avaliação,
cujos critérios permanecem obscuros? De que modo se poderá justificar uma
obrigação absoluta sobre cálculos tão discutíveis?
78. A moralidade do acto humano depende primária e
fundamentalmente do objecto razoavelmente escolhido pela vontade
deliberada, como prova também a profunda análise, ainda hoje válida,
de S. Tomás. [126] Para
poder identificar o objecto de um acto que o especifica moralmente, ocorre,
pois, colocar-se na perspectiva da pessoa que age. De facto, o
objecto do acto da vontade é um comportamento livremente escolhido. Enquanto
conforme à ordem da razão, ele é causa da bondade da vontade, aperfeiçoa-nos
moralmente e dispõe-nos a reconhecer o nosso fim último no bem perfeito, o amor
original. Portanto, não se pode considerar como objecto de um determinado acto
moral, um processo ou um acontecimento de ordem meramente física, a avaliar
enquanto provoca um determinado estado de coisas no mundo exterior. Aquele é o
fim próximo de uma escolha deliberada, que determina o acto do querer da pessoa
que age. Neste sentido, como ensina o Catecismo da Igreja Católica, «há comportamentos concretos pelos
quais é sempre errado optar, porque tal opção inclui uma desordem da vontade,
isto é, um mal moral».[127] «De
facto, é frequente — escreve o Aquinate — que alguém aja com recta intenção mas
inutilmente, porque lhe falta a boa vontade: como no caso de alguém que
roubasse para alimentar um pobre, a intenção é certamente boa, mas falta a
devida rectidão da vontade. Consequentemente nenhum mal, mesmo realizado com
recta intenção, pode ser desculpado: "Como aqueles que dizem: Façamos o
mal, para vir o bem. Desses, é justa a condenação" (Rm 3,
8)». [128]
Parei aqui.
A razão pela qual não basta a recta intenção, mas ocorre também a recta
escolha das obras, está no facto de que o acto humano depende do seu objecto,
quer dizer, se este é ou não ordenável a Deus, Aquele que «só
é bom», realizando assim a perfeição da pessoa. Portanto, o acto é bom, se o
seu objecto é conforme ao bem da pessoa, no respeito dos bens moralmente
significativos para ela. Assim, a ética cristã, que privilegia a atenção ao
objecto moral, não recusa considerar a «teleologia» interior do agir, enquanto
visa promover o verdadeiro bem da pessoa, mas reconhece que este só é realmente
procurado quando se respeitam os elementos essenciais da natureza humana. O
acto humano, bom segundo o seu objecto, é também ordenável ao
fim último. O mesmo acto alcança, depois, a sua perfeição última e decisiva,
quando a vontade o ordena efectivamente para Deus mediante a
caridade. Neste sentido, ensina o Patrono dos moralistas e dos confessores:
«Não basta fazer boas obras, é preciso fazê-las bem. Para que as nossas obras
sejam boas e perfeitas, é necessário fazê-las com o mero fim de agradar a
Deus».[129]
O «mal intrínseco»: não é lícito praticar o mal para se conseguir o
bem (cf. Rm 3, 8)
79. Deve-se, portanto, rejeitar a tese, própria das
teorias teleológicas e proporcionalistas, de que seria impossível
qualificar como moralmente má segundo a sua espécie — o seu «objecto»
—, a escolha deliberada de alguns comportamentos ou actos determinados,
prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das
consequências previsíveis daquele acto para todas as pessoas interessadas.
O elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objecto do acto
humano, o qual decide sobre o seu ordenamento ao bem e ao fim último
que é Deus. Este ordenamento é identificado pela razão no mesmo ser do
homem, considerado na sua verdade integral, e portanto, nas suas inclinações
naturais, nos seus dinamismos e nas suas finalidades que têm sempre também uma
dimensão espiritual: são exactamente estes os conteúdos da lei natural, e
consequentemente o conjunto ordenado dos «bens para a pessoa» que se põem ao
serviço do «bem da pessoa», daquele bem que é ela mesma e a sua perfeição. São
estes os bens tutelados pelos mandamentos, os quais, segundo S. Tomás, contêm
toda a lei natural. [130]
80. Ora, a razão atesta que há objectos do acto humano que se configuram
como «não ordenáveis» a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa,
feita à Sua imagem. São os actos que, na tradição moral da Igreja, foram
denominados «intrinsecamente maus» (intrinsece malum): são-no sempre e
por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores
intenções de quem age e das circunstâncias. Por isso, sem querer minimamente
negar o influxo que têm as circunstâncias e sobretudo as intenções sobre a
moralidade, a Igreja ensina que «existem actos que, por si e em si mesmos,
independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por
motivo do seu objecto».[131] O
mesmo Concílio Vaticano II, no quadro do devido respeito pela pessoa humana,
oferece uma ampla exemplificação de tais actos: «Tudo quanto se opõe à vida,
como são todas as espécies de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e
suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as
mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as
próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as
condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão,
a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições
degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros
instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas
coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a
civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que
padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador».[132]
Sobre os actos intrinsecamente maus, e referindo-se às práticas
contraceptivas pelas quais o acto conjugal se torna intencionalmente infecundo,
Paulo VI ensina: «Na verdade, se, por vezes, é lícito tolerar um mal menor com
o fim de evitar um mal mais grave ou de promover um bem maior, não é lícito,
nem mesmo por gravíssimas razões, praticar o mal para se conseguir o bem
(cf. Rm 3, 8), ou seja, fazer objecto de um acto positivo de
vontade o que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa
humana, mesmo com o intuito de salvaguardar ou promover bens individuais,
familiares ou sociais».[133]
81. Ao ensinar a existência de actos intrinsecamente maus, a Igreja
cinge-se à doutrina da Sagrada Escritura. O apóstolo Paulo afirma
categoricamente: «Não vos enganeis: Nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros,
nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem maldizentes, nem
os que se dão à embriaguez, nem salteadores possuirão o Reino de Deus» (1 Cor 6, 9-10).
Se os actos são intrinsecamente maus, uma intenção boa ou circunstâncias
particulares podem atenuar a sua malícia, mas não suprimi-la: são actos
«irremediavelmente» maus, que por si e em si mesmos não são ordenáveis a Deus e
ao bem da pessoa: «Quanto aos actos que, por si mesmos, são pecados (cum iam
opera ipsa peccata sunt) — escreve S. Agostinho — como o furto, a
fornicação, a blasfémia ou outros actos semelhantes, quem ousaria afirmar que,
realizando-os por boas razões (causis bonis), já não seriam pecados ou,
conclusão ainda mais absurda, que seriam pecados justificados?». [134]
Por isso, as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um
acto intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num acto «subjectivamente»
honesto ou defensível como opção.
82. De resto, a intenção é boa quando visa o verdadeiro bem da pessoa na
perspectiva do seu fim último. Mas os actos, cujo objecto é «não ordenável» a
Deus e «indigno da pessoa humana», opõem-se sempre e em qualquer caso a este
bem. Neste sentido, o respeito das normas que proíbem tais actos e que
obrigam semper et pro semper, ou seja, sem nenhuma excepção,
não só não limita a boa intenção, mas constitui mesmo a sua expressão
fundamental.
A doutrina do objecto como fonte da moralidade constitui uma
explicitação autêntica da moral bíblica da Aliança e dos mandamentos, da
caridade e das virtudes. A qualidade moral do agir humano depende desta
fidelidade aos mandamentos, expressão de obediência e amor. É por isso —
repetimo-lo — que se deve rejeitar como errónea a opinião que considera
impossível qualificar moralmente como má segundo a sua espécie, a opção
deliberada de alguns comportamentos ou de certos actos, prescindindo da
intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das consequências
previsíveis daquele acto para todas as pessoas interessadas. Sem esta determinação
racional da moralidade do agir humano, seria impossível afirmar uma
«ordem moral objectiva» [135] e
estabelecer qualquer norma determinada, do ponto de vista do conteúdo, que
obrigasse sem excepção; e isto reverteria em dano da fraternidade humana e da
verdade sobre o bem, e em prejuízo também da comunhão eclesial.
83. Como se vê, na questão da moralidade dos actos humanos, e
particularmente na da existência dos actos intrinsecamente maus, concentra-se,
de certo modo, a própria questão do homem, da sua verdade e
das consequências morais que daí derivam. Ao reconhecer e ensinar a existência
do mal intrínseco em determinados actos humanos, a Igreja permanece fiel à
verdade integral do homem, e, portanto, respeita-o e promove-o na sua dignidade
e vocação. Consequentemente, ela deve recusar as teorias expostas acima, que
estão em contraste com esta verdade.
Porém, é preciso que nós, Irmãos no Episcopado, não nos detenhamos só a
admoestar os fiéis sobre os erros e os perigos de algumas teorias éticas.
Devemos, antes de mais, mostrar o esplendor fascinante daquela verdade, que é
Jesus Cristo. N'Ele, que é a Verdade (cf. Jo 14, 6), o homem
pode compreender plenamente e viver perfeitamente, mediante os actos bons, a
sua vocação à liberdade na obediência à lei divina, que se resume no mandamento
do amor de Deus e do próximo. É o que acontece com o dom do Espírito Santo,
Espírito de verdade, de liberdade e de amor: n'Ele, é-nos concedido
interiorizar a lei, percebê-la e vivê-la como o dinamismo da verdadeira
liberdade pessoal: «a lei perfeita é a lei da liberdade» (Tg 1, 25)
CAPÍTULO III
«PARA NÃO SE DESVIRTUAR A CRUZ DE CRISTO» (1 COR 1, 17)
O bem moral para a vida da Igreja e do mundo
«Cristo nos libertou, para que permaneçamos livres» (Gál 5, 1)
84. A questão fundamental, que as teorias morais acima
referidas solevam mais fortemente, é a da relação entre a liberdade do homem e
a lei de Deus: é, em última análise, a questão da relação entre a liberdade
e a verdade.
Segundo a fé cristã e a doutrina da Igreja, «somente a liberdade que se
submete à Verdade, conduz a pessoa humana ao seu verdadeiro bem. O bem da
pessoa é estar na Verdade e praticar a
Verdade».[136]
O confronto entre a posição da Igreja e a situação sociocultural de hoje
põe imediatamente a descoberto a urgência de se desenvolver precisamente sobre
esta questão fundamental um intenso labor pastoral por parte da própria
Igreja: «Este laço essencial entre Verdade-Bem-Liberdade foi perdido
em grande parte pela cultura contemporânea, e, portanto, levar o homem a
redescobri-lo é hoje uma das exigências próprias da missão da Igreja, para a
salvação do mundo. A pergunta de Pilatos: "O que é a verdade?" emerge
também da desoladora perplexidade de um homem que frequentemente já não
sabe quem é, donde vem e para aonde vai. E é
assim que não raro assistimos à tremenda derrocada da pessoa humana em
situações de autodestruição progressiva. Se fôssemos dar ouvidos a certas
vozes, parece que não mais se deveria reconhecer o indestrutível carácter
absoluto de qualquer valor moral. Está patente aos olhos de todos o desprezo da
vida humana já concebida e ainda não nascida; a violação permanente de
fundamentais direitos da pessoa; a destruição iníqua dos bens necessários para
uma vida verdadeiramente humana. Mas, algo de mais grave aconteceu: o homem já
não está convencido de que só na verdade pode encontrar a salvação. A força
salvadora do verdadeiro é contestada, confiando à simples liberdade,
desvinculada de toda a objectividade, a tarefa de decidir autonomamente o que é
bem e o que é mal. Este relativismo gera, no campo teológico, desconfiança na
sabedoria de Deus, que guia o homem com a lei moral. Àquilo que a lei moral
prescreve contrapõem-se as chamadas situações concretas, no fundo, deixando de
considerar a lei de Deus como sendo sempre o
único verdadeiro bem do homem».[137]
85. A obra de discernimento destas teorias éticas por parte da Igreja
não se limita a denunciá-las e rejeitá-las, mas visa positivamente amparar com
grande solicitude todos os fiéis na formação de uma consciência moral, que
julgue e leve a decisões conformes à verdade, como exorta o apóstolo Paulo:
«Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo, mas transformai-vos pela
renovação da vossa mente, a fim de conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom,
o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (Rm 12,
2). Esta obra da Igreja encontra o seu ponto de apoio — o seu «segredo»
formativo — não tanto nos enunciados doutrinais e nos apelos pastorais à
vigilância, como sobretudo em manter o olhar fixo no Senhor
Jesus. A Igreja cada dia olha com amor incansável para Cristo,
plenamente consciente de que só n'Ele está a resposta verdadeira e definitiva ao
problema moral.
De modo particular, em Jesus crucificado, ela encontra
a resposta à questão que hoje atormenta tantos homens: como pode a
obediência às normas morais universais e imutáveis respeitar a unicidade e
irrepetibilidade da pessoa, e não atentar contra a sua liberdade e dignidade? A
Igreja faz sua a consciência que o apóstolo Paulo tinha da missão recebida:
«Cristo (...) me enviou (...) a pregar o Evangelho, não porém, com sabedoria de
palavras, para não se desvirtuar a Cruz de Cristo (...) Nós pregamos Cristo
crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para os
eleitos, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder e a sabedoria de Deus» (1
Cor 1, 17.23-24). Cristo crucificado revela o sentido
autêntico da liberdade, vive-o em plenitude no dom total de Si mesmo e
chama os discípulos a tomar parte na Sua própria liberdade.
86. A reflexão racional e a experiência quotidiana demonstram a
debilidade que caracteriza a liberdade do homem. É liberdade real, mas finita:
não tem o seu ponto de partida absoluto e incondicionado em si própria, mas na
existência em que se encontra e que representa para ela, simultaneamente, um
limite e uma possibilidade. É a liberdade de uma criatura, ou seja, uma
liberdade dada, que deve ser acolhida como um gérmen e fazer-se amadurecer com
responsabilidade. É parte constitutiva daquela imagem de criatura que
fundamenta a dignidade da pessoa: nela ressoa a vocação original com que o
Criador chama o homem ao verdadeiro Bem, e mais ainda, com a revelação de
Cristo, chama-o a estabelecer amizade com Ele, participando na mesma vida
divina. É inalienável propriedade pessoal e, ao mesmo tempo, abertura universal
a todo o vivente, com a saída de si rumo ao conhecimento e ao amor do
outro. [138] Portanto,
a liberdade radica-se na verdade do homem e destina-se à comunhão.
A razão e a experiência atestam não só a debilidade da liberdade humana,
mas também o seu drama. O homem descobre que a sua liberdade está
misteriosamente inclinada a trair esta abertura para o Verdadeiro e para o Bem,
e que, com bastante frequência, de facto, ele prefere escolher bens finitos,
limitados e efémeros. Mais ainda, por detrás dos erros e das opções negativas,
o homem detecta a origem de uma revolta radical, que o leva a rejeitar a
Verdade e o Bem para arvorar-se em princípio absoluto de si próprio: «Sereis
como Deus» (Gn 3, 5). Portanto, a liberdade necessita de
ser libertada. Cristo é o seu libertador: Ele «nos libertou, para que
permaneçamos livres» (Gál 5, 1).
87. Cristo revela, antes de mais, que o reconhecimento honesto e franco
da verdade é condição para uma autêntica liberdade: «Conhecereis
a verdade e a verdade libertar-vos-á» (Jo 8,
32). [139] É
a verdade que torna livre defronte ao poder e dá a força do martírio. Assim,
Jesus diante de Pilatos: «Para isto nasci e para isto vim ao mundo, a fim de
dar testemunho da verdade» (Jo 18, 37). Assim, os verdadeiros
adoradores de Deus devem adorá-l'O «em espírito e verdade» (Jo 4,
23): nesta adoração tornam-se livres. A ligação à verdade e a
adoração de Deus manifestam-se em Jesus Cristo como a raiz mais íntima da
liberdade.
Além disso, Jesus revela, com a sua própria existência e não apenas com
as palavras, que a liberdade se realiza no amor, ou seja,
no dom de si. Ele que disse: «Ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13), caminha
livremente para a Paixão (cf. Mt 26, 46) e, na Sua obediência
ao Pai sobre a Cruz, dá a vida por todos os homens (cf. Fil 2,
6-11). Deste modo, a contemplação de Jesus crucificado é a via-mestra pela qual
a Igreja deve caminhar cada dia, se quiser compreender todo o sentido da
liberdade: o dom de si no serviço a Deus e aos irmãos. Mais, a
comunhão com o Senhor crucificado e ressuscitado é a fonte inesgotável, onde a
Igreja se sacia incessantemente para viver na liberdade, doar-se e servir.
Comentando o versículo do Salmo 99-100 «Servi ao Senhor com alegria», S.
Agostinho diz: «Na casa do Senhor, livre é a escravidão. Livre, visto que o
serviço não o impõe a necessidade, mas a caridade (...) A caridade te faça
servo, como a verdade te fez livre (...) És, ao mesmo tempo, servo e livre:
servo, porque tal te fizeste; livre, porque és amado por Deus, teu criador;
mais ainda, livre porque te foi concedido amar o teu criador (...) És servo do
Senhor e livre no Senhor. Não procures uma libertação que te leve para longe da
casa do teu libertador!».[140]
Deste modo, a Igreja, e nela cada cristão, é chamada a participar
no munus regale de Cristo na cruz (cf. Jo 12,
32), na graça e na responsabilidade do Filho do Homem, que «não veio para ser
servido, mas para servir e dar a Sua vida pelo resgate de muitos» (Mt 20,
28). [141]
Jesus é, pois, a síntese viva e pessoal da perfeita liberdade na
obediência total à vontade de Deus. A Sua carne crucificada é a plena Revelação
do vínculo indissolúvel entre liberdade e verdade, tal como a Sua ressurreição
da morte é a suprema exaltação da fecundidade e da força salvífica de uma
liberdade vivida na verdade.
Caminhar na luz (cf. 1
Jo 1, 7)
88. A contraposição, mais, a radical separação entre liberdade e verdade
é consequência, manifestação e realização de outra dicotomia, mais
grave e perniciosa, que separa a fé da moral.
Esta separação constitui uma das mais sérias preocupações pastorais da
Igreja no actual processo de secularismo, onde demasiados homens pensam e vivem
«como se Deus não existisse». Encontramo-nos diante de uma mentalidade que
atinge, frequentemente de modo profundo, vasto e minucioso, as atitudes e os
comportamentos dos cristãos, cuja fé se debilita e perde a própria
originalidade de novo critério interpretativo e operativo para a existência
pessoal, familiar e social. Na verdade, os critérios de juízo e de escolha
assumidos pelos mesmos crentes apresentam-se frequentemente, no contexto de uma
cultura amplamente descristianizada, como alheios ou até mesmo contrapostos aos
do Evangelho.
Urge, então, que os cristãos redescubram a novidade da sua fé e
a sua força de discernimento face à cultura predominante e
insinuativa: «Se outrora éreis trevas — admoesta o apóstolo Paulo —, agora sois
luz no Senhor. Comportai-vos como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste
na bondade, na justiça e na verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e
não participeis das obras infrutuosas das trevas; pelo contrário, condenai-as
abertamente (...) Cuidai pois, irmãos, em andar com prudência, não como
insensatos, mas com circunspecção, aproveitando o tempo, pois os dias são maus»
(Ef 5, 8-11.15-16; cf. 1 Ts 5, 4-8).
Urge recuperar e repropor o verdadeiro rosto da fé cristã, que não é
simplesmente um conjunto de proposições a serem acolhidas e ratificadas com a
mente. Trata-se, antes, de um conhecimento existencial de Cristo, uma memória
viva dos seus mandamentos, uma verdade a ser vivida. Aliás,
uma palavra só é verdadeiramente acolhida quando se traduz em actos, quando é
posta em prática. A fé é uma decisão que compromete toda a existência. É
encontro, diálogo, comunhão de amor e de vida do crente com Jesus Cristo,
Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14, 6). Comporta um acto de
intimidade e abandono a Cristo, fazendo-nos viver como Ele viveu (cf. Gál 2,
20), ou seja, no amor pleno a Deus e aos irmãos.
89. A fé possui também um conteúdo moral: dá origem e exige um
compromisso coerente de vida, comporta e aperfeiçoa o acolhimento e a
observância dos mandamentos divinos. Como escreve o evangelista João, «Deus é
luz e n'Ele não há trevas. Se dissermos que temos comunhão com Ele e andarmos
nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade (...) E sabemos que O
conhecemos por isto: se guardarmos os Seus mandamentos. Aquele que diz
conhecê-Lo, e não guarda os Seus mandamentos é mentiroso, e a verdade não está
nele. Mas quem guarda a Sua palavra, nesse, o amor de Deus é verdadeiramente
perfeito; e, por isso, conhecemos que estamos n'Ele. Aquele que diz que está
n'Ele, deve também andar como Ele andou» (1
Jo 1, 5-6; 2, 3-6).
Através da vida moral, a fé torna-se «confissão» não só perante Deus,
mas também diante dos homens: faz-se testemunho. «Vós sois a luz do
mundo — disse Jesus. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte;
nem se acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do
velador, e assim alumia a todos os que estão em casa. Brilhe a vossa luz diante
dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai,
que está nos Céus» (Mt 5, 14-16). Estas obras são, sobretudo, as da
caridade (cf. Mt 25, 31-46) e da autêntica liberdade que se
manifesta e vive no dom de si. Até ao dom total de si, como
fez Jesus que, sobre a cruz, «amou a Igreja e por ela Se entregou» (Ef 5,
25). O testemunho de Cristo é fonte, paradigma e força para o testemunho do
discípulo, chamado a seguir pela mesma estrada: «Se alguém quer vir após Mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-Me» (Lc 9,
23). A caridade, segundo as exigências do radicalismo evangélico, pode levar o
crente ao supremo testemunho do martírio. Sempre, segundo o
exemplo de Jesus que morre na cruz: «Sede, pois, imitadores de Deus, como
filhos muito amados, — escreve Paulo aos cristãos de Éfeso — e progredi na
caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós Se entregou a
Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor» (Ef 5, 1-2).
O martírio, exaltação da santidade inviolável da lei de Deus
90. A relação entre fé e moral transparece com todo o seu fulgor
no respeito incondicional devido às exigências inalienáveis da
dignidade pessoal de cada homem, àquelas exigências defendidas pelas
normas morais que proíbem sem excepção os actos intrinsecamente maus. A
universalidade e imutabilidade da norma moral manifesta e, ao mesmo tempo,
serve de tutela à dignidade pessoal, ou seja, à inviolabilidade do homem, em
cuja face brilha o esplendor de Deus (cf. Gn 9, 5-6).
A recusa das teorias éticas «teleológicas», «consequencialistas» e
«proporcionalistas», que negam a existência de normas morais negativas
referentes a determinados comportamentos e válidas sem excepção, encontra uma
confirmação particularmente eloquente no facto do martírio cristão, que sempre
acompanhou e ainda acompanha a vida da Igreja.
91. Já na Antiga Aliança, encontramos admiráveis testemunhos de
fidelidade à lei santa de Deus, levada até à voluntária aceitação da morte.
Emblemática é a história de Susana: aos dois juízes injustos,
que ameaçavam condená-la à morte se se recusasse ceder às suas paixões impuras,
assim responde: «A que aflições me encontro submetida de todos os lados!
Consentir? É para a mim a morte. Negar-me? Nem mesmo assim vos escaparei. Não!
É preferível para mim cair em vossas mãos sem ter feito nada, do que pecar aos
olhos do Senhor!» (Dn 13, 22-23). Susana, preferindo «cair
inocente» nas mãos dos juízes, testemunha não só a sua fé e confiança em Deus,
mas também a sua obediência à verdade e ao carácter absoluto da ordem moral:
com a sua disponibilidade para o martírio, proclama que não é justo praticar o
que a lei de Deus qualifica como mal para dele conseguir algum bem. Ela escolhe
para si a «melhor parte»: um claríssimo testemunho, sem qualquer reserva, à
verdade do bem e ao Deus de Israel; manifesta assim, nos seus actos, a
santidade de Deus.
No limiar do Novo Testamento, João Baptista, recusando-se a calar a lei
do Senhor e a comprometer-se com o mal, «deu a sua vida pela justiça e pela
verdade»,[14] e
foi assim o precursor do Messias também no martírio (cf. Mc 6,
17-29). Por isso, «foi encerrado na escuridão do cárcere aquele que veio para
dar testemunho da luz e que mereceu ser chamado pela mesma luz, que é Cristo,
lâmpada que arde e ilumina (...) E foi baptizado no próprio sangue aquele a
quem fora concedido baptizar o Redentor do mundo».[143]
Na Nova Aliança, encontram-se numerosos testemunhos de seguidores
de Cristo — a começar pelo diácono Estêvão (cf. Act 6,
8-7, 60) e o apóstolo Tiago (cf. Act 12, 1-2) —, que morreram
mártires para confessar a sua fé e o seu amor ao Mestre e para não O renegar.
Nisto, eles seguiram o Senhor Jesus, que, diante de Caifás e Pilatos, «deu um
tão belo testemunho» (1 Tim 6, 13), confirmando a verdade da Sua
mensagem com o dom da vida. Inumeráveis os mártires que preferiram as
perseguições e a morte, a cumprir o gesto idólatra de queimar incenso perante a
estátua do Imperador (cf. Ap 13, 7-10). Rejeitaram inclusive
simular um tal culto, dando assim o exemplo do dever de abster-se até de um
mero comportamento exterior contrário ao amor de Deus e ao testemunho da fé. Na
obediência, eles confiaram e entregaram, como Cristo, a sua vida ao Pai, Àquele
que os podia livrar da morte (cf. Heb 5, 7).
A Igreja propõe o exemplo de numerosos santos e santas que testemunharam e defenderam a verdade moral
até ao martírio ou preferiram a morte a um só pecado mortal. Elevando-os à
honra dos altares, a Igreja canonizou o seu testemunho e declarou verdadeiro o
seu juízo, segundo o qual o amor de Deus implica obrigatoriamente o respeito
dos seus mandamentos, inclusive nas circunstâncias mais graves, e a recusa de
atraiçoá-los, mesmo com a intenção de salvar a própria vida.
92. No martírio, enquanto afirmação da inviolabilidade da ordem moral,
refulge a santidade da lei divina e, conjuntamente, a intangibilidade da
dignidade pessoal do homem, criado à imagem e semelhança de Deus: é uma
dignidade que nunca é permitido aviltar ou contrariar, nem mesmo com boas
intenções, sejam quais forem as dificuldades. Jesus adverte-nos, com a máxima
severidade: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua
alma?» (Mc 8, 36).
O martírio desautoriza como sendo ilusório e falso, qualquer
«significado humano» que se pretenda atribuir, mesmo em condições
«excepcionais», ao acto em si próprio moralmente mau; mais ainda, revela
claramente a sua verdadeira face: a de uma violação da «humanidade» do
homem, antes ainda em quem o realiza do que naquele que o
padece. [144]Portanto,
o martírio é também exaltação da perfeita «humanidade» e da verdadeira «vida»
da pessoa, como testemunha S. Inácio de Antioquia, dirigindo-se aos cristãos de
Roma, lugar do seu martírio: «Tende compaixão de mim, irmãos: não me impeçais
de viver, não queirais que eu morra (...) Deixai que eu alcance a pura luz;
chegado lá, serei verdadeiramente homem. Deixai que eu imite a
paixão do meu Deus». [145]
93. O martírio é, enfim, um preclaro sinal da santidade da Igreja: a
fidelidade à lei santa de Deus, testemunhada com a morte, é anúncio solene e
compromisso missionário usque ad sanguinem, a fim de que o
esplendor da verdade moral não seja ofuscado nos costumes e na mentalidade das
pessoas e da sociedade. Um tal testemunho oferece uma contribuição de valor
extraordinário, para que, tanto na sociedade civil como também no seio das
próprias comunidades eclesiais, não se caia na crise mais perigosa que pode
afligir o homem: a confusão do bem e do mal, que torna
impossível construir e conservar a ordem moral dos indivíduos e das
comunidades. Os mártires, e mais em geral todos os santos da Igreja, através do
exemplo eloquente e fascinante de uma vida totalmente transfigurada pelo
esplendor da verdade moral, iluminam cada época da história despertando o seu
sentido moral. Dando pleno testemunho do bem, eles são uma viva censura para os
que transgridem a lei (cf. Sab 2, 12), e fazem ressoar, com
permanente actualidade, as palavras do profeta: «Ai dos que ao mal chamam bem,
e ao bem mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas, que têm o amargo
por doce e o doce por amargo» (Is 5, 20).
Se o martírio representa o ápice do testemunho a favor da verdade moral,
ao qual relativamente poucos podem ser chamados, há, contudo, um testemunho
coerente que todos os cristãos devem estar prontos a dar cada dia, mesmo à
custa de sofrimentos e de graves sacrifícios. De facto, diante das múltiplas
dificuldades que, mesmo nas circunstâncias mais comuns, pode exigir a
fidelidade à ordem moral, o cristão é chamado, com a graça de Deus implorada na
oração, a um compromisso por vezes heróico, amparado pela virtude da fortaleza,
mediante a qual — como ensina S. Gregório Magno — ele até consegue «amar as
dificuldades deste mundo, em vista do prémio eterno».[146]
94. Neste testemunho ao carácter absoluto do bem moral, os
cristãos não estão sós: encontram confirmação no sentido moral dos
povos e nas grandes tradições religiosas e sapienciais do Ocidente e do
Oriente, não sem uma interior e misteriosa acção do Espírito de Deus. Sirva de
exemplo, a expressão do poeta latino Juvenal: «Considera o maior dos crimes
preferir a sobrevivência à honra e, por amor da vida física, perder as razões
de viver».[147] A
voz da consciência sempre invocou, sem ambiguidades, a existência de verdades e
valores morais, pelos quais se deve estar pronto inclusive a dar a vida. Na
palavra e sobretudo no sacrifício da vida pelo valor moral, a Igreja reconhece
o mesmo testemunho àquela verdade que, já presente na criação, resplandece
plenamente no rosto de Cristo: «Sabemos — escreve S. Justino — que os
seguidores das doutrinas dos estóicos foram expostos ao ódio e mortos, quando
deram prova de sabedoria no seu enunciado moral (...) graças à semente do Verbo
inscrita em todo o género humano».[148]
As normas morais universais e imutáveis ao serviço da pessoa e da
sociedade
95. A doutrina da Igreja, e particularmente a sua firmeza em defender a
validade universal e permanente dos preceitos que proibem os actos intrinsecamente
maus, é julgada frequentemente como sinal de uma intransigência intolerável,
sobretudo nas situações extremamente complexas e conflituosas da vida moral do
homem e da sociedade de hoje: uma intransigência que estaria em contraste com o
sentido materno da Igreja. Nesta, dizem, escasseiam a compreensão e a
compaixão. Mas, na verdade, a maternidade da Igreja nunca pode ser separada da
missão de ensinar que ela deve cumprir sempre como Esposa fiel de Cristo, a
Verdade em pessoa: «Como Mestra, ela não se cansa de proclamar a norma moral
(...) De tal norma, a Igreja não é, certamente, nem a autora nem o juiz. Em
obediência à verdade que é Cristo, cuja imagem se reflecte na natureza e na
dignidade da pessoa humana, a Igreja interpreta a norma moral e propõe-na a
todos os homens de boa vontade, sem esconder as suas exigências de radicalidade
e de perfeição».[149]
Na realidade, a verdadeira compreensão e a genuína compaixão devem
significar amor pela pessoa, pelo seu verdadeiro bem, pela sua liberdade
autêntica. E isto, certamente, não acontece escondendo ou enfraquecendo a
verdade moral, mas sim propondo-a no seu íntimo significado de irradiação da
Sabedoria eterna de Deus, que nos veio por Cristo, e de serviço ao homem, ao
crescimento da sua liberdade e à consecução da sua felicidade. [150]
Ao mesmo tempo, a apresentação clara e vigorosa da verdade moral jamais
pode prescindir de um profundo e sincero respeito, animado por um amor paciente
e confiante, de que o homem sempre necessita na sua caminhada moral, tornada,
com frequência, cansativa pelas dificuldades, debilidades e situações
dolorosas. A Igreja, que jamais poderá renunciar ao «princípio da verdade e da
coerência, pelo qual não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem», [151] deve
estar sempre atenta para não partir a cana já fendida e para não apagar a chama
que ainda fumega (cf. Is 42, 3). Paulo VI escreveu: «Não
diminuir em nada a doutrina salvadora de Cristo constitui eminente forma de
caridade para com as almas. Esta, porém, deve ser sempre acompanhada da
paciência e bondade, de que o próprio Senhor deu exemplo ao tratar com os
homens. Tendo vindo não para julgar mas para salvar (cf. Jo 3,
17), Ele foi certamente intransigente com o mal, mas misericordioso com as
pessoas».[152]
96. A firmeza da Igreja em defender as normas morais universais e
imutáveis, nada tem de humilhante. Fá-lo apenas ao serviço da verdadeira
liberdade do homem: dado que não há liberdade fora ou contra a verdade, a
defesa categórica, ou seja, sem concessões nem compromissos, das exigências
absolutamente irrenunciáveis da dignidade pessoal do homem, deve considerar-se
caminho e condição para a existência mesma da liberdade.
Este serviço é oferecido a cada homem, considerado na
unicidade e irrepetibilidade do seu ser e existir: só na obediência às normas
morais universais, o homem encontra plena confirmação da unicidade como pessoa
e possibilidade de verdadeiro crescimento moral. E, precisamente por isso, um
tal serviço é prestado a todos os homens: não só aos
indivíduos, mas também à comunidade, à sociedade como tal. Estas normas
constituem, de facto, o fundamento inabalável e a sólida garantia de uma justa
e pacífica convivência humana, e, portanto, de uma verdadeira democracia, que
pode nascer e crescer apenas sobre a igualdade de todos os seus membros,
irmanados nos direitos e deveres. Diante das normas morais que proibem
o mal intrínseco, não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser
o dono do mundo ou o último «miserável» sobre a face da terra, não faz
diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos absolutamente
iguais.
97. Assim as normas morais, e primariamente as negativas que proibem o
mal, manifestam o seu significado e a sua força, ao
mesmo tempo, pessoal e social: ao proteger a inviolável dignidade
pessoal de cada homem, elas servem a própria conservação do tecido social
humano e o seu recto e fecundo desenvolvimento. Particularmente os mandamentos
da segunda tábua do Decálogo, lembrados também por Jesus ao jovem do Evangelho
(cf. Mt 19, 18), constituem as regras primordiais de toda a
vida social.
Estes mandamentos são formulados em termos gerais. Mas, o facto de que
«a pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as
instituições sociais», [153] permite
precisá-los e explicitá-los num código de comportamento mais pormenorizado.
Neste sentido, as regras morais fundamentais da vida social comportam exigências
determinadas, às quais se devem ater tanto as autoridades públicas,
como os cidadãos. Independentemente das intenções, por vezes boas, e das
circunstâncias, amiúde difíceis, as autoridades civis e os sujeitos
particulares nunca estão autorizados a transgredir os direitos fundamentais e
inalienáveis da pessoa humana. Assim, só uma moral que reconhece normas válidas
sempre e para todos, sem qualquer excepção, pode garantir o fundamento ético da
convivência social, tanto nacional como internacional.
A moral e a renovação da vida social e política
98. Perante as graves formas de injustiça social e económica e de
corrupção política, que gravam sobre povos e nações inteiras, cresce a reacção
indignada de muitíssimas pessoas oprimidas e humilhadas nos seus direitos
humanos fundamentais e torna-se sempre mais ampla e sentida a necessidade
de uma radical renovação pessoal e social, capaz de assegurar justiça,
solidariedade, honestidade, transparência.
É certamente longa e dura, a estrada a percorrer; numerosos e ingentes
são os esforços a cumprir para levar a cabo uma tal renovação, inclusive pela
multiplicidade e gravidade das causas que geram e alimentam as situações de
injustiça hoje presentes no mundo. Mas, como ensina a história e a experiência
de cada um, não é difícil identificar na base destas situações, causas
propriamente «culturais», isto é, relacionadas com determinadas visões do
homem, da sociedade e do mundo. Na verdade, no âmago da questão
cultural está o sentido moral, que, por sua vez, se
fundamenta e se realiza no sentido religioso. [154]
99. Só Deus, o Bem supremo, constitui a base irremovível e a condição
insubstituível da moralidade, e portanto dos mandamentos, em particular dos
negativos que proíbem, sempre e em todos os casos, o comportamento e os actos
incompatíveis com a dignidade pessoal de cada homem. Deste modo, o Bem supremo
e o bem moral encontram-se na verdade: a verdade de Deus
Criador e Redentor e a verdade do homem criado e redimido por Ele. Apenas sobre
esta verdade é possível construir uma sociedade renovada e resolver os
complexos e gravosos problemas que a abalam, sendo o primeiro deles vencer as
mais diversas formas de totalitarismo para abrir caminho à autêntica liberdade da
pessoa. «O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se
não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a
sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta
relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de
grupo, de Nação contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se
reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a
aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio
interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro (...) A raiz do
totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da
transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível e,
precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que
ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, Nação ou Estado. Nem tão
pouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria,
alienando, oprimindo, explorando ou tentando destruí-la».[155]
Por isso, a conexão indivisível entre verdade e liberdade — que exprime
o vínculo essencial entre a sabedoria e a vontade de Deus — possui um
significado de extrema importância para a vida das pessoas no âmbito
sócio-económico e sócio-político, como resulta da doutrina social da Igreja — a
qual «pertence (...) ao campo da teologia e, especialmente da teologia moral»,[156] —
e da sua apresentação de mandamentos que regulam a vida social, económica e
política, não só no que se refere a atitudes gerais, mas também a precisos e
determinados comportamentos e actos concretos.
100. Desta forma, o Catecismo da Igreja Católica, depois de ter afirmado que, «em matéria
económica, o respeito da dignidade humana exige a prática da virtude da temperança, para
moderar o apego aos bens deste mundo; da virtude da justiça, para
acautelar os direitos do próximo e dar-lhe o que é devido; e da solidariedade, segundo
a regra de ouro e conforme a liberalidade do Senhor, que "sendo rico Se
fez pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza" (2 Cor 8,
9)», [157] apresenta
uma série de comportamentos e actos que vão contra a dignidade humana: o furto,
o reter deliberadamente coisas recebidas por empréstimo ou objectos perdidos, a
fraude no comércio (cf. Dt 25, 13-16), os salários injustos
(cf. Dt 24, 14-15; Tg 5, 4), o aumento dos
preços, especulando sobre a ignorância e a necessidade alheia (cf. Am 8,
4-6), a apropriação e o uso privado dos bens sociais de uma empresa, os
trabalhos mal executados, a fraude fiscal, a falsificação de cheques e
facturas, os gastos excessivos, o desperdício, etc. [158]E
ainda: «O sétimo mandamento proíbe os actos ou empreendimentos que, seja por
que motivo for — egoísta ou ideológico, mercantil ou totalitário —, conduzam
a escravizar seres humanos, a desconhecer a sua dignidade
pessoal, a comprá-los, vendê-los, trocá-los como mercadoria. É um pecado contra
a dignidade das pessoas e seus direitos fundamentais reduzi-las, pela
violência, a um valor utilitário ou a uma fonte de lucro. S. Paulo ordenava a
um amo cristão que tratasse seu escravo, também cristão, "não como
escravo, mas como irmão (...), como um homem, no Senhor" (Flm 16)». [159]
101. No âmbito político, deve-se assinalar que a veracidade nas relações
dos governantes com os governados, a transparência na administração pública, a
imparcialidade no serviço das Instituições públicas, o respeito dos direitos
dos adversários políticos, a tutela dos direitos dos acusados face a processos
e condenações sumárias, o uso justo e honesto do dinheiro público, a recusa de
meios equívocos ou ilícitos para conquistar, manter e aumentar a todo o custo o
poder, são princípios que encontram a sua raiz primária — como também a sua
singular urgência — no valor transcendente da pessoa e nas exigências morais
objectivas de governo dos Estados. [160] Quando
aqueles deixam de ser observados, esmorece o próprio fundamento da convivência
política e toda a vida social fica progressivamente comprometida, ameaçada e
votada à sua dissolução (cf. Sal 13 14, 3-4; Ap 18,
2-3. 9-24). Após a queda, em muitos países, das ideologias que vinculavam a
política a uma concepção totalitária do mundo — sendo o marxismo, a primeira
dentre elas —, esboça-se hoje um risco não menos grave para a negação dos
direitos fundamentais da pessoa humana e para a reabsorção na política da
própria inquietação religiosa que habita no coração de cada ser humano: é o
risco da aliança entre democracia e relativismo ético, que tira à
convivência civil qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais
radicalmente, priva-a da verificação da verdade. De facto, «se não existe
nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e
as convicções políticas podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de
poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo
aberto ou dissimulado, como a história demonstra».[161]
Desta forma, em qualquer campo da vida pessoal, familiar, social e
política, a moral — que se baseia sobre a verdade e na verdade se abre à
autêntica liberdade — presta um serviço original, insubstituível e de enorme
valor não só para o indivíduo e o seu crescimento no bem, mas também para a
sociedade e o seu verdadeiro progresso.
Graça e obediência à lei de Deus
102. Mesmo nas situações mais difíceis, o homem deve observar a norma
moral para ser obediente ao santo mandamento de Deus e coerente com a própria
dignidade pessoal. Certamente a harmonia entre liberdade e verdade pede, por
vezes, sacrifícios extraordinários, sendo conquistada por alto preço: pode
comportar inclusive o martírio. Mas, como demonstra a experiência universal e
quotidiana, o homem sente-se tentado a romper essa harmonia: «Não faço aquilo
que quero, mas sim aquilo que aborreço (...) O bem que eu quero não o faço, mas
o mal que não quero» (Rm 7, 15. 19).
Mas donde provém, em última análise, esta cisão interior do homem? Este
começa a sua história de pecado, quando deixa de reconhecer o Senhor como seu
Criador e quer ser ele mesmo a decidir, com total independência, o que é bem e
o que é mal. «Sereis como Deus, e ficareis a conhecer o bem e o mal» (Gn 3,
5): esta é a primeira tentação, e dela fazem eco todas as outras tentações, às
quais o homem está mais facilmente inclinado a ceder por causa das feridas da
queda original.
Mas as tentações podem ser vencidas, os pecados podem ser evitados,
porque, com os mandamentos, o Senhor nos dá a possibilidade de observá-los: «Os
olhos do Senhor estão sobre os que O temem, Ele conhece as acções de cada um.
Ele a ninguém deu ordem para fazer o mal e a ninguém deu permissão de pecar (Sir 15,
19-20). A observância da lei de Deus, em determinadas situações, pode ser
difícil, até dificílima: nunca, porém, impossível. Este é um ensinamento
constante da tradição da Igreja, assim expresso pelo Concílio de Trento:
«Ninguém pois, mesmo justificado, se deve considerar livre da observância dos
mandamentos; ninguém se deve apropriar daquela expressão temerária e já
condenada com a excomunhão pelos Padres, segundo a qual é impossível ao homem
justificado observar os mandamentos de Deus. De facto, Deus não manda coisas
impossíveis, mas ao ordená-las exorta-te a fazeres tudo o que podes, e a
pedires o que não podes, ajudando-te para que possas; com efeito, "os
mandamentos de Deus não são pesados" (cf. 1 Jo 5, 3) e
"o Seu jugo é suave e o Seu fardo leve" (cf. Mt 11,
30)». [162]
103. Ao homem, permanece sempre aberto o horizonte espiritual da
esperança, com a ajuda da graça divina e com a colaboração
da liberdade humana.
É na Cruz salvadora de Jesus, no dom do Espírito Santo, nos Sacramentos
que promanam do lado trespassado do Redentor (cf. Jo 19, 34),
que o crente encontra a graça e a força para observar sempre a lei santa de Deus,
inclusive no meio das mais graves dificuldades. Como diz S. André de Creta, a
própria lei «foi animada pela graça e posta ao serviço desta numa combinação
harmónica e fecunda. Cada uma delas conservou as suas características sem
alteração nem confusão. Mas a lei, que antes constituía um ónus gravoso e uma
tirania, tornou-se, por obra de Deus, peso suave e fonte de liberdade».[163]
Só no mistério da Redenção de Cristo se encontram as «concretas»
possibilidades do homem. «Seria um
erro gravíssimo concluir (...) que a norma ensinada pela Igreja é em si própria
apenas um "ideal" que deve posteriormente ser adaptado,
proporcionado, graduado — dizem — às concretas possibilidades do homem: segundo
um "cálculo dos vários bens em questão". Mas, quais são as
"concretas possibilidades do homem"? E de que homem
se fala? Do homem dominado pela concupiscência ou do homem redimido
por Cristo? Pois é disso que se trata: da realidade da
redenção de Cristo. Cristo redimiu-nos! O que significa que
Ele nos deu a possibilidade de realizar toda a
verdade do nosso ser; Ele libertou a nossa liberdade do domínio da
concupiscência. E se o homem redimido ainda peca, não é devido à imperfeição do
acto redentor de Cristo, mas à vontade do homem de furtar-se à
graça que brota daquele acto. O mandamento de Deus é certamente proporcionado
às capacidades do homem: mas às capacidades do homem a quem foi dado o Espírito
Santo; do homem que, no caso de cair no pecado, sempre pode obter o perdão e
gozar da presença do Espírito».[164]
104. Neste contexto, abre-se o justo espaço à misericórdia de
Deus pelo pecado do homem que se converte, e à compreensão
pela fraqueza humana. Esta compreensão não significa nunca comprometer
e falsificar a medida do bem e do mal, para adaptá-la às circunstâncias. Se é
humano que a pessoa, tendo pecado, reconheça a sua fraqueza e peça misericórdia
pela própria culpa, é inaceitável, pelo contrário, o comportamento de quem faz
da própria fraqueza o critério da verdade do bem, de modo a poder-se sentir
justificado por si só, mesmo sem necessidade de recorrer a Deus e à Sua
misericórdia. Semelhante atitude corrompe a moralidade da sociedade inteira,
porque ensina a duvidar da objectividade da lei moral em geral e a rejeitar o carácter
absoluto das proibições morais acerca de determinados actos humanos, acabando
por confundir todos os juízos de valor.
Devemos, ao invés, acolher a mensagem que nos vem da parábola
evangélica do fariseu e do publicano (cf. Lc 18,
9-14). Talvez o publicano pudesse ter alguma justificação para os pecados
cometidos, de modo a diminuir a sua responsabilidade. Porém, não é sobre estas
justificações que se detém a sua oração, mas sobre a própria indignidade face à
infinita santidade de Deus: «Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador» (Lc 18,
13). O fariseu, pelo contrário, justifica-se por si só, encontrando talvez uma
desculpa para cada uma das suas faltas. Defrontamo-nos, assim, com dois
comportamentos diversos da consciência moral do homem de todos os tempos. O
publicano apresenta-nos uma consciência «penitente», que está plenamente ciente
da fragilidade da própria natureza e vê nas próprias faltas, independentemente
das justificações subjectivas, uma confirmação do próprio ser necessitado de
redenção. O fariseu mostra-nos uma consciência «satisfeita consigo mesma», que
se ilude de poder observar a lei sem a ajuda da graça e está convencida de não
ter necessidade da misericórdia.
105. A todos é pedida uma grande vigilância para não se deixar contagiar
pela atitude farisaica que pretende eliminar a consciência da própria limitação
e do próprio pecado, e que hoje se exprime particularmente na tentativa de
adaptar a norma moral às próprias capacidades e interesses, e até na rejeição
do conceito mesmo de norma. Pelo contrário, aceitar a «desproporção» entre a
lei e a capacidade humana, ou seja, a capacidade das simples forças morais do
homem deixado a si próprio, aviva o desejo da graça e predispõe a recebê-la.
«Quem me há-de libertar deste corpo de morte?» — pergunta-se o apóstolo Paulo.
E numa jubilosa e grata confissão, responde: «Graças sejam dadas a Deus, por
Jesus Cristo, Nosso Senhor!» (Rm 7, 24-25).
A mesma consciência nos aparece nesta oração de S. Ambrósio de Milão:
«De facto, o que é o homem se Vós não o visitais? Não esqueçais, portanto, o
débil. Lembrai-Vos, ó Senhor, que me fizestes débil, e que do pó me plasmastes.
Como poderei permanecer de pé, se Vós não me olhais continuamente para
consolidar este barro, já que a minha consistência provém da Vossa face?
"Se escondeis o Vosso rosto, tudo desfalece" (Sal 103,
29): mas, se Vós me olhais, ai de mim! Nada tendes para ver em mim senão
montanhas de delitos: não traz vantagem ser abandonados nem ser vistos, porque,
quando somos contemplados, provocamos desgosto. Podemos, porém, pensar que Deus
não rejeita aqueles que vê, porque purifica aos que olha. Diante d'Ele arde um
fogo capaz de queimar a culpa (cf. Jl 2, 3)». [165]
Moral e nova evangelização
106. A evangelização é o desafio mais forte e sublime, que a Igreja é
chamada a enfrentar desde a sua origem. Na verdade, a proporem este desafio não
são tanto as situações sociais e culturais que ela encontra ao longo da
história, como sobretudo o mandato de Jesus Cristo ressuscitado, que assim
define a razão da existência da Igreja: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a
Boa Nova a toda a criatura» (Mc 16, 15).
Mas o momento que estamos a viver, pelo menos numa extensão grande da
humanidade, é mais o de um formidável incitamento à «nova evangelização», ou
seja, ao anúncio do Evangelho sempre novo e sempre portador de novidade, uma
evangelização que deve ser «nova no seu ardor, nos seus métodos e na sua
expressão».[166] A
descristianização que pesa sobre povos e comunidades inteiras, outrora ricas de
fé e de vida cristã, comporta não só a perda da fé ou de qualquer modo a sua
ineficácia na vida, mas também, e necessariamente, um declínio ou um
obscurecimento do sentido moral: e isto, quer pela dissipação da
consciência da originalidade da moral evangélica, quer pelo eclipse dos
próprios princípios e valores éticos fundamentais. As tendências
subjectivistas, relativistas e utilitaristas, hoje amplamente difundidas,
apresentam-se não simplesmente como posições pragmáticas, como prática comum,
mas como concepções consolidadas do ponto de vista teorético que reivindicam
uma sua plena legitimidade cultural e social.
107. A evangelização — e, portanto, a «nova
evangelização» — comporta também o anúncio e a proposta moral. O
próprio Jesus, precisamente ao pregar o Reino de Deus e o Seu amor salvífico,
fez apelo à fé e à conversão (cf. Mc 1, 15). E Pedro, com os
outros Apóstolos, ao anunciar a ressurreição de Jesus de Nazaré de entre os
mortos, propõe uma vida nova a viver, um «caminho» a seguir para ser discípulo
do Ressuscitado (cf. Act 2, 37-41; 3, 17-20).
Tanto ou mais ainda que pelas verdades da fé, é ao propor os fundamentos
e os conteúdos da moral cristã que a nova evangelização manifesta a sua
autenticidade, e, ao mesmo tempo, expande toda a sua força missionária, quando
se realiza com o dom não só da palavra anunciada, mas também
da palavra vivida. É particularmente a vida de
santidade, resplandecente em tantos membros do Povo de Deus, humildes
e, com frequência, despercebidos aos olhos dos homens, que constitui o caminho
mais simples e fascinante, onde é permitido perceber imediatamente a beleza da
verdade, a força libertadora do amor de Deus, o valor da fidelidade
incondicional a todas as exigências da lei do Senhor, mesmo nas circunstâncias
mais difíceis. Por isso, a Igreja, com a sua sábia pedagogia moral, sempre
convidou os crentes a procurarem e a encontrarem nos santos e santas, e, em
primeiro lugar, na Virgem Mãe de Deus «cheia de graça» e «toda santa», o
modelo, a força e a alegria para viver uma vida conforme aos mandamentos e às
Bem-aventuranças do Evangelho.
A vida dos santos, reflexo da bondade de Deus — d'Aquele que «só é bom»
—, constitui não apenas uma verdadeira confissão de fé e um impulso para a
comunicar aos outros, mas também uma glorificação de Deus e da sua infinita
santidade. Uma vida santa leva assim à sua plenitude de expressão e actuação o
tríplice e unitário munus propheticum, sacerdotale et regale, que
cada cristão recebe como dom no renascimento baptismal «da água e do Espírito»
(Jo 3, 5). A sua vida moral possui o valor de um « culto espiritual
» (Rm 12, 1; cf. Fil 3, 3), que brota e se
alimenta daquela fonte inesgotável de santidade e glorificação de Deus que são
os Sacramentos, especialmente a Eucaristia: com efeito, ao participar no
sacrifício da Cruz, o cristão comunga do amor de doação de Cristo, ficando
habilitado e comprometido a viver esta mesma caridade em todas as suas atitudes
e comportamentos de vida. Na vida moral, revela-se e actua-se ainda o serviço
régio do cristão: quanto mais ele, com a ajuda da graça, obedece à lei nova do
Espírito Santo, tanto mais cresce na liberdade, à qual é chamado através do
serviço da verdade, da caridade e da justiça.
108. Na raiz da nova evangelização e da vida moral nova, que aquela
propõe e suscita com os seus frutos de santidade e de missionação, está o Espírito
de Cristo, princípio e força da fecundidade da santa Mãe Igreja, como
nos recorda Paulo VI: «A evangelização nunca será possível sem a acção do
Espírito Santo».[167] Ao
Espírito de Jesus, acolhido pelo coração humilde e dócil do crente, se devem, pois,
o florescimento da vida moral cristã e o testemunho da santidade na grande
variedade das vocações, dos dons, das responsabilidades e das condições e
situações de vida: é o Espírito Santo — anotava Novaciano, nisto exprimindo a
autêntica fé da Igreja — «Aquele que deu firmeza aos corações e às mentes dos
discípulos, que os iniciou nos mistérios evangélicos, que os iluminou nas
coisas divinas; por Ele revigorados, não temeram as prisões nem as correntes
pelo nome do Senhor; antes, subjugaram as próprias potências e tormentos do
mundo, armados já e reforçados por Seu intermédio, dotados que foram com os
Seus dons que este mesmo Espírito reparte e envia como jóias à Igreja, Esposa
de Cristo. É Ele, de facto, que na Igreja suscita os profetas, instrui os mestres,
guia as línguas, realiza prodígios e curas, produz obras admiráveis, concede o
discernimento dos espíritos, confere os encargos de governo, sugere os
conselhos, reparte e harmoniza os restantes dons carismáticos, tornando, assim,
por toda a parte e em tudo plenamente perfeita a Igreja do Senhor».[168]
No contexto vivo desta nova evangelização, destinada a gerar e a nutrir
«a fé que actua pela caridade» (Gál 5, 6), e em relação com a obra
do Espírito Santo, podemos agora compreender o lugar que, na Igreja, comunidade
dos crentes, compete à reflexão que a teologia deve desenvolver sobre a
vida moral, assim como podemos apresentar a missão e a
responsabilidade própria dos teólogos moralistas.
O serviço dos teólogos moralistas
109. Toda a Igreja, feita participante do munus
propheticum do Senhor Jesus mediante o dom do Seu Espírito, é chamada
à evangelização e ao testemunho de uma vida de fé. Graças à presença permanente
do Espírito de verdade nela (cf. Jo 14, 16-17), «a totalidade
dos fiéis que receberam a unção do Espírito Santo (cf. 1 Jo 2,
20.27) não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se
por meio do sentir sobrenatural da fé do Povo todo, quando este, "desde os
Bispos até ao último dos fiéis leigos", manifesta consenso universal em
matéria de fé e de costumes».[169]
Para cumprir a sua missão profética, a Igreja deve continuamente
despertar ou «reavivar» a própria vida de fé (cf. 2 Tim 1, 6),
particularmente por meio de uma reflexão cada vez mais profunda do conteúdo da
mesma fé, sob a guia do Espírito Santo. É ao serviço desta «busca fiel da
inteligência da fé» que está, de modo específico, a «vocação» do
teólogo na Igreja: «Entre as vocações suscitadas na Igreja pelo
Espírito — lemos na Instrução Donum veritatis — distingue-se a do teólogo, que em
modo particular, tem a função de adquirir, em comunhão com o Magistério, uma
compreensão sempre mais profunda da Palavra de Deus contida na Escritura
inspirada e transmitida pela Tradição viva da Igreja. Por sua natureza a fé se
apela à inteligência, porque desvela ao homem a verdade sobre o seu destino e o
caminho para o alcançar. Mesmo sendo a verdade revelada superior a todo o nosso
falar, e sendo os nossos conceitos imperfeitos frente à sua grandeza, em última
análise insondável (cf. Ef 3, 19), ela convida porém a razão —
dom de Deus feito para colher a verdade — a entrar na sua luz, tornando-se
assim capaz de compreender, em certa medida, aquilo em que crê. A ciência
teológica, que respondendo ao convite da verdade, busca a inteligência da fé,
auxilia o Povo de Deus, de acordo com o mandamento do Apóstolo (cf. 1
Pd 3, 15), a dar razão da própria esperança, àqueles que a pedem».[170]
Para definir a própria identidade da teologia e, consequentemente,
actuar a sua missão específica, é fundamental reconhecer o seu nexo
íntimo e vivo com a Igreja, o seu mistério, a sua vida e missão: «A
teologia é ciência eclesial, porque cresce na Igreja e age sobre a Igreja (...)
Ela está ao serviço da Igreja, devendo portanto sentir-se dinamicamente
inserida na missão da Igreja, particularmente na sua missão profética».[171] Por
sua natureza e dinamismo, a teologia autêntica só pode florescer e
desenvolver-se mediante uma convicta e responsável participação e «pertença» à
Igreja enquanto «comunidade de fé», assim como a esta mesma Igreja e à sua vida
de fé retorna o fruto da pesquisa e do aprofundamento teológico.
110. Quanto foi dito até agora sobre a teologia em geral, pode e deve
ser referido à teologia moral, considerada na sua
especificidade de reflexão científica sobre o Evangelho como dom e
mandamento de vida nova, sobre a vida «segundo a verdade na caridade»
(Ef 4, 15), sobre a vida de santidade da Igreja, na qual
resplandece a verdade do bem levado até à sua perfeição. Não só no âmbito da
fé, mas também e de modo indivisível no âmbito da moral, intervém o Magistério
da Igreja, cuja tarefa é «discernir, mediante juízos normativos para a
consciência dos fiéis, os actos que são em si mesmos conformes às exigências da
fé e que promovem a sua expressão na vida, e aqueles que, pelo contrário, por
sua malícia intrínseca, são incompatíveis com tais exigências».[172]
Pregando os mandamentos de Deus e a caridade de Cristo, o Magistério da
Igreja ensina aos fiéis também os preceitos particulares e determinados e
pede-lhes que os considerem, em consciência, como moralmente obrigatórios.
Desempenha, além disso, um importante papel de vigilância, advertindo os fiéis
da presença de eventuais erros, mesmo só implícitos, quando a sua consciência
não chega a reconhecer a conveniência e a verdade das regras morais que o
Magistério ensina.
Aqui se insere a tarefa específica de quantos, por mandato dos legítimos
Pastores, ensinam teologia moral nos Seminários e nas Faculdades Teológicas.
Eles têm o grave dever de instruir os fiéis — especialmente os futuros Pastores
— sobre todos os mandamentos e as normas práticas que a Igreja declara com autoridade. [173] Apesar
dos eventuais limites das argumentações humanas apresentadas pelo Magistério,
os teólogos moralistas são chamados a aprofundar as razões dos seus
ensinamentos, ilustrar o fundamento dos preceitos por ele indicados e a sua
obrigatoriedade, mostrando a sua mútua conexão e a relação com o fim último do
homem. [174] Cabe
aos teólogos moralistas expor a doutrina da Igreja, dando, no exercício do seu
ministério, o exemplo de uma leal adesão, interna e externa, ao ensinamento do
Magistério, tanto no campo do dogma como no da moral. [175] Unindo
as suas forças para colaborar com o Magistério hierárquico, os teólogos terão a
peito fazer sobressair cada vez mais os fundamentos bíblicos, os significados
éticos e as motivações antropológicas que apoiam a doutrina moral e a visão do
homem, propostas pela Igreja.
111. O serviço que os teólogos moralistas são chamados a prestar, na
hora actual, é de primária importância não só para a vida e missão da Igreja,
mas também para a sociedade e a cultura humana. Em estreita e vital conexão com
a teologia bíblica e dogmática, compete-lhes sublinhar, na reflexão científica,
«o aspecto dinâmico que faz ressaltar a resposta que o homem deve dar ao apelo
divino no processo do seu crescimento no amor, no âmbito de uma comunidade
salvífica. Deste modo, a teologia moral adquirirá uma dimensão espiritual
interna, respondendo às exigências de pleno desenvolvimento da imago
Dei, que está no homem, e às leis do processo espiritual descrito na
ascética e mística cristãs».[176]
Hoje certamente a teologia moral e o seu ensino defrontam-se com uma
particular dificuldade. Visto que a moral da Igreja implica necessariamente uma
dimensão normativa, a teologia moral não se pode reduzir a um
conhecimento elaborado só no contexto das chamadas ciências
humanas. Enquanto estas se ocupam do fenómeno da moralidade como facto
histórico e social, a teologia moral, embora deva servir-se das ciências do homem
e da natureza, não está, porém, subordinada aos resultados da observação
empírico-formal ou da compreensão fenomenológica. Na verdade, a incidência das
ciências humanas na teologia moral sempre deverá ser regulada pela pergunta
originária: O que é o bem e o mal?
Que devo fazer para alcançar a vida eterna?
112. O teólogo moralista deve, portanto, praticar um cuidadoso
discernimento no contexto da actual cultura prevalecentemente científica e
técnica, sujeita aos perigos do relativismo, pragmatismo e positivismo. Do
ponto de vista teológico, os princípios morais não estão dependentes do momento
histórico, em que são descobertos. Além disso, o facto de alguns crentes agirem
sem observar os ensinamentos do Magistério ou considerarem erradamente como
moralmente justa uma conduta, declarada pelos seus Pastores contrária à lei de
Deus, não pode constituir argumento válido para rejeitar a verdade das normas
morais ensinadas pela Igreja. A afirmação dos princípios morais não é da
competência dos métodos empírico-formais. Sem negar a validade de tais métodos,
mas tão pouco sem restringir a eles a sua perspectiva, a teologia moral, fiel
ao sentido sobrenatural da fé, toma em consideração sobretudo a
dimensão espiritual do coração humano e a sua vocação ao amor divino.
De facto, enquanto as ciências humanas, como todas as ciências
experimentais, desenvolvem um conceito empírico e estatístico de «normalidade»,
a fé ensina que uma tal normalidade carrega em si os vestígios de uma queda do
homem da sua situação original, ou seja, está afectada pelo pecado. Só a fé
cristã indica ao homem o caminho do regresso «ao princípio» (cf. Mt 19,
8), um caminho que, com frequência, é bem distinto daquele da normalidade
empírica. Neste sentido, as ciências humanas, apesar do grande valor dos
conhecimentos que oferecem, não podem ser assumidas como indicadores decisivos
das normas morais deste caminho. É o Evangelho que descobre a verdade integral
sobre o homem e sobre o seu caminho moral, e assim ilumina e adverte os
pecadores anunciando-lhes a misericórdia de Deus, o Qual incessantemente cuida
de os preservar tanto do desespero por não poderem conhecer e observar a lei
divina, como da presunção de se poderem salvar sem merecimento. Além disso, ele
lembra-lhes a alegria do perdão, o único capaz de conceder a força para
reconhecer na lei moral uma verdade libertadora, uma graça de esperança, um
caminho de vida.
113. O ensino da doutrina moral implica a assunção consciente destas
responsabilidades intelectuais, espirituais e pastorais. Por isso, os teólogos
moralistas, que aceitam o encargo de ensinar a doutrina da Igreja, têm o grave
dever de educar os fiéis para o discernimento moral, para o empenhamento no
verdadeiro bem e para o recurso confiante à graça divina.
Se a convergência e os conflitos de opinião podem constituir expressões
normais da vida pública, no contexto de uma democracia representativa, a
doutrina moral não pode certamente depender do simples respeito por um tal
processo; ela, de facto, não é absolutamente estabelecida, seguindo as regras e
as formas de uma deliberação de tipo democrático. A discordância, feita
de interesseiras contestações e polémicas através dos meios de comunicação
social, é contrária à comunhão eclesial e à recta compreensão da
constituição hierárquica do Povo de Deus. Na oposição aos ensinamentos
dos Pastores, não se pode reconhecer uma legítima expressão da liberdade cristã
nem da diversidade dos dons do Espírito. Neste caso, os Pastores têm o dever de
agir em conformidade com a sua missão apostólica, exigindo que seja sempre
respeitado o direito dos fiéis de receberem a doutrina
católica na sua pureza e integridade: «O teólogo, não esquecendo jamais que
também ele é membro do Povo de Deus, deve nutrir-lhe respeito, e esforçar-se
por dispensar-lhe um ensinamento que não venha lesar, de modo algum, a doutrina
da fé».[177]
As nossas responsabilidades de Pastores
114. A responsabilidade pela fé e pela vida de fé do Povo de Deus pesa
duma maneira peculiar e precisa sobre os Pastores, como nos lembra o Concílio
Vaticano II: «Entre os principais encargos dos Bispos ocupa lugar preeminente a
pregação do Evangelho. Os Bispos são os arautos da fé que para Deus conduzem
novos discípulos. Dotados da autoridade de Cristo, são doutores autênticos, que
pregam ao povo a eles confiado a fé que se deve crer e aplicar na vida prática;
ilustrando-a sob a luz do Espírito Santo e tirando do tesouro da revelação
coisas novas e antigas (cf. Mt 13, 52), fazem-no frutificar e
solicitamente afastam os erros que ameaçam o seu rebanho (cf. 2
Tim 4, 1-4)». [178]
É nosso dever comum e, antes ainda, nossa graça comum, ensinar aos
fiéis, como Pastores e Bispos da Igreja, aquilo que os conduz pelo caminho de
Deus, tal como fez um diz o Senhor Jesus com o jovem do Evangelho. Ao responder
à sua pergunta: «Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?», Jesus
apontou para Deus, Senhor da criação e da Aliança; lembrou os mandamentos
morais, já revelados no Antigo Testamento; indicou o seu espírito e
radicalidade, convidando a segui-Lo na pobreza, na humildade e no amor: «Vem e
segue-Me!». A verdade desta doutrina teve a sua chancela sobre a Cruz no sangue
de Cristo: tornou-se, no Espírito Santo, a nova lei da Igreja e de cada
cristão.
Esta «resposta» à questão moral está confiada por Jesus Cristo de um
modo particular a nós, Pastores da Igreja, chamados a torná-la objecto do nosso
magistério, e, portanto, no cumprimento do nosso munus
propheticum. Ao mesmo tempo, a nossa responsabilidade de Pastores,
quanto à doutrina moral cristã, deve ser actuada também na forma do munus
sacerdotale: isto realiza-se quando distribuímos aos fiéis os dons da
graça e da santificação, como meio para obedecer à lei santa de Deus, e quando,
com a nossa assídua e confiante prece, sustentamos os crentes, para que sejam
fiéis às exigências da fé e vivam conforme ao Evangelho (cf. Col 1,
9-12). A doutrina moral cristã deve constituir, sobretudo hoje, um dos âmbitos
privilegiados da nossa vigilância pastoral, do exercício do nosso munus
regale.
115. Com efeito, é a primeira vez que o Magistério da Igreja expõe os
elementos fundamentais dessa doutrina com uma certa amplitude, e apresenta as
razões do discernimento pastoral necessário em situações práticas e culturais
complexas e, por vezes, críticas.
À luz da Revelação e do ensinamento constante da Igreja, e especialmente
do Concílio Vaticano II, evoquei brevemente os traços essenciais da liberdade,
os valores fundamentais relacionados com a dignidade da pessoa e com a verdade
dos seus actos, para assim poder reconhecer na obediência à lei moral, uma
graça e um sinal da nossa adopção no único Filho (cf. Ef 1,
4-6). Em particular, com esta Encíclica, são propostas avaliações sobre algumas
tendências actuais na teologia moral. Comunico-as agora, em obediência à
palavra do Senhor que confiou a Pedro o encargo de confirmar os seus irmãos
(cf. Lc 22, 32), para iluminar e ajudar o nosso discernimento
comum.
Cada um de nós conhece a importância da doutrina que representa o núcleo
do ensinamento desta Encíclica e que hoje é evocada com a autoridade do
Sucessor de Pedro. Cada um de nós pode considerar a gravidade daquilo que está
em causa, não só para os indivíduos mas também para a sociedade inteira,
na confirmação da universalidade e da imutabilidade dos mandamentos
morais, e, em particular, daqueles que proibem sempre e sem excepção
os actos intrinsecamente maus.
Ao reconhecer tais mandamentos, o coração cristão e a nossa caridade
pastoral escutam o apelo d'Aquele que «nos amou primeiro» (1 Jo 4,
19). Deus pede-nos que sejamos santos como Ele é santo (cf. Lv 19,
2), que sejamos — em Cristo — perfeitos como Ele é perfeito (cf. Mt 5,
48): a exigente firmeza do mandamento baseia-se no inesgotável amor
misericordioso de Deus (cf. Lc 6, 36), e o fim do mandamento é
conduzir-nos, com a graça de Cristo, pelo caminho da plenitude da vida própria
dos filhos de Deus.
116. Temos o dever, como Bispos, de vigiar a fim de que a
Palavra de Deus seja fielmente ensinada. Meus Irmãos no Episcopado,
faz parte do nosso ministério pastoral vigiar sobre a transmissão fiel deste
ensinamento moral e recorrer às medidas oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda a doutrina e teoria a ele
contrárias. Nesta tarefa, todos somos ajudados pelos teólogos; mas, as
opiniões teológicas não constituem a regra nem a norma do nosso ensinamento. A
autoridade deste deriva, com a assistência do Espírito Santo e na
comunhão cum Petro et sub Petro, da nossa fidelidade à fé
católica recebida dos Apóstolos. Como
Bispos, temos a obrigação grave de vigiar pessoalmente por que
a «sã doutrina» (1 Tim 1, 10) da fé e da moral seja ensinada nas
nossas dioceses.
Uma particular responsabilidade se impõe aos Bispos, relativamente
às instituições católicas. Quer se trate de organismos para a
pastoral familiar ou social, quer de instituições dedicadas ao ensino ou aos
cuidados sanitários, os Bispos podem erigir e reconhecer estas estruturas e
delegar-lhes algumas responsabilidades; mas, nunca ficam dispensados das
próprias obrigações. Compete-lhes, em comunhão com a Santa Sé, a tarefa de
reconhecer, ou de retirar em casos de
grave incoerência, a denominação de «católico» a escolas, [179] universidades, [180]clínicas
e serviços sócio-sanitários, que se dizem da Igreja.
117. No coração do cristão, no núcleo mais secreto do homem, sempre
ressoa a pergunta que, um dia, o jovem do Evangelho dirigiu a Jesus: «Mestre,
que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?» (Mt 19, 16). É
necessário, porém, que cada um a faça ao «bom» Mestre, porque é o único que
pode responder na plenitude da verdade, em toda a situação e nas mais diversas
circunstâncias. E quando os cristãos Lhe fazem a pergunta que sai da sua
consciência, o Senhor responde com as palavras da Nova Aliança confiadas à sua
Igreja. Ora, como diz de si próprio o Apóstolo, nós fomos enviados «a pregar o
Evangelho, não, porém, com sabedoria de palavras, para não se desvirtuar a Cruz
de Cristo» (1 Cor 1, 17). Por isso, a resposta da Igreja à pergunta
do homem tem a sabedoria e a força de Cristo crucificado, a Verdade que Se dá.
Quando os homens põem à Igreja as perguntas da sua consciência, quando na Igreja os fiéis se dirigem aos Bispos e aos Pastores, na
resposta da Igreja está a voz de Jesus Cristo, a voz da verdade acerca do bem e
do mal. Mediante a palavra pronunciada pela Igreja, ressoa no íntimo
das pessoas a voz de Deus, que «só é bom» (Mt 19, 17), que só «é
amor» (1 Jo 4, 8. 16).
Na unção do Espírito, esta palavra doce e exigente
torna-se luz e vida para o homem. É ainda o apóstolo Paulo a convidar-nos à
confiança, porque «a nossa capacidade vem de Deus. Ele é que nos fez capazes de
sermos ministros de uma Nova Aliança, não da letra, mas do Espírito (...) O
Senhor é espírito e onde está o Espírito do Senhor há liberdade. E todos nós,
com o rosto descoberto, reflectindo a glória do Senhor, como um espelho, somos
transformados de glória em glória, nessa mesma imagem, sempre mais
resplandecente, pela acção do Espírito do Senhor» (2 Cor 3,
5-6.17-18).
CONCLUSÃO
Maria, Mãe de misericórdia
118. No final destas considerações, confiamos nós mesmos, os sofrimentos
e as alegrias da nossa existência, a vida moral dos crentes e dos homens de boa
vontade, as pesquisas dos estudiosos de moral a Maria, Mãe de Deus e Mãe de
misericórdia.
Maria é Mãe de misericórdia, porque Jesus Cristo, seu Filho, foi mandado
pelo Pai como Revelação da misericórdia de Deus (cf. Jo 3,
16-18). Ele não veio para condenar mas para perdoar, para usar de misericórdia
(cf. Mt 9, 13). E a misericórdia maior está no seu habitar
entre nós e na chamada que nos é feita para O encontrar e confessar, juntamente
com Pedro, como «o Filho do Deus vivo» (Mt 16, 16). Nenhum pecado
do homem pode cancelar a misericórdia de Deus, nem pode impedi-la de expandir
toda a sua força vitoriosa, logo que a invocamos. Antes, o mesmo pecado faz
resplandecer ainda mais o amor do Pai que, para resgatar o escravo, sacrificou
o Seu Filho:[181] a
Sua misericórdia por nós é redenção. Esta misericórdia chega à sua plenitude
com o dom do Espírito, que gera e exige a vida nova. Por mais numerosos e
grandes que sejam os obstáculos postos pela fragilidade e pelo pecado do homem,
o Espírito, que renova a face da terra (cf. Sal 103-104, 30),
torna possível o milagre do cumprimento perfeito do bem. Esta renovação, que dá
a capacidade de fazer o que é bom, nobre, belo, agradável a Deus e conforme à
Sua vontade, é em certo sentido o florescimento do dom da misericórdia, que
liberta da escravidão do mal e dá a força de não mais pecar. Pelo dom da vida
nova, Jesus torna-nos participantes do Seu amor e nos conduz ao Pai no
Espírito.
119. Esta é a consoladora certeza da fé cristã, à qual se deve a sua
profunda humanidade e a sua extraordinária simplicidade. Por
vezes, nas discussões sobre os novos e complexos problemas morais, pode parecer
que a moral cristã seja em si própria demasiado difícil, árdua para se
compreender e quase impossível de praticar. Isto é falso, porque ela, em termos
de simplicidade evangélica, consiste em seguir Jesus Cristo, abandonar-se
a Ele, deixar-se transformar pela Sua graça e renovar pela Sua misericórdia,
que nos vem da vida de comunhão da sua Igreja. «Quem quiser viver — recorda-nos
S. Agostinho —, tem onde viver, tem donde viver. Aproxime-se, creia, deixe-se
incorporar para ser vivificado. Não abandone a companhia dos membros».[182] Portanto,
todo o homem pode compreender, com a luz do Espírito, a essência vital da moral
cristã, inclusive o menos dotado, antes e sobretudo quem sabe conservar um
«coração simples» (Sal 85-86, 11). Por outro lado, esta
simplicidade evangélica não dispensa de enfrentar a complexidade da situação,
mas pode introduzir na sua compreensão mais verdadeira, porque o seguimento de
Cristo porá progressivamente a descoberto as características da autêntica
moralidade cristã e dará, ao mesmo tempo, a energia vital para a sua
realização. É tarefa do Magistério da Igreja vigiar a fim de que o dinamismo do
seguimento de Cristo se desenvolva orgânicamente, sem deixar que lhe sejam
falseadas ou ocultadas as exigências morais com todas as suas consequências.
Quem ama Cristo observa os seus mandamentos (cf. Jo 14, 15).
120. Maria é Mãe de misericórdia também, porque a Ela Jesus confia a Sua
Igreja e a humanidade inteira. Aos pés da Cruz, quando aceita João como filho,
quando pede ao Pai, juntamente com Cristo, o perdão para aqueles que não sabem
o que fazem (cf. Lc 23, 34), Maria, em perfeita docilidade ao
Espírito, experimenta a riqueza e a universalidade do amor de Deus, que Lhe
dilata o coração e A torna capaz de abraçar todo o género humano. Deste modo, é
feita Mãe de todos e cada um de nós, Mãe que nos alcança a misericórdia divina.
Maria é sinal luminoso e exemplo fascinante de vida moral: «já a sua
vida é ensinamento para todos», escreve S. Ambrósio,[183] que,
dirigindo-se especialmente às virgens mas num horizonte aberto a todos, assim
afirma: «O primeiro ardente desejo de aprender dá-o a nobreza do mestre. E quem
é mais nobre do que a Mãe de Deus? Ou mais esplêndida do que Aquela que foi
eleita pelo próprio Esplendor?».[184] Maria
vive e realiza a própria liberdade, doando-Se Ela mesma a Deus e acolhendo em
Si o dom de Deus. Guarda no seu seio virginal o Filho de Deus, feito homem, até
ao momento do Seu nascimento, educa-O, fá-Lo crescer e acompanha-O naquele
gesto supremo de liberdade que é o sacrifício total da própria vida. Com o dom
de Si mesma, Maria entra plenamente no desígnio de Deus, que Se dá ao mundo. Ao
acolher e meditar no seu coração acontecimentos que nem sempre compreende
(cf. Lc 2, 19), torna-Se o modelo de todos aqueles que escutam
a palavra de Deus e a praticam (cf. Lc 11, 28) e merece o
título de «Sede da Sabedoria». Esta Sabedoria é o próprio Jesus Cristo, o Verbo
eterno de Deus, que revela e cumpre perfeitamente a vontade do Pai (cf. Heb 10,
5-10). Maria convida cada homem a acolher esta Sabedoria. Também a nós dirige a
ordem dada aos servos, em Caná da Galileia durante o banquete de núpcias:
«Fazei o que Ele vos disser» (Jo 2, 5).
Maria compartilha a nossa condição humana, mas numa total transparência
à graça de Deus. Não tendo conhecido o
pecado, Ela é capaz todavia de Se compadecer de qualquer fraqueza.
Compreende o homem pecador e ama-o com amor de Mãe. Precisamente por isso, está
do lado da verdade e compartilha o peso da Igreja, ao recordar a todos e sempre
as exigências morais. Pelo mesmo motivo, não aceita que o homem pecador seja
enganado por quem pretendesse amá-lo justificando o seu pecado, pois sabe que
desta forma tornar-se-ia vão o sacrifício de Cristo, seu Filho. Nenhuma
absolvição, oferecida por condescendentes doutrinas até mesmo filosóficas ou
teológicas, pode tornar o homem verdadeiramente feliz: só a Cruz e a glória de
Cristo ressuscitado podem dar paz à sua consciência e salvação à sua vida.
Ó Maria,
Mãe de misericórdia,
velai sobre todos
para não se desvirtuar a Cruz de Cristo,
para que o homem não se extravie
do caminho do bem,
nem perca a consciência do pecado,
mas cresça na esperança
em Deus «rico de misericórdia» (Ef 2,
4),
cumpra livremente as boas obras
por Ele de antemão preparadas (cf. Ef 2, 10)
e toda a sua vida seja assim
«para louvor da Sua glória» (Ef 1, 12).
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 6 de Agosto, festa da
Transfiguração do Senhor, do ano de 1993, décimo quinto do meu Pontificado.
IOANNES PAULUS PP. II
OBS: Os Destaques, são meus.
Referências
[1]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 22.
[2]. Cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
[3]. Cf. ibid., 9.
[4]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 4.
[5]. Paulo VI, Discurso à Assembleia das Nações Unidas (4 de outubro de 1965), 1: AAS 57 (1965), 878;
cf. Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 13: AAS 59 (1967),
263-264).
[6]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 33.
[7]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 16.
[8]. Pio XII já tinha colocado em evidência este desenvolvimento doutrinal:
cf. Radiomensagem por ocasião do 50º aniversário da Carta enc. Rerum novarum de Leão XIII (1 de junho de 1941): ASS 33 (1941),
195-205. Também João XXIII, Carta enc. Mater et magistra (15 de maio de 1961): AAS 53 (1961), 410-413.
[9]. Carta ap. Spiritus Domini (1 de agosto de 1987): AAS 79 (1987), 1374.
[10]. Catecismo da Igreja Católica, n. 1692.
[11]. Const. ap. Fidei depositum (11 octubre 1992), 4.
[12]. Cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 10.
[13]. Cf. Carta ap. Parati semper aos Jovens de todo mundo por ocasião do Ano
Internacional da Juventude, (31
de março de 1985), 2-8: AAS 77 (1985), 581-600.
[14] Cf. Decreto sobre a formação sacerdotal Optatam totius, 16.
[15] Carta enc. Redemptor hominis (4 de março de 1979), 13: AAS 71 (1979), 282).
[16]. Ibid., 10: l. c., 274.
[17]. Exameron, dies VI, sermo IX, 8, 50: CSEL 32,
241.
[18]. S. Leão Magno, Sermo XCII, cap. III: PL 54, 454.
[19]. S. Tomás de Aquino, In duo praecepta caritatis et in decem
legis praecepta. Prologus: Opuscula theologica, II, n. 1129, Ed. Tauriens.
(1954), 245; cf. Summa Theologica, I-II, q. 91, a. 2; Catecismo da Igreja Católica, n. 1955.
[20]. Cf. Máximo o Confessor, Quaestiones ad Thalassium, Q.
64: PG 90, 723-728.
[21]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 24.
[22]. Catecismo da Igreja Católica, n. 2070.
[23]. In Iohannis Evangelium Tractatus, 41, 9-10: CCL 36,
363.
[24]. Cf. S. Agustín, De Sermone Domini in Monte, I, 1, 1: CCL 35,
1-2.
[25]. In Psalmum CXVIII Expositio, sermo 18, 37: PL 15,
1541; cf. S. Cromacio de Aquileya, Tractatus in Matthaeum, XX, I,
1-4: CCL 9/A, 291-292.
[26]. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1717.
[27]. In Iohannis Evangelium Tractatus, 41, 10: CCL 36,
363.
[28]. Ibid., 21, 8: CCL 36, 216.
[29]. Ibid., 82, 3: CCL 36, 533.
[30]. De spiritu et littera, 19, 34: CSEL 60,
187.
[31]. Confesiones, X, 29, 40: CCL 27, 176;
cf. De gratia et libero arbitrio, XV: PL 44, 899.
[32]. Cf. De spiritu et littera, 21, 36; 26, 46: CSEL 60,
189-190; 200-201.
[33]. Cf. Summa Theologiae, I-II, q. 106, a. 1, conclus. e ad.
2um.
[34]. In Matthaeum, hom. I, 1: PG 57, 15.
[35]. Cf. S. Ireneo, Adversus haereses, IV, 26, 2-5: SCh 100/2,
718-729.
[36]. Cf. S. Justino, Apologia, I 66: PG 6,
427-430.
[37]. Cf. 1 Pe 2, 12ss.; Didaqué, II, 2: Patres
Apostolici, ed. F. X. Funk, I, 6-9; Clemente de Alejandría, Paedagogus,
I, 10; II, 10: PG 8, 355-364; 497-536; Tertuliano, Apologeticum,
IX, 8: CSEL, 69, 24.
[38]. Cf. S. Inácio de Antioquia, Ad Magnesios, VI, 1-2: Patres
Apostolici, ed. F. X. Funk, I, 234-235; S. Ireneo, Adversus
haereses, IV, 33, 1.6.7: SCh 100/2, 802-805; 814-815;
816-819.
[39]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 8.
[40]. Cf. Ibid.
[41]. Ibid., 10.
[42]. Código de Direito Canónico, cân. 747 § 2.
[43]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 7.
[44]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 22.
[45]. Decreto sobre a formação sacerdotal Optatam totius, 16.
[46]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 62.
[47]. Ibid.
[48]. Cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 10.
[49]. Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, cap. 4: DS, 3018.
[50]. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Declaração sobre as relações da Igreja com as
religiões não cristãs Nostra aetate, 1.
[51]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 43-44.
[52]. Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 1, referência a João XXIII, Carta enc. Pacem in terris (11 de abril de 1963): AAS 55 (1963), 279; Ibid.,
265, e a Pio XII, Radiomensagem (24 de dezembro de
1944): AAS 37 (1945), 14.
[53]. Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 1.
[54]. Cf. Carta enc. Redemptor hominis (4 de março de 1979), 17: AAS 71 (1979),
295-300; Discurso aos participantes no V Seminário
Internacional de Estudos Jurídicos (10 de março de 1984), 4 Insegnamenti VII,
1 (1984), 656; Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre liberdade e
libertação Libertatis conscientia (22 de março de 1986), 19: AAS 79 (1987), 561.
[55]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 11.
[56]. Ibid., 17.
[57]. Ibid.
[58]. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 2; cf. também Gregório XVI, Carta enc. Mirari vos arbitramur (15
agosto 1832): Acta Gregorii Papae XVI, I, 169-174; Pio IX, Carta
enc. Quanta cura (8 de dezembro de 1864): Pii IX P.M.
Acta, I, 3, 687-700; Leão XIII, Carta enc. Libertas Praestantissimum (20 de junho de 1888): Leonis XIII P.M. Acta, VIII,
Romae 1889, 212-246.
[59]. A Letter Addressed to His Grace the Duke of Norfolk: Certain
Dificulties Felt by Anglicans in Catholic Teaching (Uniform Edition:
Longman, Grenn and Company, London, 1868-1881), vol. 2, p. 250.
[60]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 40-43.
[61]. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 71, a.
6; ver também ad 5um.
[62]. Cf. Pio XII, Carta enc. Humani generis (12 agosto 1950): AAS 42 (1950), 561-562.
[63]. Cf. Conc. Ecum. de Trento, Ses. VI, decreto sobre a justificação Cum
hoc tempore, cann. 19-21: DS, 1569-1571.
[64]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 17.
[65]. De hominis opificio, c. 4: PG 44,
135-136.
[66]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 36.
[67]. Ibid.
[68]. Ibid.
[69]. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 93, a.
3, ad 2um, citado por João XXIII, Carta enc. Pacem in terris (11 de abril de 1963): AAS 55 (1963), 271.
[70]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 41.
[71]. S. Tomás de Aquino, In duo praecepta caritatis et in decem
legis praecepta. Prologus: Opuscula theologica, II, n. 1129, Ed.
Taurinens (1954), 245.
[72]. Cf. Discurso a um grupo de Bispos dos Estados Unidos
da América em visita «ad limina» (15 de outubro de 1988), 6: Insegnamenti,
XI, 3 (1988), 1228.
[73]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 47.
[74]. Cf. S. Agustín, Enarratio in Psalmum LXII, 16: CCL 39,
804.
[75]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 17.
[76]. Summa Theologiae, I-II, q. 91, a. 2.
[77]. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1955.
[78]. Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 3.
[79]. Contra Faustum, lib. 22, cap. 27: PL 42,
418.
[80]. Summa Theologiae, I-II, q. 93, a. 1..
[81]. Cf. ibid., I-II, q. 90, a. 4, ad 1um.
[82]. Ibid., I-II, q. 91, a. 2.
[83]. Leão XIII, Carta enc. Libertas Praestantissimum (20 junho de 1888): Leonis XIII P. M. Acta, VIII,
Romae 1889, 219.
[84]. In Epistulam ad Romanos, c. VIII, lect. 1.
[85]. Cf. Ses. VI, Decreto sobre a justificação Cum hoc tempore,
cap. 1: DS, 1521.
[86]. Cf. Conc. Ecum. de Vienne, Const. Fidei catholicae: DS,
902; Conc. Ecum. Lateranense, Bula Apostolici regiminis: DS,
1440.
[87]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 14.
[88]. Cf. Sess. VI, Decreto sobre a justificação Cum hoc tempore,
cap. 15: DS, 1544. A Exortação apostólica pós-sinodal sobre a
reconciliação e a penitência na missão da Igreja hoje, cita outros textos do
Antigo e Novo Testamento, que condenam como pecado mortal alguns comportamentos
referidos ao corpo: cf. Reconciliatio et paenitentia (2 de dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985),
218-223.
[89]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 51.
[90]. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre o respeito da vida
humana nascente e a dignidade da procriação Donum vitae (22 febrero 1987), Introd. 3: AAS 80 (1988), 74;
cf. Paulo VI, Carta enc. Humanae vitae (25 de julho de 1968), 10: AAS 60 (1968),
487-488.
[91]. Exort. ap. Familiaris consortio (22 de novembro de 1981), 11: AAS 74 (1982), 92.
[92]. De Trinitate, XIV, 15, 21: CCL 50/A, 451.
[93]. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 94, a.
2.
[94]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 10; S. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração sobre alguns pontos de ética sexual Persona
humana (29 de dezembro de 1975),
4: AAS 68 (1976), 80: «A Revelação divina e, na sua ordem
própria, a sabedoria filosófica, ao fazerem ressaltar exigências autênticas da
humanidade, manifestam por isso mesmo, necessariamente, a existência de leis
imutáveis inscritas nos elementos constitutivos da natureza humana e que se
demonstram idênticas em todos os seres dotados de razão».
[95]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 29.
[96]. Cf. Ibid., 16.
[97]. Ibid., 10.
[98]. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 108, a.
1. Santo Tomás fundamenta o carácter não meramente formal, mas determinado no
conteúdo das normas morais, também no âmbito da Nova Lei na assunção da
natureza humana por parte do Verbo.
[99]. S. Vicente de Lerins, Commonitorium primum, c. 23: PL 50,
668.
[100]. O desenvolvimento da doutrina moral da Igreja é semelhante ao da
doutrina da fé: cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, cap. 4: DS, 3020, e cân. 4: DS 3024.
Também se refere à doutrina moral as palavras pronunciadas por João XXIII por ocasião da inauguração do Concílio
Vaticano II (11 de outubro de 1962):
«Esta doutrina (= doutrina cristã pura e íntegra) certa e imutável, que deve
ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às
exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do "depositum fidei",
isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que
são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo
alcance». AAS 54 (1962).
[101]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 16.
[102]. Ibid.
[103]. In II Librum Sentent., dist. 39, a. 1, q.3, concl.: Ed. Ad
Claras Aquas, II, 907 b.
[104]. Discurso (Audiência
geral, 17 de agosto de 1983), 2: Insegnamenti, VI, 2 (1983), 256.
[105]. Suprema S. Congregação do Santo Ofício, Instrução Contra doctrinam (2
de fevereiro de 1956): AAS 48 (1956), 144.
[106]. Carta enc. Dominum et vivificantem (18 de maio de 1986), 43: AAS 78 (1986), 859; Cf.
Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 16; Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 3.
[107]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 16.
[108]. Cf. S. Tomás de Aquino, De Veritate, q. 17, a. 4.
[109]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 16.
[110]. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 45.
111. Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 14.
[112]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 5; cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, cap. 3: DS, 3008.
[113]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 5; cf. S. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração sobre alguns pontos de ética sexual Persona
humana (29 de dezembro de 1975),
10: AAS 68 (1976), 88-90.
[114]. Cf. Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 de dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985),
218-223.
[115]. Ses. VI, Decreto sobre a justificação Cum hoc tempore,
cap. 15: DS, 1544; can. 19: DS, 1569.
116. Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 de dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985), 221.
[117]. Ibid.:l.c.,223.
[118]. Ibid.:l.c., 222
[119]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 17.
[120]. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 1, a.
3: «Idem sunt actus morales et actus humani».
[121]. De vita Moysis, II, 2-3: PG 44, 327-328.
[122]. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 148,
a. 3.
[123]. O Concílio Vaticano II, na Constituição pastoral sobre a Igreja no
mundo atual, precisa: «E o que fica dito, vale não só dos cristãos, mas de
todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente.
Com efeito, já que por todos morreu Cristo e a vocação última de todos os
homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito
Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um
modo só de Deus conhecido»: Gaudium et spes, 22.
[124]. Tractatus ad Tiberium Diaconum sociosque, II. Responsiones ad
Tiberium Diaconum sociosque: S. Cirilo de Alejandría, In D.
Johannis Evangelium, vol. III, ed. Philip Edward Pusey, Bruxelles, Culture
et Civilisation (1965), 590.
[125]. Cf. Conc. Ecum. de Trento, ses. VI, Decreto sobre a justificação Cum
hoc tempore, can. 19: DS, 1569. Ver também: Clemente XI,
Const. Unigenitus Dei Filius (8 septiembre 1713)
Quesnel, nn. 53-56: DS, 2453-2456.
[126]. Cf. Summa Theologiae, I-II, q. 18, a. 6.
[127]. Catecismo da Igreja Católica, n. 1761.
[128]. In duo praecepta caritatis et in decem legis praecepta. De
dilectione Dei: Opuscula theologica, II, n. 1168, Ed. Taurinens. (1954),
250.
[129]. Cf. S. Alfonso Maria de Ligório, Pratica di amar Gesú Cristo,
VII, 3.
[130]. Cf. Summa Theologiae, I-II, q. 100, a.1.
[131]. Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 de dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985), 221;
cf. Paulo VI, Discurso aos membros da Congregação do Santíssimo Redentor (22 de setembro de 1967): AAS 59 (1967), 962.
[132]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 27.
[133]. Carta enc. Humanae vitae (25 de julho de 1968), 14: AAS 60 (1968), 490-491.
[134]. Contra mendacium, VII, 18: PL 40, 528;
cf. S. Tomás de Aquino, Quaestiones quodlibetales, IX, q. 7, a.
2; Catecismo da Igreja Católica, nn. 1753-1755.
[135]. Conc. Ecum. Vat. II, Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 7.
[136]. Discurso aos participantes no Congresso Internacional
de Teologia Moral (10 de abril de 1986), 1: Insegnamenti IX, 1
(1986), 970.
[137]. Ibid., 2: l.c., 970-971.
[138]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 24.
[139]. Cf. carta enc. Redemptor hominis (4 de março de 1979), 12: AAS 71 (1979), 280-281.
[140]. Enarratio in Psalmum XCIX, 7: CCL 39,
1397.
[141]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 36; cf. Carta enc. Redemptor hominis (4 de março de 1979), 21: AAS 71 (1979), 316-317.
[142]. Missale Romanum, In Passione S. Ioannis Baptistae, Oración
Colecta.
[143]. S. Beda el Venerable, Homeliarum Evangelii Libri, II, 23:
CCL 122, 556-557.
[144]. Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 27.
[145]. Ad Romanos, VI, 2-3: Patres Apostolici, ed.
F.X. Funk, I, 260-261.
[146]. Moralia in Job, VII, 21, 24: PL 75, 778.
[147]. «Summum crede nefas animam praeferre pudori/ et propter vitam vivendi
perdere causas»: Satirae, VIII, 83-84.
[148]. Apologia II, 8: PG 6, 457-458.
[149]. Exort. ap. Familiaris consortio (22 de novembro de 1981), 33: AAS 74 (1982), 120.
[150]. Cf. ibid., 34: l.c., 123-125.
[151]. Exortação ap. pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 de dezembro de 1984), 34: AAS 77 (1985), 272.
[152]. Cart. enc. Humanae vitae (25 de julho de 1968), 29: AAS 60 (1968), 501.
[153]. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 25.
[154]. Cf. Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 24: AAS 83 (1991), 821-822.
[155]. Ibid., 44: l.c., 848-849; cf. Leão XIII, Carta
enc. Libertas Praestantissimum (20 de junho de 1888): Leonis XIII P.M. Acta, VIII
Romae 1889, 224-226.
[156]. Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 41: AAS 80 (1988), 571.
[157]. Catecismo da Igreja Católica, n. 2407.
[158]. Cf. ibid., nn. 2408-2413.
[159]. Ibid., n. 2414.
[160]. Cf. Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de dezembro de 1988), 42: AAS 81 (1989),
472-476.
[161]. Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 46: AAS 83 (1991), 850.
[162]. Ses. VI. Decreto sobre a justificação Cum hoc tempore,
cap. 11: DS, 1536; cf. can. 18: DS 1568. O
conhecido texto de Santo Agostinho, citado pelo Concílio, provém do De
natura et gratia, 43, 50 (CSEL 60, 270).
[163]. Oratio I: PG 97, 805-806.
[164]. Discurso aos participantes a um curso sobre a
procriação responsável (1 de março de 1984), 4: Insegnamenti VII,
1 (1984), 583.
[165]. De interpellatione David, IV, 6, 22: CSEL 32/2,
283-284.
[166]. Discurso aos Bispos do Celam (9 de março de 1983), III: Insegnamenti, VI, 1 (1983),
698.
[167]. Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de dezembro de 1975), 75: AAS 68 (1976), 64.
[168]. De Trinitate, XXIX, 9-10: CCL 4, 70.
[169]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 12.
[170]. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo Donum
veritatis (24 de maio de 1990),
6: AAS 82 (1990), 1552.
[171]. Alocução aos professores e estudantes da Pontifícia Universidade
Gregoriana (15 de dezembro de 1979),
6: Insegnamenti II, 2 (1979), 1424.
[172]. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo Donum
veritatis (24 de maio de 1990),
16: AAS 82 (1990), 1557.
[173]. Cf. C. I. C., can. 252 §1; 659 §3.
[174]. Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, cap. 4. DS, 3016.
[175]. Cf. Paulo VI, Carta enc. Humanae vitae (25 de julho de 1968), 28: AAS 60 (1968), 501.
[176]. S. Congregação para a Educação Católica, A formação religiosa
dos futuros sacerdotes (22 de fevereiro de 1976), n. 100. Ver os nn.
95-101, que apresentam as perspectivas e as condições para um fecundo trabalho
de renovação teológico-moral.
[177]. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo Donum
veritatis (24 de maio de 1990),
11: AAS 82 (1990), 1554; cf. em particular os nn. 32-39
dedicados ao problema da dissensão, ibid., l.c., 1562-1568.
[178]. Conc. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 25.
[179]. Cf. C. I. C., can. 803 §3.
[180]. Cf. C. I. C., can. 808.
[181]. «O inaestimabilis dilectio caritatis: ut servum redimeres, Filium
traddisti»: Missale Romanum, In Resurrectione Domini, Praeconium
paschale.
[182]. In Iohannis Evangelium Tractatus, 26, 13: CCL,
36, 266.
[183]. De Virginibus, lib. II, cap. II, 15: PL 16,
222.
[184]. Ibid., lib. II, cap. II, 7: PL 16, 220.
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